Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Erros conceituais na divulgação científica

Ao ler o artigo de autoria do dr. Enos Picazzio na revista Scientific American Brasil de agosto, ‘Quando a divulgação apenas desinforma’, senti-me satisfeito e preocupado. Satisfeito ao perceber que não sou o único a me preocupar com o modo como a mídia em geral ‘populariza’ a ciência. Preocupado por levar três anos desde minha primeira nota no Jornal da Ciência, um e-mail para que um periódico de ampla circulação disponibilizasse algumas páginas sobre o assunto. Neste meio tempo, pouco foi feito para minimizar os freqüentes erros e problemas da divulgação científica nacional, como adiante será retomado. Os erros continuam sendo propagados, inclusive por periódicos especializados ou por periódicos mais amplos, mas já agraciados com o prêmio José Reis de divulgação científica oferecido pelo CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Tecnológicas).

O dr. Picazzio nos fala em seu artigo sobre os desafios do pesquisador científico, bem como de sua responsabilidade e da necessidade de difundir o conhecimento de modo acessível ao grande público. De acordo com o dr. Picazzio, ‘o profissional de ciência tem obrigação moral e social de ajudar a difundir a ciência e a traduzir o discurso científico em discurso acessível ao grande público’, ao passo que ao profissional do jornalismo cabe ‘estudar o assunto e consultar um especialista antes de escrever um texto’, de modo que ‘quanto mais desinformada uma pessoa estiver sobre o assunto que escreve, mais cuidado deve tomar ao escolher termos alternativos’.

Educação da população é preocupante

Pois é exatamente sobre isso que tenho escrito desde 2005. É muito bom perceber que há mais pesquisadores interessados em divulgação científica de qualidade e que não acham que a popularização da ciência deva ficar exclusivamente na mão de jornalistas. Em outros ensaios, eu já comentava sobre a responsabilidade dos cientistas para com as notícias veiculadas na mídia e sobre a necessidade de cuidados com o modo como a popularização da ciência é feita, para evitar erros conceituais e para transmitir informações importantes para a população.

Realmente, o cientista tem obrigação moral e social de ajudar a difundir a ciência, uma vez que a maior parte da verba disponibilizada para a pesquisa no Brasil é de origem governamental, através de órgãos de fomento como o CNPq (Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e as FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa) estaduais. É claro que a geração de conhecimento possibilitada por estas ações em si já tem a sua importância, seja a pesquisa aplicada ou de base. Entretanto, apesar dos grandes avanços científicos nas mais diversas áreas, a educação científica da população ainda é preocupante. Se a escola, que deveria ser um dos melhores caminhos para a boa divulgação científica, anda com problemas, o que dizer da mídia, de onde boa parte da população obtém informações sobre ciência em geral?

Correção tardia

Isso deveria fazer com que cada vez mais pesquisadores se sentissem impelidos a contribuir para melhorar este quadro. No entanto, não é o que parece estar acontecendo, tendo em vista a quantidade de erros conceituais e problemas encontrados na mídia impressa nacional. Até onde o problema é dos pesquisadores, uma vez que a maioria das notícias científicas é dada por jornalistas? Infelizmente esta pergunta eu só consigo responder com outra pergunta: quantas vezes você, como cientista, já leu ou ouviu algum termo incorreto na mídia e escreveu ou telefonou à redação para corrigir?

Uma coisa que gosto de fazer é ler a seção de cartas para ver manifestações desta natureza. Confesso que não faço isso todos os dias, mas em algumas vezes que escrevi para apontar algum erro não tive resposta alguma do periódico. Na última vez, alguns meses atrás, fiz duas observações quanto a uma notícia veiculada na Folha online. Alguns dias depois obtive a primeira resposta: uma de minhas observações havia sido corrigida (o escritor/tradutor do artigo havia escrito que o ácido graxo ômega 6 é prejudicial ao organismo, talvez profetizando uma recente notícia ainda controversa); entretanto, para a segunda observação eles não concordaram, justificando-se com o dicionário. Especificamente, eles traduziram o termo inglês fat acid por ‘ácido gorduroso’, quando o correto é ‘ácido graxo’. Depois de outro e-mail e passados vários dias, eles comentaram que fizeram a correção. Infelizmente foi tarde demais, eu mesmo não encontrei mais o artigo depois disso. Houve uma demora muito grande na correção. Quem leu já gravou a mensagem incorreta.

Diversidade de genoma

Devido a esta minha preocupação com o uso correto dos termos é que fiquei satisfeito ao ver o artigo do dr. Picazzio na Scientific American Brasil, uma das mais importantes publicações de divulgação científica de nosso país. Com este artigo, percebi que não sou o único a me preocupar com a qualidade da divulgação científica e em perceber que isto é uma responsabilidade dos cientistas. Percebi também que não é apenas na área biológica que os erros conceituais são propagados. Meu foco normalmente é nos artigos de minha área – genética e evolução. Nesse aspecto, apesar de vários alertas, os erros continuam acontecendo.

Em verdade seria ilusão esperar que em pouco tempo tudo fosse ser resolvido com alguns ensaios de alguém com pouca expressão. A mudança é mais rápida quando está envolvido algum cientista superstar, como a geneticista Mayana Zatz. Em artigo publicado na revista Pesquisa Fapesp do mês agosto, a geneticista, juntamente com a jornalista Cristiane Segatto, discute os erros e acertos da mídia na cobertura das células-tronco embrionárias e destaca os exageros cometidos pela mídia, embora a pesquisadora sempre tivesse abertura para conter os problemas.

Outro fato que chama a atenção para a publicação do artigo do dr. Picazzio na Scientific American Brasil é que a própria revista não está livre de erros conceituais em seus artigos. Apenas como exemplo, é possível citar o artigo ‘Desejo de velocidade’, por David Biello, na edição de julho de 2008. O autor escreve: ‘Mas outros estudos sobre alterações nos aminoácidos individuais de DNA – polimorfismos de nucleotídeo único nas seqüências de DNA, haplótipos – ou nas seções mais longas de código genético – variação no número de cópias – concordam que as pessoas da África apresentam a maior diversidade em seu genoma.’

Código genético

Neste pequeno trecho, a coleção de erros beira ao grotesco. De um modo geral, o autor cita três tipos de marcadores moleculares que, embora possam usar métodos diretos ou indiretos de análise, são todos baseados na seqüência de nucleotídeos de trechos comparados entre diferentes indivíduos/populações. O primeiro erro crasso está no início da frase, quando o autor mistura DNA e proteína. Aminoácidos são os blocos construtores de proteínas, não do DNA. O DNA, por sua vez, é um polímero de nucleotídeos. Estes nucleotídeos podem ser de quatro tipos diferentes, dependendo de qual base nitrogenada está presente (adenina, timina, citosina e guanina) e são representadas pelas famosas letrinhas – ATCG, respectivamente, que aparecem quando se fala de seqüenciamento de DNA, que nada mais é do que decifrar a ordem em que estas ‘letras’ aparecem em um determinado trecho do DNA. Os polimorfismos de nucleotídeo único (do inglês, SNP) citado pelo autor, são diferenças que acontecem em uma única posição de um trecho de DNA, enquanto o restante do trecho se mantém conservado.

Outro erro está no uso incorreto do termo ‘código genético’. Código genético é o modo como uma seqüência de nucleotídeos do DNA é traduzida em seqüência de aminoácidos na proteína, sendo que cada três nucleotídeos formam um códon, que determina um aminoácido. Por exemplo, o códon ATG significa o aminoácido metionina.

Uma sociedade mais justa

O autor usa o termo de modo equivocado, como vários outros autores de textos de divulgação científica já fizeram, conforme abordei em outros ensaios. Na verdade, o autor faz referência a seqüências de nucleotídeos repetidas no genoma. Estas seqüências podem ser trechos pequenos (microssatélites), médios (minissatélites) ou grandes (satélites) de DNA, e diferentes indivíduos/populações podem apresentar variações no número de cópias destas repetições.

O uso incorreto de termos científicos é um dos principais problemas da divulgação científica nacional. Isso confunde o leitor e não contribui para a redução da desigualdade cultural e científica em nosso país. Os conceitos básicos precisam estar corretos e as analogias precisam ser mais bem formuladas para evitar más interpretações.

Para melhorar este quadro, se faz necessário que os periódicos utilizem mais os serviços de consultores especialistas em determinadas áreas, que os jornalistas sejam mais bem preparados para tratar de assuntos específicos de ciência e/ou que os cientistas estejam mais engajados na popularização da ciência. Nenhuma destas possibilidades é fácil ou barata. No entanto, em se tratando de educação, é um dever de todas as classes envolvidas fornecerem educação de primeira qualidade, visando a uma sociedade mais justa.

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Professor da Universidade Federal de Viçosa, campus Rio Paranaíba, Rio Paranaíba, MG