Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Último Segundo


MÍDIA & RELIGIÃO
Alberto Dines


Significados do laicismo, 11/05/07


‘A fé é linda, a fé religiosa – revestida de rituais e solenidades – fascinante. Privilégio do ser humano, a espiritualidade é a expressão máxima da sua capacidade criadora. Não esquecer, porém, que é irmã gêmea da racionalidade.


Ainda está em aberto a discussão se Deus criou o Homem, mas é certo que o homem descobriu (ou inventou) Deus. Os Dez Mandamentos, gravados em pedra ou na memória – quaisquer que sejam seus autores ou inspiração – são a mais perfeita combinação de devoção e lógica, moralidade e sensatez, síntese absoluta dos melhores atributos da humanidade.


Por outro lado, é imperioso lembrar que a sublime fé religiosa quando convertida em poder é a matriz das teocracias, responsáveis pelas tenebrosas injustiças e as mais horrendas sangueiras. A tolerância religiosa e a separação Estado-Igreja começaram com o Iluminismo, fortaleceram-se com as revoluções americana, francesa e marcam o início da era moderna na qual a democracia funciona como o diferencial básico.


Ao declarar que o Estado brasileiro é laico (ou leigo ou secular), o presidente Lula apenas reafirmou uma cláusula pétrea das nossas constituições republicanas. Não inovou, apenas reagiu às recentes ameaças de excomunhão aos políticos que favorecerem a legalização do aborto. Não criou doutrina nova, somente lembrou ao estado do Vaticano e a seus representantes no Brasil que a democracia brasileira não pode fazer tratados ou concordatas que comprometam a liberdade de crer e descrer consagrada pela sociedade há muitas gerações. O ensino religioso obrigatório é uma violência contra o Estado de Direito, retorno ao obscurantismo a despeito das boas intenções dos seus proponentes.


Impossível adivinhar se o proclamado laicismo do presidente Lula visava também ao rolo compressor político-mediático das diferentes confissões luteranas, hoje seu aliado, o mais poderoso dos lobbies assumidos com atuação no Legislativo e Executivo. Mesmo que o compromisso secular do presidente não mirasse na direção dos protestantes, será dificilmente esquecido. O tom categórico, quase veemente, e a ausência de firulas retóricas, o converterão em referência obrigatória.


Principalmente na esfera da mídia eletrônica. Se o papa Bento 16 tem o pleno direito para assumir-se como ‘media-watcher’ (observador da imprensa) e reclamar da mídia que ridiculariza a castidade, outros têm o mesmo direito de reclamar da submissão da quase totalidade da mídia eletrônica brasileira às diferentes confissões religiosas.


Um Estado laico exige uma mídia eletrônica laica já que é o poder concedente de todos os canais de radiodifusão. O princípio da concessão pública baseia-se na universalidade dos serviços a serem oferecidos. Uma emissora de rádio ou televisão não pode privilegiar determinada crença. Isso vale para a Rede Record, para a Rede Globo, para as redes evangélicas e católicas que dominam nosso espectro televisivo.


Um chefe de governo laico não pode curvar-se aos dogmas, é automaticamente um defensor da busca da verdade. A liberdade de expressão é a principal ferramenta para buscar a verdade. Isso deveria estar inscrito debaixo do vidro das mesas de todas as autoridades.


A liberdade de pesquisa é outra forma de buscar a verdade: nosso País não pode ficar de costas para a ciência. Não pode ignorar os avanços da genética e embargar as pesquisas com células-tronco.


O laicismo anunciado pelo presidente da República não pode ser visto como escolha isolada, episódica ou relativa. É uma opção transcendental, absoluta, compreende um vasto leque de desdobramentos e coerências. O compromisso de um Brasil efetivamente laico, paradoxalmente, pode ser uma valiosa e inesperada contribuição da visita do papa Bento 16.’


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