É de espantar o grau da esquizofrenia (eufemismo para parcialidade) da matéria “O medo se espalha” (O Globo, 16/05/2015), sobre o caso dos ônibus que foram queimados na manhã de sexta-feira (15/5) no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro.
Apesar de o portal de notícias G1 – que também pertence ao Grupo Globo – ter informado, no dia anterior, que o incêndio fora provocado por manifestantes depois que mototaxistas da comunidade foram encontrados mortos (http://migre.me/pSK9o), a reportagem limita-se a insinuar que o fato foi uma consequência de uma disputa entre facções rivais pelo controle dos pontos de venda de drogas em uma comunidade da região.
Qual a razão para esse lapso editorial?
A matéria prossegue, como de costume, baseando-se em depoimentos de fontes oficiais. O governador do estado, Luiz Fernando Pezão, sustenta que o ataque foi uma represália de bandidos à ação da polícia: “Trabalhador não queima ônibus. O cidadão de bem quer a polícia por perto”, diz o dirigente, em um discurso aparentemente alheio aos frequentes desvios de conduta de policiais em favelas e periferias.
O texto contém ainda relatos dos passageiros dos ônibus que foram atacados. Compreensivelmente assustados, eles conferem à matéria um toque a mais de dramaticidade para comover os leitores. “Nunca vivi isso na minha vida, foi um terror”, declarou uma das passageiras.
Relações veladas entre autoridades e traficantes
Há ainda, em discurso direto, depoimentos de um delegado e de um porta-voz da Coordenadoria da Polícia Pacificadora. Em contrapartida, não há uma citação sequer de moradores – nem mesmo em off, para preservar sua identidade –, explicando as razões para o protesto.
Mesmo que, de fato, tenham sido bandidos que atearam fogo aos ônibus – há relatos dando conta de que homens encapuzados e armados o fizeram –, faltou esclarecer as razões para os ataques. Afinal, qual o sentido de traficantes em guerra queimarem ônibus no asfalto para chamar atenção do país inteiro?
Ações com esse perfil estão geralmente associadas a “desentendimentos” entre traficantes e policiais ou são a forma que os moradores têm para protestar contra a violência policial. Seriam essas as razões para o jornal não ter feito seu dever de casa, isto é, apurado com os locais o que realmente estava por trás dos ataques aos ônibus? A provocação tem razão de ser; afinal, é notória a sinergia entre o Grupo Globo e o governo no trabalho de promoção do grande trunfo da política de segurança do estado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).
Apenas uma moradora, tia de um dos rapazes mortos, ganhou espaço na reportagem, mas, ao contrário das autoridades ouvidas, sua fala aparece em discurso indireto. “A tia de João Vítor, Maria Regina Petrato, disse que ele não era bandido. Segundo a polícia, não há registros criminais contra o jovem.”
Um excelente serviço de desinformação prestado pelo jornal, que segue contribuindo para manter veladas as relações entre autoridades e traficantes nos morros “pacificados” do Rio de Janeiro.
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João Montenegro é jornalista