Terminou à meia noite de terça-feira (19/5) a consulta pública da Anatel com perguntas sobre neutralidade de rede que dará subsídios à agência para preparar posicionamento formal a ser enviado à Presidência da República no processo de regulamentação do Marco Civil da Internet.
As contribuições puderam ser enviadas através da plataforma aberta Diálogos Anatel ou ainda através do Sistema Interativo de Acompanhamento de Consulta Pública (SACP).
De maneira geral, as contribuições destacaram a necessidade de o regulamento trazer exceções à neutralidade e qualificação de serviços de emergência, por exemplo, de maneira não específica, para não engessar o Marco Civil, e reforçaram a ideia de que qualquer punição a abusos de poder e quebra de neutralidade de rede poderia vir com ações ‘ex post’ dos órgãos reguladores, com o exame de caso concreto.
Prestação adequada de serviços e aplicações
As contribuições destacaram, de forma geral, a necessidade de um determinado nível de gerenciamento da rede para evitar congestionamentos e garantir a prestação adequada dos diferentes serviços. Para o SindiTelebrasil, “determinadas aplicações e serviços demandam padrões técnicos diferenciados, em virtude da necessidade de manter requisitos de transmissão, comutação e roteamento em tempo real e de alta definição, como teleconferência, telemedicina, segurança, vídeos de ultra definição etc, e exigem tratamento diferenciado pelas redes de telecomunicações”. Assim, a entidade que reúne as operadoras de telecomunicações pede que para tais “serviços especializados” seja aplicado o condicionante previsto no Marco Civil que prevê quebra da neutralidade em casos “decorrentes de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações”. O sindicato classifica como serviço especializado aquele que supere as métricas dos regulamentos de qualidade da banda larga fixa e móvel. As contribuições individuais das operadoras Telefônica/Vivo, Oi, Claro, TIM, Sky, Algar e Nextel, além de fornecedores como Cisco, Ericsson e Qualcomm e das associações Abinee, Abranet, ABDTIC e Telcomp, entre outos, também seguem a mesma linha.
A Cisco vai além, sugerindo que a regulamentação garanta a oferta de serviços especializados, ou seja, serviços de conexão – não à Internet pública propriamente dita, mas a serviços, aplicações ou conteúdos específicos que requeiram funcionalidades que precisam de uma qualidade diferenciada, ponto a ponto. “Recomendamos que a regulamentação do Marco Civil seja muito específica, permitindo que as prestadoras de conexões à Internet implementem medidas não discriminatórias razoáveis de gerenciamento do tráfego, quando destinadas a: a) garantir a segurança e integridade das redes; b) reduzir ou minimizar os efeitos do congestionamento das redes; c) garantir a qualidade dos serviços e aplicações disponíveis aos usuários; d) permitir a devida oferta de serviços especializados aos usuários; e e) priorizar os serviços de emergência, quando necessários.”
Para a Associação Interamericana de Empresas de Telecomunicações (AHCIET), “poder tratar os pacotes de dados de acordo com a sua natureza supõe um benefício claro para todo o ecossistema digital, fundamentalmente para a qualidade do usuário final, sendo em qualquer caso positiva e sem gerar uma distorção no mercado”.
O SindiTelebrasil defendeu ainda a que a proibição do Marco Civil à monitoração de pacotes não deva ser aplicada “aos metadados desses pacotes”. “A análise dos cabeçalhos de cada protocolo usado na Internet, em suas diferentes camadas, deve ser permitida para uma adequada gestão da rede e dessa forma garantir a sua estabilidade e segurança, assim como a otimização do seu uso” e que, “se necessário, o conteúdo da informação propriamente dita, inserida na Internet ou retirada dela pelo usuário, possa também ser objeto de análise pelas operadoras, desde que não sirva ao propósito de identificação individual da informação do usuário, que garanta o atendimento ao princípio da segurança e estabilidade da rede”.
A Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da fazendo também recomendou que a agência não defenda nenhuma exceção relacionada à degradação de rede, mas entende que algumas práticas de não-acesso prioritário (a um preço positivo) e de não-discriminação por meio de menus de qualidade (não autoriza uma discriminação de preços de segundo grau com base nos tipos de conteúdo ou serviço) possam ser especificadas pelo decreto regulamentar, e que não violariam os requisitos formais específicos da moldura legal do Marco Civil da Internet.
A Seae entende também que a prática conhecida como dirt road fallacy em alguns casos, pode ser neutralizada pela definição de padrões mínimos de qualidade (PMQs), para os diferentes serviços e aplicações. E recomenda que nos casos das restrições verticais relacionadas às regras de não-acesso prioritário, em que envolva poder de mercado, as políticas de concorrência ‘ex post’ precisam ser complementares às políticas regulatórias ‘ex ante’ de neutralidade de rede.
Já a provedora de serviços over-the-top (OTT) Netflix, embora reconheça que provedores de serviços de banda larga devem ter flexibilidade suficiente para gerenciar suas redes, salienta que tal discriminação e/ou degradação por requisitos técnicos essenciais à prestação não deve ser “específica para determinado aplicativo, mas deve-se criar regras que se apliquem a categorias de diversos tipos de serviços, considerados como um todo”. Ou seja, a Netflix reforça que não deseja que um provedor trate seus próprios serviços de voz sobre IP (VoIP) ou de vídeo on-demand (VOD) de maneira privilegiada em relação a serviços equivalentes de concorrentes.
Relações entre agentes envolvidos
As contribuições do SindiTelebrasil, AHCIET e Cisco em geral não veem necessidade de uma regulação ‘ex-ante’ em relações entre agentes do ecossistema da Internet para garantir a proporcionalidade, transparência, isonomia e não discriminação. “A Lei estabelece que todos os pacotes devem receber tratamento isonômico” e “em casos de discriminação ou degradação de tráfego, os provedores de acesso e conexão devem agir com proporcionalidade, transparência, isonomia e devem abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais”, diz o SindiTelebrasil, que defende ainda que condições de exclusividade em si não caracterizam uma conduta anticompetitiva ou anticoncorrencial, desde que respeitados os condicionantes da lei referentes à neutralidade de rede.
“É possível a existência de canais separados ‘de alta velocidade’ para serviços que tenham um uso de banda altamente intensivo, uma vez que poderia ser bom para todos os usuários, façam eles ou não uso desse serviço. Este aspecto permite, além do mais, gerar receitas para a melhora e expansão da capacidade da rede”, defende a AHCIET. “Deverá ser decisão final do fornecedor do serviço onde e como se conecta à rede para oferecer os seus serviços ao usuário final, e em nenhum caso pode permitir-se a nenhum ator na cadeia de produção, transporte e distribuição a degradação artificial da qualidade do acesso a Internet para condicionar os fornecedores a um modo determinado de conexão”, completa a entidade.
A contribuição da Netflix foi o contraponto, destacando que um dos maiores desafios que tem enfrentado tem sido a relação entre ela e provedores de serviços que detêm a infraestrutura de conexão à Internet. “Aprendemos que as proteções de última milha são insuficientes se os provedores puderem mover condutas discriminatórias para os pontos em que os provedores de conteúdo acessam as redes globais de distribuição de conteúdo da Netflix”. Para a OTT, a Internet aberta não deve ter nenhuma forma de bloqueio, nem cobrança de taxas de acessos ou discriminação “irracional” em qualquer ponto da rede.
A OTT destaca que, assim como os demais prestadores de serviços de valor agregado, possui seus próprios mecanismos de entrega otimizados, arcando “integralmente com os custos de entrega na porta da rede dos provedores de conexão local dos bits solicitados pelos clientes do provedor de conexão local, seja através do uso de sua própria CDN, a Open Connect, da CDN de terceiros ou ainda pagando pelo uso das redes de provedores de tráfego com as redes dos provedores locais. Assim, apesar de entender que a “intervenção do Estado deveria limitar-se ao mínimo para garantir a competitividade do mercado e que uma intervenção ex post deveria ser a regra”, a Netfix também salienta que na situação “na qual um agente incorreu em custos significativos para reduzir o impacto que o seu conteúdo tenha sobre a rede de terceiros, o regulador deveria assegurar, não só o direito de acesso (já protegido pelo Artigo 61 da Lei Geral de Telecomunicações), mas também garantir que esse acesso seja gratuito”.
A Netflix acredita que o regulamento do Marco Civil deva conter regras amplas e claras que incluam que os provedores de conexão à Internet “não podem degradar ou impedir os dados de fontes/provedores específicos, ou cobrar tais fontes pela não degradação do seu tráfego; que não podem privilegiar fontes/provedores de dados específicas, seja de forma paga ou de outra forma; e que, na sua qualidade de únicos provedores do acesso ao usuário final, não podem cobrar fontes/provedores de dados pelo acesso a tais usuários e devem fornecer o acesso gratuito para os distribuidores e serviços de Internet que tomaram algumas medidas para trazer todo ou a maior parte do seu conteúdo para mais perto do provedor do serviço de conexão à Internet, seja em um IXP localizado no Brasil ou de outra forma tecnicamente viável para que os consumidores experimentem as velocidades de banda larga contratadas e pagas.
Modelos de negócio
Um dos principais assuntos abordados nas contribuições com relação ao tema “Modelos de negócio” foi a questão do zero rating para aplicativos, de acessos móveis. O Grupo Folha/Uol, por exemplo, se manifestou totalmente contrário à prática, ressaltando que fere diretamente ao princípio de neutralidade.
Para a Netflix,embora os “modelos de negócios tais como a tarifa zero (Zero Rating) sejam uma forma de evitar as impostas limitações de dados, (a Netflix) acredita que esse modelo não se coaduna com princípios robustos da neutralidade da rede, uma vez que apresenta aos consumidores apenas uma fatia da Internet e permite que decisões de negócios pré-selecionem os ‘vencedores e perdedores’ na Internet”. “A Internet verdadeiramente aberta deve ser aquela que opera livre de tais decisões comerciais, aquela em que o usuário é livre para escolher qualquer conteúdo, e não incentivado a visitar apenas determinados aplicativos online”.
A Seae, do Ministério da Fazenda, também condenou a prática de zero rating de aplicativos. Segundo o órgão do Ministério da Fazenda, “o pagamento de taxas de terminação por parte de provedores de conteúdo para os donos das redes é considerada uma prática ilegítima sobre a égide da lei”.
Para a AHCIET, o zero rating não viola a neutralidade porque “estamos a falar do acesso determinado a uma aplicação que utiliza a internet para funcionar, não do acesso preferencial a aplicações dentro já da web”. Ela salienta que “as empresas de telecomunicações são as primeiras interessadas e contam com o maior incentivo para fazer que aqueles usuários do Zero Rating finalmente fiquem convertidos em usuários plenos de forma habitual, não há interesse nenhum em manter indefinidamente estes usuários com um acesso limitado a uma única aplicação, é, como já se disse, apenas uma via temporária para a conexão completa”.
A Cisco concorda que é importante que a regulamentação do Marco Civil não proíba modelos de negócios baseados em planos que permitam o acesso a serviços de conexão à Internet com taxa zero, ou que não limitem o volume de dados para algumas aplicações.
Já para o SindiTelebrasil, ofertas que não cobram do usuário o acesso a algumas aplicações, conteúdos e serviços não se confundem com o conceito de neutralidade de rede da Lei. “Oferta gratuita de determinados aplicativos não se confunde com o tratamento diferenciado de pacotes de dados”, uma vez que “se o usuário contratou um plano de acesso à Internet com uma determinada franquia e se algumas aplicações não geram débitos aos créditos contratados, neste caso não há nenhuma relação entre a prática da não cobrança com o conceito de neutralidade de rede”, diz a entidade. “Dar uma interpretação para o conceito de neutralidade de rede distinta daquela acordada durante a aprovação da lei, com a clara intenção de vedar a oferta de planos de serviços que não cobram do usuário o acesso a algumas aplicações e/ou conteúdo é uma afronta ao processo democrático e, ainda, um desrespeito ao amplo processo de negociação mantido ao longo das discussões do Marco Civil da Internet”, completa.
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Letícia Cordeiro e Lúcia Berbert, do Teletime