“Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas…” Há muito se ouve essa frase de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, que parafraseou ensinamento de Jesus Cristo: “Não lanceis pérolas aos porcos”. E que, mais modernamente, está em música cantada pela banda Titãs: “Só quero saber / Do que pode dar certo / Não tenho tempo a perder”.
Os ditados e filosofias sofrem mudanças de linguagem, mas a essência é alicerce permanente e, no caso em pauta, sugere que nosso tempo de vida terrestre é breve e que não devemos desperdiçá-lo com questões imutáveis, como canta Chico Buarque em O que Será (À Flor da Pele): “O que não tem remédio, nem nunca terá/ O que não tem governo, nem nunca terá/ O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
Nunca foi tão difícil editar livros e dar-lhes a eficiente circulação; contudo, os autores que têm literatura e poesia no sangue e as abraçam como o próprio ar que respiram não encontram outra saída que não seja enfrentar os custos gráficos, a indiferença, falta de gosto pela leitura da população e a inexistência de incentivo oficial à propagação da leitura como fator fundamental para a elevação da qualidade educacional, que não tem como ser ampliada sem a moldura da cultura dando sentido prático, emocional e, ao mesmo tempo, sensibilizando os alunos de todos os níveis de ensino, do ensino fundamental aos cursos universitários.
Ir aonde o leitor está e evitar a perda de esforço, além de possíveis decepções, é a meta de todo autor independente, mas como alcançar essa busca, se os leitores estão dispersados de maneira tão rarefeita Brasil afora? Temos gente com diploma de curso superior que nada lê, enquanto pessoas de pouco estudo adoram livros; assistimos a gente de alto poder aquisitivo que não passa nem perto de livro, ao passo que trabalhador assalariado faz todo sacrifício para ter acesso à literatura.
Dessa forma, pelo menos no caso da atividade de escriba, maior ou menor, não há como ele evitar a possibilidade de, uma vez ou outra, passar sua obra literária a mãos ignaras que não darão o menor valor ao empenho intelectual e ao dispêndio financeiro carreados na trabalhosa materialização de produto cultural gráfico, seja ele livro, revista ou até jornal. Entretanto, são os ossos do ofício e, a bem da verdade, tais dificuldades é que garantem aos poetas e escritores carregarem no peito o Sentimento do Mundo, terceira obra poética de Carlos Drummond de Andrade, na qual ele nos revela sua limitação e impotência perante este mundão de meu Deus, onde as supostas certezas se perdem no caudaloso mar do contraditório em que banham os seres humanos: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”.
Por outro lado, Sentimento do Mundo pode ser entendido também como um poema sobre o próprio fazer literário (“minhas lembranças escorrem”), em que os poemas (“escravos”) surgem como armas (“havia uma guerra / e era necessário / trazer fogo e alimento”). É nesse digladiar contra a realidade perversa e injusta que os poetas e escritores vão se enchendo de sentimento do “sentimento do mundo”, que dá origem a uma visão pessimista tão magnificamente grafada pelos versos de Drummond, clareando-nos a mente, metaforicamente, com um amanhecer “mais noite que a noite”.
Engana-se, porém, quem imagina que o poeta maior deixou algum dia o pessimismo lhe sufocar as luzes de esperança que povoam toda escuridão. Foi ele quem um dia, recebendo o meu primeiro livro, cometeu o humano sentimento de mundo ao me ungir com a possibilidade de algum horizonte em meio às pedras do caminho:
“Rio de Janeiro, 15 de junho de 1977. Prezado Carlos Lúcio Gontijo: Ventre do Mundo está aqui sobre a mesa, com a sua carta informativa e simpática. Obrigado pela lembrança gentil. Um livro de poemas e aforismos que se esgota em quinze dias é sinal de que o seu autor soube dar o recado. E você o fez numa forma gráfica elegante e nova. Deve estar contente. Parabéns, e vá em frente, xará. O abraço e a simpatia cordial de Carlos Drummond de Andrade”.
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Carlos Lúcio Gontijo é jornalista, cronista e poeta