A página inicial da azul British Broadcasting Corporation em tons vermelhos equivale ao anúncio transmitido pela mesma BBC por Neville Chamberlain da entrada do Reino Unido na Segunda Guerra Mundial. A crise veio. Para ficar mais por conta de mídia mundial que por conta de sua realidade.
Seu cerne é, basicamente, uma aposta em títulos que dependiam do trabalho das classes menos abastadas da maior economia do planeta para serem honrados. A proliferação dos títulos como crédito para outros títulos em uma cadeia mundial foi como uma peste negra em versão financeira.
Warren Buffet, magnata afeito a outros tipos apostas no mercado financeiro global, afirmou recentemente que ainda não se sabe os efeitos imediatos do problema. Acredita, contudo, que seu país sairá a médio-longo prazo da ‘crise’, o que seria, refazendo o caminho título-crédito, repor os valores, ou pelo menos suas expectativas, aos títulos das empresas norte-americanas, em especial os negociados em Wall Street. Ou seja, em sua origem, encontrar um substituto monetário para a renda, e subseqüente honra, dos trabalhadores gringos que se ausentaram do banquete que não sabiam que bancavam.
O olvido como futuro
Claro, são pessoas que, embora vivam na Roma do século 21, não tinham como ter noção que de suas jornadas de trabalho dependiam o índice S&P 500 ou os fundos para a aposentadoria de um islandês em sua distante ilha. Assim, Mr. Buffet aconselha reconstruir a casa do sonho americano… comprando ações. Tenta passar confiança para o mercado com esta atitude, mas ao mesmo tempo essa nova capitalização dependerá, outra vez, do trabalho real de muitos. Fica claro que aquilo que sustentava o glamour da sigla CEO, para não trazer outras, era mais este trabalho tradicional que a competência executiva de muitos.
Ao mesmo tempo se faz um grande tribunal mundial para julgar quais líderes estão sobressaindo dos pretensos tijolos ruídos. Gordon Brown, que antes da crise estava com um nó na garganta por recente derrota eleitoral do seu Partido Trabalhista, é afanado pelo atual Nobel de Economia como alguém que reagiu rápido e, além de tudo, soube como reagir. O próprio Nicolas Sarkozy também goza de louros por suas atitudes até agora. Do outro lado, G. W. Bush, em companhia de Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal, e Henry M. Paulson, Jr, secretário do Tesouro, realiza esperneios tardios para não sair, mais uma vez, mal na fita.
Bush filho conseguiu ser negativo em toda esfera relevante possível: interna-externa, riqueza-pobreza, diplomacia-conflito, urgência-tranqüilidade. Um desastre de governo, que tem em Richard Cheney seu real operador. Torres Gêmeas, Katrina, Iraque, Afeganistão, Fannie Mae, Freddie Mac, Goldman Sachs, Halliburton, Lehman Brothers, Osama e Obama são palavras que representam o porquê deste homem ter o olvido como futuro irmão.
Os bispos do mundo financeiro
Para o mês de novembro, Nicolas Sarkozy, presidente do Conselho Europeu, cargo com rotatividade de quatro anos, semeia uma reunião que será realizada entre o G-7, mais Brasil, Índia, China, México, África do Sul e Rússia. Sete mais seis, 13. Treze governantes que, sob os olhares de supervisão do capital, irão decidir como seus governos – leia-se Tesouro – devem recompor de maneira pública uma má gestão privada. Repor as perdas de afamados CEOs através de dinheiro público. Uma relação impensada anos atrás: o capital financeiro buscar nos cofres públicos a honradez de seus dividendos.
Este é um dos maiores paradoxos do capitalismo baseado no laissez-faire: para sobreviver, uma vez mais precisa de um estado de não inércia do dinheiro público. Uma doutrina que reza pela não intervenção, com especial crítica à intervenção social, dependerá da abdução de trilhões de dólares de dinheiro público para sua sobrevida. Toda a exuberância, ganância, vaidade, egoísmo, faustosidade e exagero serão postos em um balão de oxigênio às expensas de quem não saiu de casa para ver as corridas de cavalo: quem não apostou terá que pagar a conta no cassino de Wall Street.
Não foi um problema gerado por atitudes de um governo, mas sim, por excesso de ousadia baseada em testosterona especulativa: auto-confiança fundada em balanços de saúde financeira feitos por… empresas com seus títulos negociados na bolsa! Onde estão as Big Five neste vendaval? Arthur Andersen (R.I.P 2002), Pricewaterhouse Coopers, Deloitte & Touche, KPMG e Ernst & Young? Irão refundar conceitos de gerenciamento e consultoria financeira? Que neologismos os bispos do mundo financeiro incorporarão a seus portfolios?
Grandes expectativas
Quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desmoronou de vez – a bem dizer, ontem – havia uma constante voz que o gigante teria sido vencido pela inevitabilidade de cair no contexto do livre mercado. Imagens de filas frente à loja do McDonalds se formaram em Moscou e foram transmitidas em tubos de TV mundo afora. Agora, que o colapso é da própria estrutura ‘vencedora’, quem a socorre? Os Estados. Quando o bloco ruiu, os vencedores saíram vomitando liberalismo nos quatro continentes. Agora estão às sombras esperando o remendo: lucros para poucos, prejuízos para muitos.
Em tempos em que as riquezas mundiais estão registradas em disco rígidos de computadores, a confiança necessária para que o sistema se mantivesse era essencial. O tamanho do desmoronamento e sua velocidade exteriorizam a fragilidade de seu substrato. Terá que se repensar o que estes meninos estiveram fazendo com seus brinquedos; sucatear a vida de milhões de pessoas criou a oportunidade inadiável de extrair deste modelo econômico de gerir recursos finitos suas incongruências e iniqüidades.
O liberalismo não pode ser mais alçado como escudo a fim de defender as diferenças nos estratos das sociedades e entre os países. Estes são os últimos momentos em que sua doutrina terá sido aceita. O crepúsculo de um sistema de idéias, como tantas outras que o precederam. Se aqueles que defendiam que o homem deveria, exclusivamente através de suas atitudes, sair de determinada condição sócio-econômica desfavorável, desde então não se poderá permitir que o socorro só passe a existir quando as iniqüidades e ineficiências os atinjam.
Distante de saber o nome que levará a criança doravante, mais importante é que o novo sistema seja pró-ativo para sanar as diferenças sociais e, no fim, exista uma grande classe como motor da sociedade. Não mais um enxame de pobres governado e gerido por um punhado de superegos. Pobres que não estão em crise, pois incumbir-lhes culpa parece impossível. A crise existente está no cume da pirâmide. Resta esperar quem serão os equivalentes a Winston Churchill e F.D. Roosevelt para os postos de timoneiros. Em torno de um nome se cria grandes expectativas: Barack Obama.
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Doutorando, Universidade de Salamanca