Usada e abusada, para não dizer vulgarizada sem qualquer respeito ao sentido original, a expressão ‘crise de paradigmas’, antes restrita ao jargão científico, tornou-se nos últimos tempos moeda corrente no vocabulário do senso comum. Apenas a título de exemplo, lembremos que hoje ela ecoa com irritante freqüência no plenário do Senado Federal e da Câmara dos Deputados em Brasília, sem contribuir em nada para a elevação do nível dos debates parlamentares. Repetida à saciedade nos contextos mais diversos, quase sempre de maneira imprópria, a noção (cunhada no início dos anos 1960 por Thomas Kuhn em sua obra seminal, A estrutura das revoluções científicas) esgarçou-se de tal forma que chega a ser temerário iniciar o prefácio deste livro com uma referência explícita à tão comentada (e pouco compreendida) crise de paradigmas dos tempos presentes. Não há, contudo, como contornar o obstáculo, já que, em última análise, é esse o tema central de Ciência e jornalismo – Da herança positivista ao diálogo dos afetos.
A obra traz a discussão para o domínio da comunicação social, mais especificamente do jornalismo. Eis aí o primeiro dos muitos méritos do trabalho de Cremilda Medina: ela não hesita em reconhecer os problemas de seu campo de atuação. Nunca é demais assinalar que é fácil apontar a crise no terreiro do vizinho, mas sempre complicado lidar com as dificuldades em nosso quintal.
Integração afetiva
Ao analisar as idéias de René Descartes e Auguste Comte, Cremilda discute como esses dois grandes autores – sustentáculos do arcabouço conceitual da modernidade – influenciaram o jornalismo ao longo de quase dois séculos. No entanto, com os abalos sofridos pelo edifício racionalista-positivista nos últimos tempos, práticas profissionais solidamente estabelecidas começam a ser contestadas. O repórter frio e objetivo diante dos fatos já não dá conta das novas exigências impostas pela realidade. A derrocada das certezas, a crise de valores e o triunfo do absurdo exigem um mediador que se deixe impregnar por sensações e emoções ao narrar o mundo. A notícia já não se restringe às possibilidades improváveis, mas mergulha no cotidiano, no protagonismo dos atores anônimos, na rica e quase sempre invisível trama da vida comum.
Diante desse quadro de profundas transformações, além de revelar a matriz positivista das fórmulas jornalísticas predominantes ainda hoje, Cremilda Medina propõe o resgate da autoria como elemento-chave da prática profissional. O envolvimento emocional com a narrativa e o relacionamento sujeito-sujeito entre os seres humanos nela envolvidos aparecem como uma nova fronteira na representação da atualidade ou, com licença da autora, na arte de tecer o presente, função precípua da comunicação social. Para mostrar as possibilidades concretas de sua proposta, Cremilda nos brinda com um belo exemplo de integração afetiva, em reportagem de 1985 assinada por ela no jornal O Estado de S.Paulo e transcrita nesta obra.
Novas práticas
Atenta ao impacto das novas tecnologias no ambiente das redações, a autora faz, na terceira parte do livro, uma frutífera reflexão a respeito da entrevista por e-mail e do efeito das transmissões televisivas ao vivo sobre a narrativa jornalística.
Todas as visões de mundo (ia escrever ‘paradigmas’; contive-me a tempo), todas as visões de mundo, repito, caracterizam-se pela transitoriedade. Também no mundo das idéias tudo passa, tudo flui, como dizia Heráclito. Com a diferença de que as águas nas quais se banhava o filósofo se dispersavam rumo ao mar e as idéias se agregam em camadas sucessivas. As visões do passado não se desmancham no ar, mas fornecem alicerces para a construção do presente. Assim, ao propor novas práticas no exercício do jornalismo, Cremilda Medina não dinamita o edifício de Descartes e Comte, mas com a contribuição de pensadores como Pascal, Damásio e Restrepo agrega preciosos tijolos à sempre inacabada construção do pensamento crítico, pragmático e democrático que fundamenta a esperança de um futuro melhor para a humanidade.
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A autora
Cremilda Medina é jornalista, pesquisadora e professora de comunicação social, nasceu em Portugal e saiu do Porto em 1953 para se radicar no Brasil. Costuma definir sua trajetória, da infância à experiência de adolescência e vida adulta, em Porto Alegre, e após 1971, em São Paulo, como uma busca de identidade em terras banhadas pelo sol. Aí se enraizou sua profissionalização. Atua, desde os anos de 1960, quando se formou em Jornalismo e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em duas frentes – comunicação social e pesquisa acadêmica. Atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo, onde realizou o mestrado (1975), o doutorado (1986), a livre-docência (1989) e a titularidade (1993). Iniciou suas atividades jornalísticas e editoriais em Porto Alegre, na Editora e Revista do Globo. Em São Paulo trabalhou em vários órgãos de imprensa, bem como em telejornalismo. No jornal O Estado de S. Paulo (1975-1985) foi editora de artes e cultura. Autora de dez livros sobre comunicação social e literaturas de língua portuguesa, organizou também várias antologias ensaísticas sobre temas da atualidade.
Como pesquisadora da Universidade de São Paulo, coordena um projeto de livro-reportagem – São Paulo de Perfil – que está na 25ª edição e que aborda a identidade cultural e comportamentos da grande cidade.
Na pós-graduação, coordena outro projeto integrado de pesquisa, com caráter interdisciplinar – Projeto Plural – que já editou sete documentos na série ‘Novo Pacto da Ciência: A Crise de Paradigmas’.
É orientadora de dois cursos de pós-graduação – Ciências da Comunicação, na Escola de Comunicação e Artes, e Prolam (Programa Latino-Americano de Pós-Graduação), ambos da Universidade de São Paulo. Tem participado de congressos nacionais e internacionais. Sua contribuição em seminários, cursos de graduação, especialização, pós lato sensu e stricto sensu se estende a universidades brasileiras, bem como, em Portugal, à Universidade Fernando Pessoa.
Em outubro de 1999, foi nomeada para a função de coordenadora da comunicação social da USP. A Coordenadoria de Comunicação Social CCS engloba todas a mídias – agência de notícias, o portal USPonline, rádio, televisão, jornal semanal, Revista USP, uma mídia temática trimestral e uma revista mensal para a comunidade de funcionários. Em 2000 apresentou um projeto intitulado ‘O Signo da Relação’, em que propõe uma nova concepção das mediações entre Ciência e Sociedade. Em 2003, apresentou um segundo projeto para Comunicação Social que abrange as estratégias das unidades e dos campi da USP, ‘Comunicação para a Cidadania’, o qual amplia o projeto ‘O Signo da Relação’, implantado na CCS.
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Jornalista e escritor, publicou livros infanto-juvenis e romances. Ex-professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, hoje se dedica exclusivamente à literatura