Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma empresa, dois jornais. Um abismo

Quem pensa que os jornais produzidos por uma mesma empresa falam sempre a mesma língua, diferindo apenas na linguagem adotada de acordo com o seu “público-alvo”, teve uma surpresa diante do abismo entre O Globo e o Extra na cobertura do assassinato do médico Jaime Gold, que pedalava pela Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio, no início da noite de terça-feira (19/5). Sobretudo porque, no mesmo dia, dois jovens – um adolescente de 13 e um rapaz de 24 – foram assassinados durante uma operação da Polícia Civil no morro do Dendê, na Ilha do Governador. O médico morreria na madrugada seguinte, depois de horas na mesa de cirurgia.

Na quinta-feira (21/5), O Globo destacava na primeira página o “crime na Lagoa” e a “tragédia anunciada”, dedicando-lhe nada menos do que cinco páginas internas. A suíte das mortes no Dendê mereceram apenas duas colunas espremidas no meio de outra página interna, ainda assim assinadas – como na véspera – por um repórter do Extra.

No mesmo dia, o Extra fez bem diferente: expôs no alto da primeira página o “crime bárbaro na Lagoa”, mas destacou o apelo: “Só não se esqueçam de Gilson e Wanderson”, os dois rapazes mortos. Logo abaixo, justificou: “Como em qualquer lugar do mundo, crimes em pontos turísticos têm maior repercussão. Mas, no Dendê, mães choram mortes de seus filhos em ação da polícia e esperam que caso não caia no esquecimento”. A justificativa servia também para descartar, de maneira sucinta e didática, a eterna discussão sobre o valor da vida – e, consequentemente, da morte – conforme a região geográfica e o status social.


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No dia seguinte, o abismo continuou: enquanto O Globo anunciava a prisão de um adolescente suspeito de matar o médico, enfatizava a sua ficha corrida (“16 anos e 15 crimes”), retomava, em editorial, a carga a favor da redução da maioridade penal e publicava uma charge que chegava ao cúmulo de comparar os ciclistas na Lagoa aos prisioneiros do Estado Islâmico, o Extra escancarava a manchete: “Sem família, sem escola”, apontando as “duas tragédias antes da tragédia”. O texto-legenda abaixo da foto, que ocupa metade da página e mostra o garoto conduzido por policiais, fala das 15 passagens pela polícia, da ausência do pai, da mãe, catadora de latas, indiciada por deixar o filho com fome na rua, e do abandono da escola.

Curiosamente, a reportagem do Globo ia no mesmo sentido de apontar a trajetória de transformação “da criança pobre em suspeito de um brutal assassinato”, mas a edição sugeria o contrário: parecia que a “escalada da crueldade” destacada na manchete da página interna dizia respeito à escolha do rapaz pelo mundo do crime.

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No sábado (23/5), o Extra voltava a destacar na primeira página o caso da “tragédia antes da tragédia”, para tratar da situação da escola onde o rapaz estudava. Logo abaixo, noticiava o corte de verbas para a educação. No dia seguinte, sem o mesmo destaque, mostrava que 95% dos jovens infratores não haviam completado o ensino fundamental e citava o crescimento do número de apreendidos: 8.380 durante o ano passado, segundo o Instituto de Segurança Pública, “uma média de 23 por dia”. Um índice que tende a crescer: se “nos quatro primeiros meses do ano passado, 2.445 menores foram detidos, neste ano o número chega a 3.141 – um aumento de 28%”.

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Enquanto isso, no mesmo dia, O Globo recorria a “especialistas” para tentar traçar o perfil psicológico desse tipo de criminoso e destacava a fala de uma psicóloga sobre a “impunidade”, ignorando os números divulgados pelo Extra. No dia seguinte (segunda, 25/5), destacava mais um ataque com faca – uma tentativa de assalto num ônibus –, o oitavo em oito dias, como se vivêssemos uma onda desse tipo de crime, e voltava a incentivar a aprovação do projeto de lei que criminaliza o uso de armas brancas, como se fosse uma medida simples: bastaria pensar em quantas pessoas utilizam facas em situações banais do cotidiano – o vendedor de coco verde, o sujeito que promove um churrasco numa praça –, a não ser que a ideia seja também criminalizar essas atividades.

Já o Extra voltava a investir no selo “A tragédia antes da tragédia” e recuperava a história do menino franzino detido com um colega após roubar um cordão de ouro, em março, e fotografado de costas por um policial, numa delegacia. Dois meses depois, continua fora da escola, cometendo pequenos delitos pelas ruas.

Desagradar o público

Mantive neste artigo o título de minha primeira publicação no Facebook a respeito desse tema por causa do debate que se seguiu: muitos elogiavam a atitude do Extra mas muitos também faziam pouco caso dela, seja porque enxergavam ali algum objetivo oculto – afinal, trata-se de um jornal “da Globo” –, seja porque entendiam que cada publicação se dirigia a seu público, e por isso seria perfeitamente natural a diferença de enfoque.

Sobre a teoria conspiratória, não vale a pena argumentar, inclusive porque é inútil enfrentar convicções, embora sempre valha a pena dizer que as intenções importam muito menos do que o resultado. Mas é necessário desfazer a lógica do outro raciocínio, por dois motivos fundamentais: primeiro, porque um jornal precisa fazer jornalismo, e isso significa frequentemente desagradar o seu público. Se um jornal diz apenas o que seu público quer ouvir, ele o aliena: é preciso apresentar-lhe as contradições da sociedade e não alimentar a ilusão de que é possível viver numa bolha, de que os malfeitores são uma espécie alienígena que vem atacar os cidadãos “de bem” e que basta trancafiá-los – ou exterminá-los – para passarmos a desfrutar de um mundo harmonioso como o de um anúncio de margarina.

Segundo, porque uma olhada nos comentários no site e, principalmente – dado o volume incomensuravelmente maior –, na página do jornal no Facebook seria suficiente para verificar que, se um jornal deve responder às expectativas de seu público, o Extra fez exatamente o contrário. É o que dá o nó nesse raciocínio canônico. Mercadologicamente, seria uma insensatez. Mas, jornalisticamente, era o que precisava ser feito.

A propósito, a entrevista com o diretor de redação do jornal, Octavio Guedes, publicada neste Observatório (ver “‘Jornalismo não é concurso de Miss Simpatia’”), ajuda a esclarecer vários pontos dessa polêmica. Afinal, não é de hoje que o Extra se comporta assim. A perseverar nessa linha, dará uma excelente contribuição para o jornalismo, mas terá embates diários tanto com uma parcela significativa de seu público quanto com a crítica externa, que também recusa a hipótese de discutir questões sociais diante de crimes bárbaros. (Esses, a propósito, devem ter ficado satisfeitos com a reação das nossas autoridades: o prefeito a dizer que “criança, menor, praticando crime é problema de polícia”, num brilhante retorno aos tempos da República Velha, e o secretário de Segurança a afirmar que é inadmissível uma situação dessas num lugar como a Lagoa Rodrigo de Freitas, o que, de tão simplório, dispensa comentários).

Desarmar o ódio de classe

O que o Extra fez foi tentar demonstrar que nada é “simples assim”, como tantos gostam de pensar para se livrar rapidamente de qualquer ameaça de questionamento às suas próprias certezas. Foi tentar lançar luz para além do imediatamente visível e chamar a atenção para a necessidade de compreender como se cultiva a exclusão que, muito previsivelmente, explode em violência. Nem sempre, é claro, porque não há relação automática de causa e efeito: mas justamente por isso é preciso entender que as reações humanas são variadas e, muitas vezes, surpreendentes. Sobretudo na adolescência, sabidamente uma fase extremamente turbulenta para qualquer um.

Daí, aliás, o equívoco do raciocínio no qual a pessoa se toma como referência para o comportamento alheio, no melhor estilo do líder que não pede a seus comandados nada que ele mesmo não seja capaz de fazer, como se todos estivessem em pé de igualdade: “Se eu passei por dificuldades e não roubei nem matei, por que alguém faria isso?”

Seria possível indagar, como fez há muito tempo a juíza Maria Lúcia Karam, “por que os indivíduos despojados de seus direitos básicos, como ocorre com a maioria da população de nosso país, estariam obrigados a respeitar as leis”. Ou lembrar da observação da socióloga Vera Malaguti Batista, também há muito tempo, a respeito da surpresa diante da crueldade de casos como o do ataque na Lagoa: “Por que achar que ‘eles’ se importam conosco? ‘Nós’ não nos importamos com ‘eles’”.

Entender as raízes do ódio de classe – o ódio, não a luta, necessária e incontornável em qualquer sociedade de classes, e que se expressa nas mais variadas formas – é o primeiro passo para desarmá-lo. Por que, então, a rejeição ao debate? Por que confundir a atitude do jornal com uma tentativa de defender, justificar ou vitimizar o agressor?

O outro lado, e mais outro

Entretanto, ao falar nas “duas tragédias antes da tragédia”, o Extra acaba assumindo, implicitamente, que o adolescente detido é de fato culpado: afinal, teria sido ele a provocar a tragédia da morte do médico. Pode ser, mas não há nada mais comum, na rotina policial, do que pegar o primeiro suspeito, ainda mais se tem uma ficha recheada, para exibi-lo e dar uma satisfação rápida ao público, em crimes de grande repercussão. Também as informações sobre a mãe do rapaz, que o teria negligenciado, aparentemente não procedem. O que não retira a força da denúncia sobre a ausência de apoio familiar – afinal uma mulher que sustenta sozinha quatro filhos como catadora de recicláveis enfrenta dificuldades inimagináveis para quem jamais viveu essa situação –, mas altera o julgamento que se pode fazer dessa mãe.

Reportagem da Agência Brasil (24/5, ver aqui) dá essa outra versão, ao finalmente entrevistar Jane Maria da Silva e apresentá-la como uma ativista do Fórum Social de Manguinhos, no dia de lançamento da cartilha “Manguinhos tem fome de direitos”. Um vídeo compartilhado no Facebook, realizado em setembro do ano passado, mostra a participação dela num encontro promovido regularmente pelo pessoal da Fiocruz – no caso específico, para tratar do impacto das obras do PAC na saúde dos moradores, e o que se diz ali, em menos de 20 minutos, sintetiza a enormidade dos problemas a se enfrentar: como tantas carências se conectam, num manancial de pautas que poderia e deveria alimentar a imprensa sensível às questões sociais.

A intervenção de Jane está na altura do décimo minuto do vídeo. É evidentemente a pessoa mais cansada, mais abatida, com mais dificuldade de se expressar, em comparação com a fluência das demais moradoras. Vista hoje, a intervenção dela ganha outro sentido: só agora, diante da prisão de um dos seus filhos, é que podemos entender o peso de sua preocupação com a falta de oportunidade de estudo, trabalho e lazer para os jovens infratores. Porque sofria isso na pele, seu filho era um deles.

De quem é a culpa?

Mas ainda que não fosse assim. Ainda que essa mulher fosse como a mãe do menino Y., de 12 anos, que o Extra levou agora novamente para a primeira página (ver aqui), o menino apreendido há dois meses, que conseguiu se safar de ser encaminhado para um abrigo porque enganou as autoridades dizendo que tinha 6 anos, e convenceu, de tão franzino que era.

Vejamos este trecho da reportagem:

“No dia em que foi detido – e, segundo ele, agredido pelos PMs –, foi liberado após sua mãe ir buscá-lo na delegacia. Dependente química, a mulher, de 26 anos, tem outros dois filhos e acabou de voltar à favela depois da quarta internação em clínicas de reabilitação. O pai de Y. morreu, vítima de tuberculose, há dez anos. Encontrar o menino na casa onde moram seus irmãos, sua mãe e seu avô, um pedreiro de 55 anos, é improvável: às vezes dorme numa quadra de futebol no alto do morro ou nas ruas, outras – como ontem – só chega em casa às 6h, depois de voltar “chapado” do baile funk da favela”.

Pensemos então em como as coisas se reproduzem. Recordemos o quase-monólogo de Anna Magani em Mamma Roma, de Pier Paolo Pasolini:

Sabe por que meu marido, o pai de Ettore, era um canalha? Porque a mãe era agiota e o pai, ladrão.

E por que a mãe era agiota e o pai, ladrão?

Porque o pai da mãe era um carrasco e a mãe da mãe uma mendiga. A mãe do pai, uma cafetina e o pai do pai, um dedo-duro.

Todos miseráveis, eis por quê! Se fossem ricos, seriam pessoas de bem.

E então, de quem é a culpa?

Pasolini tocava como poucos o cerne das questões, com imagens despojadas e eloquentes: Roma, a cidade brilhante lá no fundo, e em primeiro plano a aridez da periferia, os prédios degradados, os campos de terra em que a adolescência desgarrada do pós-guerra jogava bola, fumava, se drogava e se perdia. Também como no iraniano Filhos do paraíso: a tentativa de manter a dignidade na mais absoluta carência, as casas pobres e o pequeno comércio, como se aquela fosse a imagem de Teerã, e de repente o pai resolve buscar trabalho como jardineiro e leva o filho na garupa da bicicleta e começa a pedalar pelo centro de edifícios luminosos de vidro e pelas zonas residenciais de ruas arborizadas e mansões exuberantes. Uma beleza que se torna opressiva pelo contraste com a vida em que tudo é falta.

“Até quando?”, perguntamos, chocados com a morte estúpida na Lagoa. Sim: até quando esse abismo?

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)