Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O filósofo, a crise e o kibe

Um fio invisível conecta a já enrugada crise política brasileira, as pândegas cibernéticas do blog Kibe Loco, uma sinistra rede de intrigas estabelecida no underground da mídia brasileira e um filósofo em desorientação reveladora. A história híbrida, misto de romance policial e farsa cômica, tem início num ágil movimento de dedos sobre o teclado de um computador. Rapidamente, por maldade ou imperícia, compõe-se na tela uma ficção, dessas que gozam de formidável verossimilhança. Neste agosto de nervos públicos expostos, o ‘jornalista’ Ucho Haddad desfecha mais um ataque contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Composto na economia de 761 caracteres, o texto é aparentemente despretensioso, mas gera nos leitores enorme desconforto cívico e desapontamento moral. Recheado de veneno, o informativo-denúncia sobe à rede na URL (www.ucho.info). Avisa o seguinte:




Festa de Arromba


Quem pensa que a lama fétida que emerge das entranhas do poder acabou, engana-se. Tido como um dos mais badalados DJ´s do universo, Tiësto (foto), que cobra cachês de US$ 30 mil para cima, tem em sua agenda do corrente ano uma apresentação marcada para a Granja do Torto, mais precisamente em 11 de outubro.


Como o presidente Lula é adepto de música sertaneja e pagode, alguém precisa explicar os verdadeiros motivos para a contratação de Tiësto, o DJ responsável pela sonorização da abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004.


Considerando que a viagem de Tiësto a Brasília não será por simpatia ao presidente Lula ou algo parecido, tudo indica que se trata de mais uma farra dos primeiros-filhos, que o trabalhador brasileiro terá de financiar. Clique, depois acesse a página `schedule´ e confira a mais nova barbárie consumista do presidente Lula, o defensor do povo e dos trabalhadores’.


Como na selva da internet nem toda aberração passa despercebida, a ‘notícia’ pipocou no computador de Marcelo Junqueira (corretor de valores e DJ diletante), o controvertido Psycho, do site Surra de Pao Mole. Ao checar a informação com colegas, convenceu-se de que se tratava de uma fraude. Logo, disparou para o autor o seguinte e-mail indignado:




Caro jornalista Ucho Haddad,


Nunca havia lido sua coluna e nem ao menos sabia da existência desse seu site. Porém ao receber por e-mail uma cópia de uma absurda matéria entitulada ´ Festa de Arromba´, senti-me na obrigação de investigar a fonte de tamanha ignorância, chegando assim ao senhor.


A acusação contida na matéria é o melhor exemplo do lado mais obscuro do jornalismo leviano, que dispensa investigações e transborda ódio e parcialidade.


‘Granja do Torto’, além de ser o nome da residência oficial da Presidência da República, é também o nome de um local muito utilizado para festas, exposições e rodeios: o famoso Parque de Exposições da Granja do Torto.


Um google. Uma simples consulta ao google com as palavras ‘festas’ e ‘granja do torto’ e sua informação cairia por terra muito antes de pensar se transformar em tão frágil ‘denúncia’. Pouco. Muito pouco mesmo pra quem se auto-intitula ‘jornalista investigativo’.


Duvido que um dia voltarei a seu tão informativo site pra saber se o senhor será profissional a ponto de assumirá o erro e se retratar publicamente. Mas penso que isso seria o mínimo que se poderia esperar de quem carrega tantas pedras nas mãos e um .info ao lado do nome. Além de, claro, colaborar para que idéias como a criação do CNJ – Conselho Nacional de Jornalismo não possam ser justificadas.


Saudações, Psycho


 A novela alvoroçou a comunidade virtual quando o dono do site de humor Kibe Loco, o publicitário Antonio Pedro Tabet, resolveu prestar um serviço de utilidade pública ao país e denunciar a denúncia. Transformou suas descobertas na esclarecedora série ‘Chifre em cabeça de cavalo’. ‘A farsa das falsas acusações é viral, perigosa e me assusta’ , explicou. ‘Além disso, não deixa de ser engraçado assistir ao constrangimento que essas ‘barrigas’ causam nos grandes órgãos de imprensa.’ No rápido processo de apuração, Tabet atirou sua rede e trouxe à tona outros peixes grandes. Na quinta-feira (25/8), por exemplo, Cesar Giobbi, da coluna ‘Persona’, do Estado de S.Paulo, publicou o seguinte:




Bufê infantil


Pelo visto o presidente Lula não está nem um pouco preocupado com a opinião pública. Está armando uma rave particular, na Granja do Torto, em Brasília, e resolveu contratar o festejado DJ Tiesto, considerado um dos melhores do mundo, que animou o verão europeu nos melhores endereços. Pelo menos é o que se lê no site do DJ, www.tiesto.com. A festinha é dia 11 de outubro, plena terça-feira, já que dia 12 é feriado. Como é Dia da Criança, imagina-se que o presidente queira festejar os filhos… Estarão usando cartões de crédito para pagar estas despesas também?


Outro colega de Ucho, o colunista Giba Um, reproduziu a notícia.




Super-DJ na Granja


Quem consultar o calendário de apresentações internacionais do famoso DJ Tiësto, responsável pela sonorização da abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004 e que cobra cachês de US$ 30 mil para cima, fora despesas, certamente ira se surpreender com uma apresentação marcada para 11 de outubro, na Granja do Torto, residência do casal presidencial. É uma terça-feira, véspera de feriado (data consagrada a Nossa Senhora Aparecida) e, antes de Brasília, o DJ Tiësto passa por eventos e festivais em Dubai, Moscou, Lyon e daqui, segue para uma apresentação dia 14 de outubro, em Buenos Aires’.


Depois de alguma pesquisa, Tabet descobriu que vários sites e blogs reproduziam a versão deturpada dos fatos. Os didáticos protestos do Kibe Loco mobilizaram vários grupos de internautas, que divulgaram aos quatro ventos o episódio. Instaurou-se uma saudável indignação e os mocinhos aparentemente triunfaram, pelo menos neste duelo.


Retrato de um personagem polêmico


Ora, mas quem é, afinal, Ucho Haddad, esse profeta da ruína moral brasileira, capaz de comover o país com suas ‘revelações’. Trata-se na verdade de Evaldo Haddad Fenerich, um publicitário de 46 anos, freqüentador assíduo de delegacias de polícia e tribunais. Constantemente encrencado com a Justiça, morou atrás das grades em 2001. Respondeu a inquéritos por estelionato, apropriação indébita, falsificação de documentos, receptação, ameaça e outros crimes. Em 1998, foi condenado por apropriação indébita. Recebeu como pena um ano de reclusão em regime aberto e dez dias-multa. Seus advogados, entretanto, conseguiram que cumprisse a pena em liberdade. Em 2000, Fenerich foi acusado de tentar leiloar o Dossiê Cayman II. As bizarras histórias do ‘jornalista’ estão narradas em reportagem de José Paulo Lanyi publicada no portal Comunique-se e reproduzida neste Observatório, em 2003.


Em outra nota, publicada recentemente em seu site, Haddad atribui a uma ‘peluda raposa’ informação sobre um suposto esquema para retirar o presidente Lula da cena política.




A casa caiu


Preocupado com a situação cada vez mais complicada do presidente Lula, uma das mais peludas raposas da república petista foi se aconselhar com um dos integrantes do governo do PT e ouviu o que não esperava. Seu interlocutor disse que o melhor seria convencer o presidente Lula da necessidade de inventar uma isquemia cerebral e viajar para Cleveland, nos Estados Unidos, para um suposto tratamento de aproximadamente quarenta dias. Tempos depois, já de volta ao Brasil, Lula se refugiaria em São Bernardo do Campo para uma convalescença, por lá permanecendo enquanto os ânimos da política nacional estiverem aquecidos. Mais adiante, anunciaria sua retirada do cenário político sob a desculpa de cuidar da saúde e da própria vida.


Mais uma vez, como contraponto, vale recorrer à devastadora reportagem de José Paulo Lanyi acima citada:




Evaldo Haddad Fenerich diz que viajava aos Estados Unidos para se tratar de um câncer linfático. Enviou à Justiça de São Paulo um comunicado (31/05/2000) do Memorial Sloan-Kettering International Center, de Nova York, que o informava de uma consulta com o Dr. Straus em 03/06/2000. O documento versava sobre todos os procedimentos de praxe: entre outras recomendações, orientava o paciente acerca do registro no hospital, do custo da primeira consulta (US$ 1 mil) e de uma eventual internação (US$ 100 mil de depósito). Um dos advogados de Fenerich buscava relaxar-lhe a prisão preventiva, com a alegação de que ele deveria prosseguir com o tratamento iniciado nos Estados Unidos em janeiro de 1998. Fenerich viajaria ‘diuturnamente’ a esse país por causa da terapia. No entanto, de acordo com declaração do próprio acusado à Justiça Brasileira, o tratamento teria começado em 13.06.2000, nesse mesmo Memorial Sloan-Kettering International Center, em Nova York. Fenerich dizia não poder comparecer às audiências (estelionato e outras fraudes) porque o tratamento se alongaria até o fim daquele ano. No processo, até hoje não constam documentos sobre consultas, cirurgias, exames realizados, nada que pudesse comprovar o tratamento nos Estados Unidos. Em um determinado trecho, a defesa de Fenerich argumentava: ele descobrira a doença em 1997, no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Os comprovantes apresentados à Justiça são atestados médicos e exames realizados no Hospital Ipiranga (SUS), de São Paulo, em agosto de 2001.


Novamente, o atilado ‘Psycho’, o politizado DJ, pescou a ‘coincidência’. Em seu site, o Holmes brasileiro expôs uma justa desconfiança.




A semelhante estratégia sugerida pelo suposto `integrante do governo petista´ e a utilizada pelo próprio jornalista para fugir da Justiça seriam apenas uma coincidência, ou talvez esse `jornalista investigativo´ sofreria de uma leve esquizofrenia, com tendências a misturar sua própria realidade com suas fictícias e exclusivas notícias publicadas?’


Rede de intrigas


Outra coincidência é a articulação orgânica entre os sites e blogs dedicados a espinafrar o governo e abastecer de querosene a fogueira política. Ucho, Giba Um e Cláudio Humberto, o homem de comunicação de Collor, criaram suas centrais de ‘notícias’ a partir do estímulo de Ruy Nogueira Netto, publicitário empreendedor, expert em campanhas políticas. Há claramente um círculo de trocas entre essas células periféricas de informação. Muitas notas são socializadas, com sutis maquiagens de texto. Um ecoa o outro. Procura-se produzir marola. Como característica comum, apresentam a ironia ácida contra o governo e a presença de fontes do mundo animal. Foi sempre uma ‘raposa peluda’, um ‘cachorro grande’ ou um ‘rato do partido’ quem fez vazar a notícia ‘bombástica’. Em seu blog, Ruy Nogueira fornece links para serviços semelhantes de Janer Cristaldo (‘filósofo’ propagandista ultraconservador), Cesar Maia, Diego Casagrande, Ricardo Noblat, Giba Um e… Ucho!


Por razões educativas, sigamos até o site de Giba Um. Na segunda-feira (29/8), por exemplo, ele divulga nebulosa informação sobre suposto sistema de compra de ativistas profissionais.




Contra e a favor


Só no Brasil: a Polícia Militar de Brasília e os arapongas da Abin – Agência Brasileira de Informação – filmaram as últimas passeatas na Capital Federal, a primeira a favor e a segunda, contra o presidente Lula. Aí, foram examinar os filmes e, na decodificação, ficou patente que, pelo menos a metade dos cara-pintadas de uma eram os mesmos da outra. É o chamado bloco dos ‘agitadores profissionais’, que são convocados pelas entidades estudantis e pelas centrais sindicais e que recebem, pela atuação, diária de R$ 50, mais vale-refeição.


Desculpas tímidas


Depois da bronca, Ucho, Giba Um e Cesar Giobbi emitiram ‘erratas’ acanhadas sobre o episódio ‘Rave no Torto’. Ucho alegou que não conhecia a existência de um parque de exposições com denominação semelhante à da residência presidencial. Em entrevista concedida a este articulista, afirmou que foi induzido ao erro por informações incompletas no site do DJ. ‘Erro maior foi cometido pelo presidente Lula, que nunca cumpriu com suas promessas de campanha’, acusou. ‘No caso em questão, devo dizer que aprendi mais uma vez, pois sou o melhor produto de meus erros.’


O colunista César Giobbi, do Estadão, publicou o seguinte:




O site do DJ Tiesto, que até na tarde de quarta-feira apresentava em sua agenda um show na Granja do Torto, em Brasília, no dia 11 de outubro, mudou de endereço na manhã de ontem. O que aparece, agora, é que sua apresentação será no Parque de Exposições da Granja do Torto. Bem diferente, não?


A nota encerra outro erro. Na verdade, o site de Tiesto já havia explicitado a qual Granja do Torto se referia na tarde da própria quarta-feira (24/8). Giobbi alega que checa todas as informações que publica, mas que foi iludido pelas informações no site do DJ. ‘Tenho quatro empregos e não posso visitar todos os sites para conferir um endereço’, afirma. O colunista destaca seus méritos ao admitir rapidamente o erro. Ao analisar o episódio, apresenta uma opinião controvertida. ‘Eu não acredito em nenhuma informação que corre na Internet, pois esse tipo de notícia não tem credibilidade’, sentencia.


Código de Ética


Em vigor desde 1987, o Código de Ética dos Jornalistas é encarado como peça anedótica por determinados setores da imprensa periférica e pelo bloguismo de maledicência.


Em seu artigo 2º, o código determina: ‘A divulgação de informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade’. O artigo 14º estabelece que o jornalista deve: ‘Ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas’.


De acordo com Fred Ghedini, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, é necessário separar o joio do trigo. ‘Temos profissionais sérios atuando em blogs e outros centros informativos virtuais’, afirma. ‘Mas há também uma rede de redundância de informações falsas, de sabotagem da verdade, que reúne de bandidos comuns a extremistas ultraconservadores.’ Ghedini considera que o novo cenário da comunicação virtual permite valorosas experiências de comunicação, mas também abre brechas para a ação de desqualificados de todos os tipos. ‘A sociedade civil e os jornalistas precisam estar vigilantes para apontar as distorções’, afirma.


Uma saudável desorientação


Caso esta história ‘jornalística’ admita um orago, este será René Descartes, o homem da máscara enigmática, virtuoso no exercício solene do pensamento dubitativo, tão culto e preparado a ponto de desconfiar de tudo no teatro do mundo. Um dia, já sapientíssimo, ousou por humildade estranhar toda a realidade. ‘É como se, de repente, tivesse ido parar em um redemoinho e estou tão confuso que não posso tocar o fundo nem nadar para a superfície’, confessou.


O pensador iniciou ali, num doce tormento, a aventura que viria a transformar a filosofia do Ocidente. Inventariou todos os seus conhecimentos. Surpreso, descobriu que a arca dos saberes abrigava apenas objetos da incerteza. Assim, decidiu rejeitar todos, até que pudesse provar racionalmente que eram dignos de confiança. Submeteu-os, um a um, a criterioso exame crítico. Escorado na ‘dúvida metódica’, declarou que só aceitaria idéias, fatos e opiniões que tivessem passado pelo crivo da dúvida. O filosofo determinava a existência do malum epistemicum, a forma de mal associada à ignorância e ao falso conhecimento.


Imagina-se o benefício se a preocupação de Descartes fosse compartilhada pelos homens e mulheres que alimentam a indústria da informação. O primeiro passo rumo ao aprimoramento do ofício seria reconhecer as linhas divisórias entre a ignorância e a incerteza. A primeira se desenvolve no casulo da doxa, envolta pelos fios opacos da tola convicção coletiva. O autêntico escriba ignorante não sabe que não sabe. É resistente e, não raro, fanático, inquisidor e arrogante.


No caso da incerteza, tão útil a quem informa, o que se revela é a falha, o erro sempre possível. Os ungidos pela incerteza, como um Euclides da Cunha, reconhecem a ignorância e sabem que suas fórmulas nem sempre explicam a realidade. Perplexos diante da complexidade dos fenômenos da existência, esses humildes imitam Descartes. Superam o encantamento, até que admitem aproximar seus assustados olhos da essência das coisas. Essa ‘busca da verdade’ serve como exercício intelectual e espiritual. Mas constitui-se em virtude maior porque atende a uma exigência ética da cidadania.

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Jornalista