Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Estado de Minas e a vitória de Pirro

O jornal Estado de Minas apareceu, nas eleições municipais de Belo Horizonte, como o antigo aríete das guerras antigas: um enorme soquete hiper-protegido, ‘blindado’, a ser utilizado para derrubar, a ferro e fogo, a resistência da frente inimiga. Este soquete adaptado às atuais circunstâncias políticas foi lançado, de cheio, sem nenhum pejo ou cautela ética, contra os adversários do esquemão dos dois palácios: o da Liberdade, estadual, e o da prefeitura.


O jornal agiu na esteira de uma trama urdida nos moldes daquela que armou e desenvolveu o golpe de abril de l964. Com o acompanhamento da CIA, os articuladores do golpe de então criaram as siglas famigeradas do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), articulados, entre outros, pelo general Golbery do Couto e Silva. Elas agiram orientadas por um modelo de mobilização tirado no arsenal da CIA depois de testado nos grandes golpes de que a espionagem norte-americana participou no pós-guerra.


A campanha do golpe mobilizou figuras do mundo econômico, político, cultural, militar e religioso. O seu modelo era o da guerra santa, antagonizando, de um lado, Deus e do outro, o Diabo. A célebre ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’ foi um dos seus produtos mais acabados e visou enquadrar as forças antigolpistas como inimigas das tradições populares e nacionais, identificadas com as concepções, as crenças e entidades da história do cristianismo. Os defensores da legalidade eram assimilados, além do mais, aos comunistas que haviam sacrificado, segundo eles, em países como a União Soviética, a Família, Deus e a Liberdade. O círculo, então, se fechou. Todos que não estivessem com os golpistas estavam com os comunistas. O esquema maniqueísta modelar de qualquer campanha direitista estava, assim, pronto: ‘Nós, os bons, contra eles, os maus’.


‘Decisão madura’


Um esquemão semelhante foi usado agora, em Belo Horizonte, para eleger Marcio Lacerda, candidato da ‘aliança PT-PSDB’. Os interesses econômicos, políticos, de setores culturais, religiosos e outros foram intensamente acionados por uma programação orgânica que, numa de suas pontas, quis neutralizar o peso das críticas ao mensalão sobre a classe média; e, na outra, colocá-la contra Leonardo Quintão, apresentado-o como o candidato do atraso, da perseguição religiosa em Ipatinga, do populismo e da corrupção.


O jogo consistia em apresentar a ‘aliança’ do governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel – que patrocina Lacerda – como cosmopolita, moderna e até de ‘esquerda’, e Leonardo Quintão como uma liderança paroquial e atrasada, além de ‘direitista’.


A experiência do PT em disputa histórica pelo controle político da cidade de Ipatinga, apresentada com as cores do maniqueísmo, foi jogada na internet e invadiu as caixas eletrônicas com milhares de e-mails. A controversa figura do ex-governador Newton Cardoso, apresentada como retaguarda do candidato Quintão, foi rememorada no estilo goebbelsiano de propaganda: por todos os lados e a todo instante.


É este um quadro referencial para ler a atuação do jornal Estado de Minas na liderança na campanha eleitoral de Belo Horizonte em 2008. As aparências não contam mais para o jornal seus articulistas. Virou coisa démodée. O que conta mesmo, a qualquer preço, é o poder. O Estado de Minas fez a defesa do candidato Marcio Lacerda de forma desabrida, escancarada, sem limites. Os sentimentos traduzidos pelas manchetes e textos que anunciam da vitória de Lacerda na edição de segunda-feira (27/10) são de êxtase. Ele ocupa duas linhas inteiras da primeira página do jornal, com caracteres em caixa alta: VITORIA DA ALIANÇA! O anúncio é apresentado como desforra sobre os adversários.


É este, aliás, todo o conteúdo dos artigos internos e da coluna ‘Em Dia com a Política’, usada para plantar notícias do interesse do jornal e dos grupos econômicos e políticos que ele sustenta. Tudo que o jornal escreve, sobre política, é marcado pela parcialidade. Na coluna citada, a reviravolta de parte do eleitorado, que no primeiro turno delineou uma curva ascendente em favor candidato Quintão e no segundo turno acabou dando a vitória a Lacerda, é apresentada, segundo o articulista, como um passo calculado do eleitorado para pensar melhor, ganhar tempo e dar a vitória a Lacerda: ‘O eleitor deu show porque pensou, ganhou mais tempo para pensar e tomou uma decisão madura, de acordo com sua convicção’. Foi então, conclui, que ‘Leonardo Quintão acabou experimentando do próprio veneno. Belo Horizonte não precisava e não merecia isto’ – ou seja, a vitória de Quintão…


Vontade expressa


Um dos fatores que explicam a vitória do candidato Lacerda, confessa o articulista (em contradição com a versão anterior da ‘reflexão’ do eleitor), foi o peso de natureza político-administrativo da ‘aliança’ sobre o eleitorado. A eleição do candidato dos dois palácios foi apresentada, de fato, insistentemente, na campanha, como condição para a continuação das obras em andamento. Este foi um dos leitmotiv do terrorismo oficial sobre o eleitorado de baixa renda e se constituiu mesmo num dos eixos principais da campanha de Lacerda. O outro foi a pressão ética sobre a classe média e o eleitorado em geral, que levou à abstenção, ao voto nulo e branco de tantos que, de outra forma, como no final do primeiro turno, votariam em Leonardo Quintão podendo dar-lhe, numa curva ascendente, até a vitória no segundo turno.


Na opinião de muitos, no entanto, o que a ‘aliança’ mais conseguiu, com a sua pressão política e moral sobre o eleitorado, não foi convencê-lo a votar em Lacerda, mas levar boa parte do eleitorado (o número dos votos brancos, nulos e a abstenção somaram quase 25%) a não votar em Quintão. Além do mais, são muitos, hoje, os que questionam a legalidade e a legitimidade dos vencedores. Veremos como isso vai pesar no pós-eleições.


Estas duas pontas da pressão exercida sobre o eleitorado levaram a um voto inseguro, pressionado e de fato, precário. Esse voto não satisfaz a vontade expressa pelo próprio Lacerda, de desenvolver um papel que o prefeito de Belo Horizonte tem que ter, ou seja, o de se constituir numa liderança forte e capaz de articular e mobilizar, na Grande BH e fora dela, as forças e os recursos políticos e materiais que a solução dos seus problemas ou o seu desenvolvimento exigem.

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Professor de Ciência Política da UFMG, autor de A história pela metade: cenários de política contemporânea (Editora Universidade Federal de Viçosa)