“Ele foi vítima de vítimas, que são vítimas de vítimas”, desabafou para o jornal carioca O Dia a ex-mulher e mãe dos dois filhos do cardiologista carioca assassinado quando pedalava no início da noite no entorno da aprazível Lagoa Rodrigo de Freitas. O suposto assassino tem 16 anos e já cometeu quinze delitos, o primeiro aos 12.
Instantaneamente, baixaram das nuvens bruxas e demônios transformando o horror, o luto e a solidariedade em indignação, sede de vingança, rancor difuso e generalizado contra tudo que pareça provocar a violência. Reacendeu-se o debate sobre o rebaixamento da maioridade penal engrossando as legiões dos que clamam por imediatas providências e soluções definitivas contra o crime e a impunidade.
O arrasador depoimento do pensador espanhol Manuel Castells publicado na Folha de S.Paulo um dia antes da barbaridade abalou ainda mais a imagem que inventamos a nosso respeito como consolo para o fracasso coletivo: “A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata”.
É possível que o sociólogo pretendesse dizer algo distinto do publicado, porém é lícito acreditar que um observador tão atilado, sensível e articulado expressasse uma dolorosa e inequívoca constatação: o país está se matando. Literalmente.
Uns aos outros. Somos todos agentes e sujeitos da mesma violência, assustadores e assustados, governantes e governados, progressistas e reacionários, crentes e descrentes, militares e magistrados, policiais e policiados, professores e aprendizes – todos, sem exceção, se bicam, se dilaceram, se esfaqueiam. Todos sangram. Enquanto rios secam, o sangue escorre copioso nas calçadas e ruas.
No limite
Importado de outras paragens pelas moderníssimas redes sociais, o pragmatismo das bestas e dos primitivos disseminou-se velozmente e está demonstrando que uma faca de cozinha, baratíssima, fácil de esconder e utilizar, pode ser tão mortífera quanto uma garrucha. Pela universalização do uso, armas brancas convertem-se com relativa facilidade em armas de destruição em massa.
A sociedade que não é simpática, como nos qualifica Castells, é uma sociedade enfezada, agressiva, incapaz de percepções mais sutis. Matar-se é uma forma verbal complicada, pode sugerir intensidade (“fulano está se matando de trabalho”) ou uma ação deliberada para provocar a própria extinção.
Desnorteada como está, desarvorada, despassarada, sobretudo inexperiente e impaciente, a sociedade examinada por Castells é uma sociedade potencialmente suicida. Diante da tempestade perfeita onde as angústias materiais associam-se a uma antiga ausência de proteção, onde a inexistência de perspectivas de mudança alia-se ao incrível desgaste dos modelos, discursos e referências, incapazes de expressar o desespero, as vítimas das vítimas das vítimas das vítimas – nós – lentamente nos encaminhamos para a beira do abismo.
Mais perto, talvez seja possível descortinar as perdas e retroceder. Estamos no limite.