A maioria dos jornalistas concorda que para exercer esta profissão da palavra e das idéias somente com um curso específico da área pode ser permitido pelos enormes ‘riscos’ que pessoas não preparadas poderiam fazer na mídia. Perigos, diga-se de passagem, não parece que tenham sido inibidos pelos profissionais da área.
Mas ao mesmo tempo assistimos à propagação de coisas anti-científicas sendo divulgadas, como aquelas que se propõem ser alternativas ao conhecimento científico na medicina, na biologia, no tratamento das pessoas etc…
O jornalista possui a obrigação, por formação, de entrevistar os dois lados. O que na verdade ocorre é uma confusão, pois ele coloca no mesmo nível o científico e a alegação frívola e sem fundamento. Para saber o peso disto, ele deveria primeiro entender da matéria da qual está expondo os alegados ‘dois lados’. Não sendo educado no assunto que trata, mas apenas na profissão da qual ele foi formado, jornalismo, não faz idéia nem sabe da importância do que se trata fundamentalmente.
Assim, para o jornalista, faz todo o sentido colocar no mesmo peso a palavra de uma mãe-de-santo e de um psiquiatra de uma sociedade científica. De um ervatário e de um farmacêutico. E, pior, o leitor acredita que o jornalista, quando faz este tipo de confusão, também saiba do assunto que está misturando para o leitor ‘decidir’ que ‘lado’ é certo.
Anos de estudo
O que mostra o paradoxo da sua posição profissional. Para se comunicarem, as pessoas deveriam antes fazer um curso universitário para exercer a profissão de jornalista. Seus cursos universitários seriam insuficientes. Mas para opinar sobre assuntos sérios, que podem comprometer a saúde das pessoas, e até muitas vezes resultam em morte, nada disto é preciso, na opinião que o jornalista leva ao leigo pelo seu ‘peso profissional’ ao desinformado leitor (para tanto, ele procura a informação com outros).
Depois de salientar este paradoxo entre o jornalista e a responsabilidade, ‘só criada por um curso universitário’, trago o motivo do meu comentário nesta área. Na matéria que saiu no caderno ‘Equilíbrio’, ‘Cartilha alerta para uso excessivo de ervas medicinais‘, Julliane Silveira, da Folha de S.Paulo, (30/10/2008) faz uma das raras chamadas para o perigo que deveria fazer parte do dia-a-dia do jornalista nesta área.
A idéia que os mesmos passam para a população é que apenas medicamentos e tratamentos feitos por médicos sejam perigosos, motivados por interesses financeiros e que podem dar errado ou serem cometidos erros. Que a solução mágica, frente aos perigos destes profissionais, é procurar as alternativas que se opõem à ciência, pois estas seriam naturais e tudo que é natural, iludem aos leitores, é seguro e correto. Numa área que até a simples espera pode vir a ser danosa e fatal.
No entanto, o que a reportagem apresenta é uma abordagem desenvolvida pelo Instituto de Biociências da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu, que preparou uma cartilha para alertar sobre os principais efeitos colaterais das ervas mais consumidas na região. Ao contrário da comunicação oral e escrita, que deveria todos ser capacitados a realizar ao compartilhar as suas idéias, que o jornalista não aceita como verdade, a prática da medicina e de outras profissões requer muitos anos de estudo para que a pessoa possa começar a entender do que está fazendo.
Mistura de diversas substâncias
Ninguém nasce sabendo pilotar um Jumbo, ou sendo um controlador de vôo, e muito menos vem ao mundo entendendo de doenças, diagnósticos, tratamentos e remédios. O que certamente não exige o jornalista ao entrevistar um astrólogo, médium, mateiro, vendedor de ervas, um esotérico ou um colega que se arvora o direito de propagandear pela defesa das ‘alternativas: saúde’.
É o que demonstra aos leigos esta cartilha, que coisas tão banais como confrei (Symphytum officinale) ou erva doce (Pimpinella. anisum) podem trazer conseqüências desagradáveis ou mortais, às vezes, pela crença errada de que o que é natural não provoca dano. Como se a morte, a doença e o sofrimento não fossem totalmente naturais. O primeiro provoca câncer de fígado se ingerido e o segundo, dado em chás para recém-nascidos, pode levar à convulsão.
Mas, ao contrário do título da matéria que fala em uso excessivo de ervas, na verdade o perigo está mesmo no uso corriqueiro dos mesmos. Afinal, nem curandeiro, nem médium, e muito menos as próprias pessoas que se automedicam, sabe do que estão padecendo, se realmente estão enfermas e muito menos o que contêm tais ervas receitadas por curiosos, conhecidos de ônibus, vizinhos, ervatários, erveiras e erveiros, todos muito bem intencionados, mas despreparados para fazer diagnósticos de enfermidades e prescrever tratamentos com coisas que conhecem menos ainda. A maioria dos alegados efeitos não é comprovada cientificamente ou ainda não foi estudada. Acrescentando ainda o perigo da mistura das diversas substâncias presentes nestes chás desconhecidos com outras ervas, inclusive com medicamentos farmacêuticos.
Exercício profissional sem habilitação
Veja que é natural cair avião, adoecer e morrer. Apenas o conhecimento pode evitar que estas coisas venham a ocorrer com o uso do saber correto e a aplicação racional do mesmo. Se mesmo assim podem ocorrer falhas, as chances de usar o desconhecimento como forma de combate de coisas desconhecidas será muito pouco provável de se obter sucesso pelo acaso.
Até a Constituição de 1988, existia a proteção da população contra este tipo de comércio, que estava extinto. Após a Constituição Cidadã, a volta do curandeirismo voltou com toda a força com que se criam ações protegidas pela impunidade e ajudadas pela imprensa.
O curandeirismo, segundo previsto no Código Penal brasileiro, é a prática de prescrever, ministrar ou aplicar, habitualmente, qualquer substância, bem como usar gestos, palavras ou qualquer outro meio (não inserido na prática médica) para cura ou fazer diagnósticos sem ter habilitação médica. No Brasil, está previsto no artigo 284 do Código Penal brasileiro.
Diz o artigo 282 do Código Penal: ‘Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica. Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites.’ Em seu parágrafo único, determina-se que se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.
O crime em exame tem como precípuo elemento condicional a falta de autorização legal ou a transposição dos limites desta. Quando ocorre a primeira hipótese, o que se apresenta é o exercício profissional sem qualquer título de habilitação ou sem registro deste na repartição competente.
‘Erros conceituais’
Veja publica esta semana um alerta, um pânico: ‘Medicina – Remédios: O que há de errado com eles? Sustos difíceis de engolir. A quantidade de medicamentos retirados do mercado por causa de efeitos colaterais graves alarma os consumidores e lança a pergunta: até que ponto pode-se confiar nos laboratórios?’
Mas jamais vimos tal reportagem relatando os danos e a perdas de dinheiro, saúde e vidas pelos usuários da medicina alternativa. A razão é que para isto o jornalista deveria correr atrás com responsabilidade, e os que apregoam tais benefícios das ervas e terapias alternativas simplesmente não estão interessados nem fazem pesquisa para descobrir isto. Parece, então, que existe uma segurança com elas, que não existem apenas interesses financeiros nos que vendem fórmulas mágicas ‘naturais’, quando, na verdade, simplesmente a imprensa ignora o que alardeia como uma real ‘alternativa’.
Infelizmente, aqueles que deveriam por obrigação profissional levar informações de relevo aos cidadãos continuarão ignorando a responsabilidade que devem ter com as pessoas para as mesmas se protegerem. Para tanto deveriam ter uma educação de qualidade, coisa que nossas escolas públicas não conseguem fazer, mas consegue promover o ensino religioso, o cultivo do pensamento mágico na solução das questões da vida. Não seria um curso de jornalismo que forneceria o conhecimento do mundo que o mesmo desconhece.
Neste Observatório, o professor Rubens Pazza, da Universidade Federal de Viçosa, publicou seu artigo: ‘Erros conceituais na divulgação científica‘, em 28/10/2008.
A inativação da toxina
Trago aqui a minha contribuição à crítica a Folha de S.Paulo, em uma informação errada dada pela Folha on-line: ‘Cotidiano’ (19/09/2008): Vigilância reprova 65% de amostras de palmito em conserva’, por Ricardo Westin, da Folha de S.Paulo. Dizia a matéria:
‘Antes de comer o palmito em casa, a recomendação é fervê-lo durante alguns minutos – o calor mata a toxina botulínica.’
No que reclamei sobre o erro de matar toxinas: ‘O calor mata a toxina botulínica.’ A toxina não é viva, e sim, a bactéria que a produziu. E apenas aquecimento destrói a toxina, mas não a bactéria. Por isto que elas contaminam as conservas que não cozinham em altas temperaturas, como o palmito.’
Resposta:
‘Paulo,
agradecemos sua manifestação. A editoria pondera que não há erro e esclarece:
`Consultamos duas especialistas que esclareceram que, como informa a matéria, o aquecimento do palmito pode inativar a toxina botulínica (veja abaixo as respostas na íntegra). O texto usou a palavra `mata´ no sentido de destruir, eliminar, acabar etc. (aceito pelo dicionário abaixo), e não no sentido de tirar a vida.
Definição de `matar´ pelo dicionário Aurélio: 5. Fazer cessar; extinguir, apagar.´’
Valéria C. A. Junqueira, pesquisadora do Instituto de Tecnologia de Alimentos, Secretaria de Agricultura e Abastecimento – ‘A toxina botulínica (também conhecida como botox) é uma sustância de natureza protéica, sensível ao calor, sendo inativada por aquecimento à temperatura de 80ºC durante 10 minutos, dependendo da quantidade de toxina presente e do coeficiente de penetração de calor no material onde ela se encontra, tais como tipo de alimento e embalagem. Esta toxina é produzida pela bactéria Clostridium botulinum, microrganismo anaeróbio metabolicamente ativo, capaz de formar esporos altamente resistentes ao calor e permanecer metabolicamente dormente até encontrar condições favoráveis para germinação, multiplicação e produção de toxina. Os alimentos em conserva devem ser tecnologicamente produzidos de forma tal que, principalmente em relação a esta bactéria, os esporos sejam controlados pela total eliminação ou por inibição através de fatores impróprios a seu desenvolvimento, como a acidificação, no caso do palmito em conserva. Não podemos colocar nas mãos do consumidor tal responsabilidade, ou seja, deixar por conta dele o cozimento de um produto em conserva para inativação de uma toxina tão potente quanto a botulínica.’
Vera Curci, pesquisadora da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, Secretaria da Agricultura, Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Araçatuba – ‘A toxina botulínica produzida pelo clostridium botulinum pode ser inativada pelo calor a 100°C por 20 minutos. Já o esporos da bactéria é muito resistente ao calor, mas também podem ser destruído quando submetido a temperatura de 121ºC por 15 minutos. É importante saber que a ingestão da bactéria não causa o botulismo, mas sim, a ingestão da toxina pré-formada pelo C. botulinum. Com exceção do botulismo infantil, quando crianças com menos de um ano de idade podem ocasionalmente ter a doença, com a ingestão de mel contaminado pelos esporos da bactéria.
Atenciosamente,
Departamento de Ombudsman – Folha de S.Paulo
Al. Barão de Limeira, 425 – 8o. andar’
Como não se trata de assunto com liberdade poética, mas de um texto de informação científica, está grosseiramente errado. É só verificar a informação das consultoras (que o jornalista se socorreu por não entender do que fala) que nenhuma das duas referiu: matar a toxina. Um absurdo em qualquer texto médico ou de biologia. Na mandioca-brava (ou mandioca-amarga) (manihot utilissima), o cozimento nem ‘mata’ e nem inativa a presença do ácido cianídrico. Só mesmo na Folha, para se encontrar esta informação imprecisa. Mas está lá.
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Médico, Porto Alegre, RS