Provavelmente pouca gente no Brasil ouviu falar de uma pessoa simpática de quem eu não sabia da existência até há pouco tempo. Chama-se Heather Mallick. É uma escritora e jornalista canadense que sempre tem coisas a dizer e em geral o diz muito bem, com um toque de humor e irreverência. Por causa disso acabou punida no mês passado. Mas não é preciso ter pena dela. Está muito bem, continua a fazer livros e a escrever artigos para o Guardian de Londres.
O episódio que a envolveu, levando a esse desfecho, encerra lições sobre a mídia em geral e a rede Fox News Channel (FNC), do império Rupert Murdoch, em particular. Acompanho a FNC desde que entrou no ar em Nova York, em 1996. Recrutou então o prefeito Rudy Giuliani para dar uma chave de galão em outro império de mídia, o da Time-Warner, cujo serviço de cabo em Nova York resistiu enquanto pôde à inclusão da FNC porque era dono da CNN, ameaçada pela concorrência.
Depois, como todo mundo sabe, a FNC passou a comer a CNN pelas beiradas, como um prato de mingau (a história do confronto é contada no livro Crazy like a Fox – The inside story of how Fox News beats CNN, de Scott Collins, publicado em 2004), e passou à liderança de audiência entre as redes de cabo dedicadas ao jornalismo. A opção inicial do magnata Rupert Murdoch foi aliar-se a governos conservadores (Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, Ronald Reagan nos EUA) e tirar partido disso. Nos oito anos de George W. Bush apostou tudo na histeria patrioteira pós-11/9 e se deu muito bem.
Um expurgo no avião de Obama
Como o quadro mudou depois dos dois mandatos desastrosos de Reagan, a FNC está em baixa e a CNN, em alta. E na sexta-feira (31/10) vi com surpresa a rede de Murdoch investir contra Barack Obama em nome da liberdade de expressão. É que o avião do candidato democrata, lotado nesse fim de campanha, decidiu excluir três jornalistas – um do New York Post de Murdoch, um do Washington Times da seita Moon e um do bushista Dallas Morning News.
O expurgo saudável foi encarado pelo império Murdoch, principalmente a FNC, como grave atentado à liberdade de imprensa. Só que em geral essa questão não preocupa Rupert Murdoch quando é ele próprio a desrespeitar a liberdade de imprensa. Por exemplo, há alguns anos fez um acordo com o governo da China para cobrir esse vasto e populoso território fornecendo as imagens de seu sistema via satélite, Star TV, que incluía o canal de televisão da BBC internacional.
Algum tempo depois, o regime comunista de Pequim indignou-se com uma reportagem da BBC criticando violações dos direitos humanos na China. A BBC, como se sabe, é uma emissora estatal que faz jornalismo de alto nível. O conservador Murdoch, por sua vez, é mais pragmático do que ideológico. Avisado então pelo governo chinês para retirar o canal britânico de seu serviço sob pena de cancelamento de todo o sistema via satélite, expurgou a BBC (saiba mais aqui).
Direito de dizer o que bem entende
Outro episódio que escancarou o zelo de Murdoch e sua FNC pela liberdade de imprensa aconteceu este ano, depois que o New York Times mostrou numa reportagem que, com a ajuda da campanha presidencial, a CNN dera um salto na audiência e estava praticamente empatada com a FNC. O império Murdoch reagiu com uma violenta matéria contra o Times, na qual incluiu fotos grosseiramante adulteradas para fazer parecer que os dois repórteres do jornal eram monstros de filme da Universal Pictures (saiba mais sobre o caso aqui).
Fair & Balanced (honesto e equilibrado) é o slogan do jornalismo da FNC (para muitos, piada de mau gosto). Mas também a pretexto de defender a liberdade de imprensa, a FNC faz campanha agora contra a idéia de ser forçada, através de lei, a respeitar uma fairness doctrine – doutrina que a obrigue a conceder direito de resposta a alguém que tenha sido ofendido, corrigir uma informação errada ou permitir a apresentação de uma opinião diferente da defendida pela emissora. A lei, para todos os veículos, é discutida por democratas do Congresso, fartos da falta de honestidade e equilíbrio, além de outros excessos murdochianos.
É que tanto a FNC como a Fox News Radio têm talk shows ideológicos e extremistas, como os de Sean Hannity e Bill O´Reilly. Segundo o argumento apresentado por um dos apresentadores da emissora, os telespectadores que vêem ou ouvem programas de um Hannity, um O´Reilly ou um Rush Limbaugh, o rei dos talk shows de rádio, querem só a opinião deles e nunca a de alguém que discorde deles (ver ‘Obama e os extremistas dos talk shows‘).
O jornalismo das listas negras
Isso nos leva de volta à doce Heather Mallick. Em coluna para o website da CBC, rede pública canadense de TV, ela foi irreverente sobre a candidata Sarah Palin, heroína da Fox News Channel, e insinuou, com humor, haver desajuste sexual entre os republicanos machos. A página da CBC a rigor não tem leitores nos EUA. Mas três programas da FNC orquestraram uma reação de telespectadores. E ante os ataques irracionais e raivosos, o ombudsman da CBC pediu explicações à colunista.
‘Escrevo para certo tipo de leitor canadense. Minha visão de um canadense inteligente. Não escrevo para gente que vê a Fox News’, disse Mallick. O diretor geral da CBC News, solidário com o ombudsman, alegou que ‘se fosse sátira era diferente’. ‘Não era sátira’, respondeu ela. ‘Era comentário político franco. Não sei de ninguém que tenha levado ao pé da letra que republicanos são sexualmente desajustados.’ Mas a coluna foi removida do site (veja aqui como o New York Times contou toda a história e aqui o relato dela própria, incluindo sua experiência, no passado, de uma entrevista dada a O´Reilly na FNC).
A reação orquestrada me fez lembrar o tempo do senador Joe McCarthy nos EUA. Os caçadores de bruxas mobilizavam pessoas para escrever cartas indignadas às emissoras de rádio e TV, cujos diretores decidiam demitir escritores, atores e diretores, engrossando as listas negras. O jornalismo da FNC, desde que nasceu, é herdeiro das listas negras. Faz campanhas de difamação, destrói reputações e representa exatamente o oposto da liberdade de expressão.
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Jornalista