A economia americana encolheu 0,3% no terceiro trimestre, em termos anualizados. No dia 30 de outubro, uma quinta-feira, a notícia foi transmitida várias vezes por duas emissoras de rádio especializadas em jornalismo e por um grande canal de TV. Nenhuma vez se pronunciou o adjetivo ‘anualizado’. Para o ouvinte ou telespectador desprevenido, a produção americana simplesmente diminuiu 0,3% do segundo para o terceiro trimestre. Há uma enorme diferença entre uma taxa trimestral e uma anual.
Descuidos desse tipo são comuníssimos na imprensa e ainda mais nos meios de comunicação eletrônicos. A desinformação não surpreende, quando se trata de correspondentes de rádio e TV forçados a cuidar, no dia-a-dia, de pautas inadministráveis. Em fevereiro de 1997, em Recife, esses correspondentes tiveram de acompanhar, numa corrida insana, a agonia de frei Damião, um escândalo financeiro do governo estadual e uma reunião de negociadores da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas.
O item mais fácil da pauta era a agonia de frei Damião. A maior parte da informação era proporcionada por médicos e enfermeiros e não havia muito mistério em torno do assunto. Já o escândalo financeiro envolvia questões tecnicamente complicadas, e só um repórter muito bem informado poderia oferecer uma boa cobertura. Mas aqueles garotos não podiam desfrutar desse luxo. Os pauteiros provavelmente não imaginavam suas dificuldades nem deviam estar muito preocupados com a qualidade da informação.
Noticiário distorcido
Aquela turminha batalhadora corria do hospital para as pessoas envolvidas na investigação do escândalo e em seguida para a velha sede da Sudene, onde vice-ministros de 34 países discutiam as propostas de um acordo comercial hemisférico – um assunto recheado de preciosidades como single undertaking (empreendimento único), cláusula da nação mais favorecida e GATT-plus.
Para qualquer repórter normal e razoavelmente informado, a cobertura dessa conferência já era um desafio respeitável. Os enviados especiais trabalhavam duramente para entender as discussões e davam dicas para aqueles santos correspondentes formularem perguntas em suas curtas entrevistas com os vice-ministros e outros negociadores.
Frei Damião morreu em maio, o escândalo financeiro pernambucano deu em nada e a Alca foi enterrada em 2004, graças, principalmente, aos esforços dos governos brasileiro e argentino. Quem dependeu de rádios e TVs para acompanhar aquela reunião de Pernambuco ouviu explicações pela metade e informações bizarras porque editores e chefes de reportagem dos meios eletrônicos também estavam despreparados e acabaram distorcendo o noticiário, no esforço para turbiná-lo. Quem sabia algo do assunto devia ficar bestificado, no café da manhã, ao receber a história resumida por alguns dos âncoras mais conhecidos.
‘Esforço fiscal’ inexistente
Hoje, como naquele tempo, rádio e TV são fontes de informação muito ágeis e muito úteis para a maior parte do público, mas não muito mais precisas quando a cobertura exige alguma atenção ao detalhe. Isso ocorre mesmo quando a missão é muito mais tranqüila do que aquela pauta frei Damião-Alca-escândalo financeiro. Em grande parte de sua atividade, o repórter continua sendo um mero repassador de declarações ou repetidor de chavões nunca checados.
Assim, o superávit primário das contas públicas continua sendo o resultado de um ‘esforço fiscal’, mesmo quando os números mostram apenas uma receita crescente e nenhum controle efetivo de gastos. No fim de outubro houve uma pequena variante. Um relatório mostrou superávit nominal no mês anterior. Segundo um apresentador de TV, ‘o governo, mesmo no olho do furacão, conseguiu apertar o cinto’. Mas ninguém havia apertado coisa alguma. O resultado fiscal simplesmente refletiu a combinação de um notável aumento de receita (ainda não afetada pela crise), ganhos do Banco Central nas operações de câmbio e lucros das estatais. Bastava ler o relatório, disponível desde as 10h30 daquele dia para saber disso. Boas notícias, sem dúvida, mas sem a mínima relação com qualquer ‘esforço fiscal’.
O direito do freguês
Outro belo exemplo é o noticiário sobre o investimento. O PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, continua sendo uma ‘prioridade intocável’, mesmo quando os números oficiais mostram desembolsos, até 22 de outubro, de apenas 45,7% do total autorizado para o ano – sendo a maior parte desse pagamento mera liquidação de restos do exercício anterior. Jornais também nem sempre esclarecem esses detalhes. Azar do leitor, do telespectador e do ouvinte.
Resumindo: em boa parte do tempo o público é desprotegido porque editores e chefes de reportagem só raramente examinam a notícia com atenção ao detalhe. Declarações de ministros e de outras fontes são meramente anotadas ou gravadas e passadas adiante como se fossem a mais precisa descrição dos fatos. Isso inclui explicações sobre preços agrícolas dadas por economistas – em geral do setor financeiro – quase sempre desinformados sobre agricultura e incapazes de distinguir os ciclos de produção da soja e da alface. Falou, tá falado.
Há quem prometa jornalismo crítico e apenas pratique jornalismo cri-cri, mal-humorado, sempre em busca do lado ruim de qualquer notícia. Jornalismo crítico é apenas jornalismo cuidadoso e atento ao detalhe relevante. É o serviço devido ao consumidor da informação, tão merecedor de respeito quanto o comprador de eletrodomésticos ou o cliente do encanador. O melhor profissional, em qualquer dessas atividades, é sujeito a erros, às vezes graves. Só é melhor, não é por ser infalível, mas por levar em conta o direito do freguês.
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Jornalista