Um jornal pode apresentar a opinião que lhe convir – ou que convir ao dono. Isso não é enganar o leitor, é ser verdadeiro com seu público. Mas apresentar opiniões baseadas em informações erradas e distorcidas é mais do que enganar, é distorcer e adaptar a realidade às suas opiniões. Foi o que ocorreu no editorial ‘O fracasso da greve na USP‘, do O Estado de S.Paulo de domingo (28/6).
O texto começa fazendo referência a um protesto que teria sido o maior até então, organizado por grevistas. Mentira. O ato de 200 alunos que saíram da FEA até a Escola Politécnica foi realizado por alunos que protestavam contra a greve, como o portal do próprio grupo noticiou (ver aqui). Em segundo lugar, o maior ato organizado pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) ocorreu no dia 18/6, reuniu entre 1,2 mil e 5 mil participantes e que inclusive foi noticiado pelo próprio jornal (ver aqui). Ou seja, na verdade, o maior ato organizado por estudantes da USP foi a favor da greve e reuniu, por baixo, 600% a mais de alunos que o ato antigreve.
Ampliação de poder
É um grande erro afirmar que não há legitimidade nos movimentos estudantil e sindical na USP baseando-se no fato de que só três instituições de ensino pararam. Só uma delas, a FFLCH, reúne 20% de todos os alunos da USP (incluindo na contagem os campi do interior). Além do que, é preciso discutir o conceito de legitimidade. Se realmente a maioria é contra a greve, porque essa grande maioria não aparece em uma assembleia dos estudantes para votar não à greve? É preciso lembrar que as assembleias, apesar de organizadas pelo DCE, pautam o movimento como um todo, e os estudantes só vão se organizar em torno de algo se na assembleia for decidido dessa forma. Como pode não ter legitimidade um movimento que abre espaço para todos os estudantes falarem e votarem? Ou o ato de 200 estudantes da FEA à Politécnica tem mais legitimidade que a manifestação da Avenida Paulista?
É de se espantar também que um jornal de tamanha projeção nacional não defenda a democracia em qualquer instância. A democratização exigida na USP é justamente anticorporativista, ao contrário do que o editorial afirma. Uma demonstração desse corporativismo é o fato de os diretores das unidades serem escolhidos em uma lista tríplice pela reitora, o que cria uma dependência política de cada diretor em relação à reitoria, como se devesse favores a ela.
O editorial também coloca a retirada do poder dos professores titulares como algo ruim. Em primeiro lugar, não há prova de que mérito acadêmico garanta que o professor seja um bom administrador. E como seria possível ser ruim a ampliação do poder para outros professores, se estamos na universidade mais importante a América Latina? Ou será que temos uma maioria de incompetentes no corpo docente da USP?
Erro crasso
Também é difícil entender porque o jornal é contra a democracia participativa, ou o ‘participacionismo’. Na Unicamp, neste ano, todos os professores, alunos e funcionários puderam votar no professor que queriam para reitor. O resultado foi submetido ao governador – o que ainda é uma distorção, já que tal submissão interfere na autonomia universitária, mas, ainda assim, um exemplo de que é possível, sim, ter uma universidade pública de alta qualidade como a Unicamp com democracia participativa interna. O processo da consulta foi noticiado também pelo mesmo Estadão (ver aqui).
O editorial comete um sério erro de informação ao afirmar que os funcionários reivindicam a efetivação de funcionários sem concurso. Em primeiro lugar, os cargos aos quais o editorial se refere já estão efetivados, pois todos os funcionários da USP, tendo passado por concurso legal ou não, trabalham sob regime da CLT. Em segundo lugar, os funcionários que estão ameaçados de perder o emprego fizeram, sim, concurso público, aberto pela Reitoria da USP. São concursados, mas eles não sabiam que a Reitoria não havia enviado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a proposta de abertura dos cargos, conforme determina a lei.
Ou seja, o erro foi da Reitoria, que não submeteu a criação de cargos à ratificação da Assembleia Legislativa, criando cargos que não deveriam ter sido criados. Os funcionários que entraram na USP por esses concursos não sabiam disso e não podem ser responsabilizados pela irresponsabilidade com o estado por parte da Reitoria. O erro do editorial é tão crasso que, na última semana, em reunião com o Fórum das Seis (entidades representativas dos servidores das três universidades estaduais), a própria Reitoria se comprometeu a entrar na Assembleia Legislativa com proposta de alteração da legislação para garantir os empregos criados pela Reitoria ilegalmente.
Informações incorretas
O texto erra na informação novamente ao afirmar que a Univesp vai oferecer cursos de ensino superior aos ‘segmentos desfavorecidos’. Os egressos nos cursos da Univesp entrarão por prova da Fuvest, que será aberto a toda a população. Ou seja, se tomarmos o espectro sócio-econômico dos egressos via Fuvest, veremos que a maioria é de classe média e média-alta, dado que geralmente são aprovados os que tiveram condições de pagar por uma boa qualidade de ensino.
O processo para a aprovação no vestibular do curso da Univesp não será diferente. Só terá uma diferença para professores que já dão aula na rede pública: eles ganharão um bônus de 9% a ser acrescido de seu total de pontos marcados no vestibular. Isso não significa que se garantirá a entrada de ‘segmentos desfavorecidos’. Além do que, este bônus é menor que o bônus do Inclusp, que pode chegar a 12% do total de pontos marcados, e que mesmo assim até hoje só garantiu que, no último ano, 30% dos aprovados fossem egressos da rede púbica. O que também não garante a seleção de camadas sociais mais baixas, já que muitos desses egressos da rede pública foram os que estudaram em escolas federais, de alta qualidade comparado às escolas estaduais, e para as quais há um processo seletivo de entrada que também seleciona para a entrada no colegial os que tiveram oportunidade de ter uma educação básica de qualidade, praticamente inexistente na rede pública.
Mais um erro do editorial: os cursos da Univesp têm como finalidade formar professores, e não agraciar as classes mais desfavorecidas.
Além de toda a argumentação que quer provar que o movimento estudantil e sindical fracassou na USP estar baseado em mentiras, como mostrado acima, pergunto como esse movimento pode ter fracassado se, na última semana, a Reitoria se comprometeu a cumprir várias pautas reivindicadas pelos funcionários, como: 1) garantir por mudança em lei os empregos que ela criou ilegalmente; 2) garantir que os servidores que trabalham na creche para filhos de funcionários sejam profissionais especializados para tal atendimento; 3) aumentar o vale-alimentação; 4) criar forma de garantir a saúde do trabalhador na USP, que em alguns locais, como no restaurante central, têm problemas de lesão por esforço repetitivo por conta de más condições de trabalho (ver aqui).
A propagação de informações incorretas compromete toda a argumentação colocada no editorial e é danosa para um debate qualificado sobre a real situação política dentro da universidade. É nosso direito, como leitores, ter acesso a informações verídicas para que a formação de opiniões não reafirme injustiças.
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Estudante de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP