Hotel Plaza, centro de Nova York, 30 de outubro de 1938, véspera do dia das bruxas. Eram nove horas de uma noite que se tornaria inesquecível. Passados setenta anos, a efeméride é lembrada como uma das coisas mais criativas e apavorantes que o rádio já fez.
Seis milhões de norte-americanos acompanhavam pela rádio CBS a adaptação do livro de ficção científica A Guerra dos Mundos, do escritor inglês Herbert George Wells, então com 72 anos.
Era a 17ª adaptação de um romance para o rádio, trabalho feito por um rapaz de apenas 23 anos chamado Orson Welles. Inventivo, ele mesclara literatura e jornalismo, e abrira sua narrativa com o pouso de uma nave extraterrestre numa fazenda perto de Nova Jersey, a 70 km de Nova York.
Assim, os ouvintes foram informados pelo rádio de que marcianos hostis tinham invadido a Terra e estavam matando as pessoas com armas desconhecidas. Os relatos eram medonhos. O repórter estava no local da aterrissagem e transmitia ao vivo, horrorizando o público com a descrição da morte de milhares de pessoas por raios de calor.
Criatividade genial
O rádio existia havia menos de vinte anos. A primeira emissora regular tinha sido a KDKA, de Pittsburgh. No Brasil, as transmissões tiveram início em 1922.
O pânico espalhado por todos os EUA deveu-se ao fato de 50% dos ouvintes terem perdido a abertura que informava ser aquela a adaptação de um romance. A CBS calculou que mais de um milhão de pessoas tomaram a dramatização como fato jornalístico, e deste, cerca de 50% acharam que estavam acompanhando uma reportagem insólita, que dava conta da invasão da Terra por habitantes de Marte.
Orson Welles ficou famoso da noite para o dia. Primeiro, o New York Times, em sua edição de 1º de novembro 1938, estampou a manchete ‘Ouvintes de rádio em pânico tomam drama de guerra como verdade’. Já a edição do Daily News publicou matéria intitulada ‘Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos’.
No resto do mundo não foi diferente. Aquele foi o grande assunto e aumentou o número de pessoas que passaram a acreditar na invasão extraterrestre. Nos dias seguintes, as ponderações já estavam presentes em vários jornais, de que é exemplo a matéria de capa da Gazeta do Povo, jornal de Curitiba, em 2 de novembro de 1938: ‘A fantástica força impressionista do rádio’.
O que contribuiu para o sucesso extraordinário da adaptação e sua confusão com reportagem foi a criatividade daquele homem genial. A orquestra de Ramón Raquello tocava La cumparsita quando a música foi interrompida para a leitura do boletim noticioso.
Autor detestou adaptação
Mas por que tudo isso pôde acontecer e tantas pessoas transformaram em reportagem um romance adaptado para o rádio? O contexto histórico foi decisivo. Pesquisadores informam que o ano que antecedeu a irrupção da II Guerra Mundial liderou as consultas a cartomantes na França.
O nazismo teve muito a ver com o pânico deflagrado pela confusão. Um mês antes, em setembro de 1938, Hitler não escondia de ninguém que preparava a ampliação do território alemão. Naturalmente, a confusão aumentava entre aqueles que não liam jornais e tinham pouca ou nenhuma instrução.
Orson Welles dividira sua peça em três partes e apenas na última voltara ao estilo adotado nas dezesseis anteriores, retomando o formato de radioteatro. No encerramento, o roteirista em pessoa admitiu que sua intenção tinha sido assustar os ouvintes, pregando-lhes uma peça de outra natureza.
A emissora de rádio que transmitiu o programa não era a mais ouvida nos EUA. Naquele horário, era a segunda. Diversos pesquisadores afirmam que, antes de Orson Welles, outros haviam feito coisa parecida na França e na Inglaterra e tinham misturado realidade e ficção nos programas. Mas o que foi decisivo para o impacto do programa de Welles foi que os EUA já dispunham naquela época de uma rede nacional de rádio. Assim, aquilo que foi nacional nos EUA, nos outros países tinha efeito limitado ao alcance de apenas uma emissora.
O escritor inglês detestou a adaptação e acusou Welles de má utilização do texto. Seu agente literário, Jacques Chambron, informou que ‘a CBS obteve a permissão para dramatizar uma irradiação, mas explicou que a dramatização seria feita com uma liberdade que equivaleria a uma remodelação da obra, descaracterizando-a’.
Em nome da credibilidade
A façanha de Welles foi repetida no México, onde várias pessoas se suicidaram, e no Equador, onde diversas sedes de emissoras foram depredadas. No Brasil, há registros imprecisos de que nos estados de Minas Gerais e do Maranhão tentou-se coisa semelhante, já na década de 1950, e aviões da FAB teriam decolado para perseguir discos voadores, mas esses registros foram parar em outro contexto, os dos OVNIs.
Quanto ao livro A Guerra dos Mundos, ele teve adaptações cinematográficas.
Quanto ao rádio, seu reinado não terminou, mas os tempos gloriosos de radionovela e de adaptações famosas acabaram. Ele perdeu para a televisão. Poucas emissoras têm um departamento de jornalismo que antecipa os jornais, a TV e a internet. Meios e agilidade não lhes faltam. Talvez falte talento e requisitos mínimos de exercício da profissão. Assim, a maioria das emissoras limita-se a ler manchetes e trechos de jornais diante dos microfones. Por que, então, não usam pelo menos a internet como fonte? Porque os jornais ainda mantêm a credibilidade. Por quanto tempo não se sabe, mas em muitos deles, sejam grandes, médios ou pequenos, a criatividade é a grande ausente.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da ed. Novo Século); www.deonisio.com.br