Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma candidatura contra o jornalismo tendencioso

Inicio esta escrita retomando (e reafirmando) a premissa introdutória do artigo anterior, dado neste Observatório:

‘É legítimo que, num regime democrático, meios de comunicação assumam suas preferências. Em diversos países, a definição fica explícita, seja da parte do veículo de informação, seja para o público-receptor. No Brasil, entretanto, a transparência ainda não vinga. Será atraso cultural? (…)’

Às vésperas da data de eleição, restrinjo-me à realidade da cidade do Rio de Janeiro, pois não faltaram exemplos de como a codificação jornalística, para não assumir posições definidas, opta por estratégias cujo efeito se dá por vias indiretas. Na edição de 24/10, o Jornal Nacional (TV Globo), ao revelar os percentuais das últimas pesquisas (Ibope e Datafolha), na locução de Alexandre Garcia, o receptor ouviu a seguinte informação: ‘A pesquisa revela que os dois candidatos estão empatados tecnicamente, mas, pela primeira vez, o candidato Eduardo Paes registra pequena vantagem’. A informação estava correta? Sim. Menos de 2% separavam um do outro. Todavia, havia 6% de ‘indecisos’. A meu ver, para o ‘eleitor indeciso’, a locução do jornalista estimula uma decisão em prol do candidato que apresenta vantagem, ainda que mínima.

Passividade indigna

Outro fator, este constatável nas edições dos principais jornais cariocas que circularam no dia da eleição, remete para a indução pela via da imagem (fotos). O Extra, jornal de penetração mais popular, confeccionou dois bonecos com os rostos dos dois candidatos, cercados por eleitores. Pois bem, a foto estampada, na primeira página, exibia Eduardo Paes caminhando à frente, seguido por Fernando Gabeira. Outras primeiras páginas, de O Globo e O Dia, expuseram fotos de ambos, sempre nessa mesma ordem: o primeiro, Paes; o segundo, Gabeira, ou seja, os veículos ignoraram o que significa ‘empate técnico’ para se valerem do foco sobre a ínfima diferença percentual entre os candidatos. Assim, os (e)leitores, indiretamente, receberam a informação de que o primeiro era Paes e o segundo era Gabeira.

Um terceiro aspecto a merecer consideração diz respeito ao descaso que os jornais do Rio de Janeiro concederam a um ato promulgado pelo governador do Estado, Sérgio Cabral, um dos ‘padrinhos’ do candidato Eduardo Paes, ao decretar, uma semana antes, o ‘enforcamento’ do expediente público, no dia 27/10, em razão de 28/10 ser o dia do ‘funcionário público’. É inegável a astúcia (ou ‘esperteza’) configurada na decisão do governador, induzindo o servidor público a emendar um feriadão (de sábado a 4ª feira). O que, entretanto, causa indignação é a passividade (quase cínica) dos meios de comunicação (impressos e eletrônicos) que, em momento algum, questionarem a ética desse ato.

Derrota vitoriosa

Sabendo-se que governos remuneram mal os servidores públicos, é fácil deduzir que os funcionários públicos tendam a votar contra seus ‘governantes-patrões’. Qual foi o resultado final nas urnas? A cidade do Rio de Janeiro registrou o maior índice de abstenção: 20,25%. No primeiro turno, o índice fora de 17,09. O TRE estimou a diferença de 1 milhão de eleitores a menos. No resultado final, 55 mil votos deram a vitória a Eduardo Paes. Quantos votos de servidores públicos que, pelo ‘feriadão’ ofertado pelo ‘generoso’ governador, deixaram de injetar percentuais na candidatura de Gabeira? Sim, o ato do governador foi dentro dos limites da lei. Igualmente verdadeira é a constatação da imoralidade com a qual o governador assinou o ato. E a mídia? Silêncio. Deplorável conduta!

Feito o mapeamento, no tocante à atuação de uma mídia pouco cuidadosa com a imparcialidade democrática, resta a observação de alguns aspectos. Que correlações de forças entraram na ‘arena’ política do segundo turno? A disparidade entre os dois candidatos é espantosa.

Quanto ao arco das coligações partidárias, cabe a seguinte configuração: o candidato derrotado por menos de 2% da totalização de votos, afora seu próprio acanhado partido (PV), teve, oficialmente, o apoio do PSDB e do PPS. Na outra ponta, o vencedor, além de contar com o partido de maior capilaridade (PMDB), recebeu o apoio dos demais, excluído o DEM. Não bastasse essa expressiva desigualdade, o candidato vitorioso, contava, ainda com o apoio das ‘máquinas estadual e federal’, sem mencionar o apoio de amplo setor conservador, traduzido pelas áreas empresarial e religiosa. A percepção de que a candidatura Gabeira foi vitoriosa é dada pelos números.

‘Aparências enganam’

No segundo turno, quem agregou, de modo representativo, o aumento de preferência dos eleitores, com o agravante de contar com o mínimo de alianças? A resposta é Fernando Gabeira. Quem seria Eduardo Paes, sem os ‘padrinhos’ estadual e federal? O próprio ‘vitorioso’, em depoimento, declarou creditar sua vitória ao ‘padrinho’, Sérgio Cabral, que o convenceu a sair do PSDB, migrar para o PMDB e, em troca, a ascensão à candidatura de prefeito.

Em resumo, o segundo turno, na cidade do Rio de Janeiro, significou um embate entre um indivíduo, com sua história, e aliados devotados, contra ‘máquinas’. Enfim, ao lado de quem estavam as hostes conservadoras? Que forças constitutivas aprovam a trajetória de alguém cuja coragem em negar o loteamento de seu governo entre partidos e vereadores se torna um discurso explícito? A mídia não soube (ou não quis, ou não pôde, por decisões superiores) passar ao eleitorado do Rio de Janeiro que o candidato mais novo representava a ‘velha política’ e que o candidato mais velho oferecia uma ‘nova política’. Afinal, desde Elis Regina, sabemos que ‘aparências enganam’.

‘Prato esquizofrênico’

Ao fim de tudo, o que fica é um quadro de política nacional na qual campeia o ‘imaginário-esquizo’, a saber: no Rio de Janeiro, elegeu-se o ex-filiado do extinto PFL, que, em seguida, se tornou convicto defensor do PSDB e, atualmente, integra o indefinido PMDB que, no primeiro turno, recebia ataques do PT local, mas, no segundo turno, a coisa mudou de figura. Acrescente-se, ainda, que, já no primeiro turno, o presidente da República (legendário símbolo do PT) preferia a adesão ao PMDB, sob a discórdia do PT local que, sequer, aceitou parceria com o PCdoB, partido da base em escala federal e com candidato a vice na candidatura do PT pela prefeitura da mais importante cidade do país.

Em Belo Horizonte, vingou a associação ininteligível entre PT e PSDB (dois partidos que, historicamente, se embrenham na tentativa de um abocanhar as vísceras do outro). Em Porto Alegre, afirmou-se a hegemonia do candidato do PMDB contra a feroz concorrente do PT. Pelo menos, no circuito das grandes capitais, escaparam São Paulo e Salvador.

No quadro acima desenhado, com base em fatos, fico a imaginar em que outro país a mídia teria tão ‘esquizofrênico prato’ para se fartar em degustações ‘crítico-temáticas’? É lamentável observar quanto de contradições político-partidárias a mídia despreza tematizar, retardando a urgência de uma reforma política que, embora qualquer cidadão razoavelmente inteligente reconheça como algo inadiável, a classe entronizada por massa de votos majoritários não pretende alterar, pois predomina o interesse de uma prorrogação desse modelo do qual o único beneficiário é o ‘político de carreira’.

Parcerias conservadoras e fisiológicas

Obrigado, Gabeira. Desde seu retorno do exílio, você sempre assumiu a defesa de temas que, matematicamente, entravam em choque com o senso comum, conservador, crédulo, submisso e, enfim, destituído de autonomia crítica. Concordo ser muito difícil a maioria compreender que o corpo pertence a cada um; que o aborto é uma decisão única e intransferível do ser implicado na trama; que a experiência com drogas também deriva da relação profunda entre vontade e consciência; que o desleixo de nossos atos contra a natureza tem repercussões profundas no âmbito sistêmico, tanto de nossas vidas quanto do planeta. Esses temas, Gabeira, você colaborou, intensamente, para a discussão. Os ouvidos de outrora ignoraram; os ouvidos de agora retroagiram. Paciência!

Quando, em 1979, você retornou do exílio, após haver sido expulso do Brasil, com a cicatriz de um tiro que, pelas costas, lhe foi desferido por agentes da repressão, você se exibiu de frente. Bem, o país tinha dado passos atrás. A maioria não compreendeu nada. No século seguinte, a maioria (mesmo diminuída) ainda não entendeu. A mídia, por sua vez, se vendeu ou emburreceu. Salve-se quem puder. Fiquem os vencedores com as parcerias conservadoras e fisiológicas de organizações midiáticas, interesses de máquinas públicas, instituições religiosas e estrategistas em proliferação de campanhas de ‘difamação’.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)