Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

TENDÊNCIAS
Ethevaldo Siqueira

Entre o jornal do futuro e o futuro do jornal

‘As novas gerações quase não lêem jornais. A tiragem mundial dos periódicos cai continuamente há mais de 20 anos. É possível que, antes de 2030, a maioria dos jornais já tenha migrado para a internet. No futuro, toda informação tende a ser eletrônica ou virtual. O período de transição, que já começamos a viver, deverá ser conturbado sob todos os aspectos.

Eis aí algumas das conclusões de um debate de que participei com um grupo de cinco jornalistas, profissionais experientes, especializados em comunicações e tecnologias digitais – durante o NAB Show, em Las Vegas, há 10 dias. Motivados por uma excelente palestra de Alvin Toffler, resolvemos debater algumas de suas idéias sobre o jornal do futuro, mas livremente, sem qualquer pretensão científica. Na verdade, quebramos um tabu, o de que a mídia não discute seus problemas nem seu futuro.

Em nosso consenso, o jornal impresso ainda tem uma sobrevida de 20 ou 30 anos, não necessariamente como meio de comunicação de massa, mas como veículo destinado a públicos específicos, de segmento ou de nicho, voltado para a análise, a reflexão e o debate de grandes temas. No meio do processo de transição, por volta de 2015, boa parcela dos jornais de grande público já deverá estar sendo impressa em papel eletrônico ou em vias de tornar-se totalmente virtual.

Por sua natureza industrial, o jornal impresso de hoje não pode competir, em velocidade, com a informação eletrônica e virtual, do rádio, da TV, das novas redes sem fio e, em especial, da internet. Nem haveria sentido em repetir, no dia seguinte, tudo que o cidadão já ouviu no rádio, viu na TV e leu na internet. O espaço em que jornal continua imbatível é o da análise e da interpretação competente dos fatos, de suas causas e conseqüências.

Recordemos que, ao longo do século 20, o jornal sobreviveu ante a chegada de dois grandes concorrentes: o rádio e a televisão. O terceiro e maior desafio veio nos anos 1990, com a internet, que representa ao mesmo tempo uma forte ameaça e uma incrível oportunidade. É bom lembrar, no entanto, que o rádio não matou o jornal, a TV não matou o rádio e, com certeza, a internet não irá matar o jornal, embora deva impor-lhe reformulações profundas.

O JORNAL DE 2020

Que reformulações serão essas? Por volta de 2020, o jornal virtual do futuro deverá ter consolidado sete mudanças fundamentais:

1) passar de produto físico a virtual;

2) evoluir de conteúdo predominante noticioso para o de análises, reflexões e discussões de grandes temas;

3) concentrar-se mais na defesa de valores éticos e sociais do que de posições político-ideológicas;

4) elevar sempre os padrões de qualidade de todos os conteúdos e de credibilidade das informações;

5) evoluir do modelo de negócio baseado na publicidade tradicional, para um novo tipo de publicidade, mais próximo do estilo do Google;

6) estimular a participação colaborativa do leitor, em particular de especialistas de alto nível, como na Wikipédia;

7) estar disponível, de forma ubíqua, em qualquer computador, laptop, celular, iPod e outros dispositivos portáteis.

CONVERGÊNCIA

Do ponto de vista tecnológico, todos os meios de comunicação – jornal, revista, rádio, TV, podcast, blog ou a internet – convergem. Conseqüentemente, não há mais sentido em tratá-los como se fossem setores ou segmentos autônomos, estanques ou separados. A fusão de mídias é total, como resultado do processo de digitalização da voz, que reduz tudo a bits: sons, dados, textos, imagens e vídeo. E mais: todas as formas de comunicação já adotam o protocolo IP da internet.

Graças a essa convergência, mesmo num país emergente como Brasil, fazemos hoje coisas que eram simplesmente impensáveis em 1990, como acessar, a qualquer instante, de nosso desktop ou laptop, os maiores jornais ou revistas do Brasil e do mundo, emissoras de rádio ou de TV, bancos de dados, enciclopédias, sites de universidades ou do Vaticano. E, com a mobilidade do celular e de outras redes sem fio, já começamos a dispor desse jornalismo eletrônico nascente, que nos traz informação, opiniões e entretenimento anytime, anywhere. Como negar a realidade e o impacto da convergência de mídias?

Quando leio a massa de bobagens e agressões gratuitas contida na maioria dos comentários postados em blogs e sites de relacionamento, fico mais cético com relação aos resultados práticos da interatividade que os novos meios começam a proporcionar ao grande público.

Mesmo a contribuição dos ‘repórteres virtuais’ ou prossumers (cidadãos produtores e consumidores ao mesmo tempo, no conceito de Alvin Toffler) não é das melhores. Assim, em muitos casos, a interatividade do jornal do futuro, pelo menos inicialmente, pode ser um retrocesso.

Por fim, uma advertência minha e de meus colegas do NAB Show: não temos nenhuma garantia de que todas essas coisas venham, realmente, a acontecer, pois, como dizia Arthur C. Clarke, com sua fina ironia, é muito difícil fazer previsões confiáveis. Especialmente sobre o futuro.’

 

CAMPANHA
Ricardo Brandt e Silvia Amorim

Partidos entram em disputa direta por aliados e mais tempo no horário de TV

‘O anúncio da pré-candidatura à reeleição do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, com o apoio do PMDB marcou o início das disputas entre PSDB e DEM por alianças com novos partidos. Kassab largou na frente com a costura feita com o PMDB – menina-dos-olhos na disputa por tempo de TV. Os peemedebistas têm direito a cerca de 4 minutos de propaganda eleitoral, o que eleva o tempo do DEM para quase 8 minutos.

A avaliação dos aliados de Geraldo Alckmin (PSDB) é de que a vantagem de Kassab se deve ao fato de ele ter trabalhado nos últimos meses já com perspectiva de apoios externos, enquanto o ex-governador buscava consolidar sua base no PSDB.

Com a vantagem de já contar com o PMDB, o prefeito mira agora no PV e no PR. Juntos, eles lhe garantiriam mais 2 minutos e meio na TV, o que o tornaria o candidato com o maior tempo.

O espaço reservado a cada partido ainda é estimado, pois o Tribunal Regional Eleitoral só definirá as cotas exatas após as convenções de junho.

A próxima aliança a ser anunciada por Kassab deve ser com o PR, da sua base aliada. Primeiro a procurar a sigla, Kassab ofereceu espaço numa segunda gestão, mas admitiu que não poderia ceder o posto de vice, que já estaria reservado ao PMDB ou ao PSDB, se houver aliança.

Alckmin também abriu negociação com o PR, mas, segundo seus aliados, a ofensiva naufragou pois o partido já teria fechado com o DEM. O PT foi o último a sondar o PR. Marta Suplicy, pré-candidata ainda não oficial, conversou com um líder da sigla na terça e pediu reunião com dirigentes.

No caso do PV o apoio a Kassab é mais natural. O partido comanda a Secretaria do Verde e Meio Ambiente e uma subprefeitura.

O PTB é a prioridade de Alckmin. Com cerca de um minuto e meio de horário eleitoral, o apoio pode elevar o tempo do tucano para quase 5 minutos. ‘Estamos buscando apoio não só em cima do tempo de TV. Queremos buscar alianças que tenham coerência programática’, afirmou o deputado Júlio Semeghini (PSDB-SP).

O chamado bloquinho – PDT, PSB, PC do B e PRB – também é encarado como prioridade para os alckmistas. O problema é que as legendas que o compõem discutem candidatura própria. Há três nomes viáveis: Paulo Pereira da Silva, pelo PDT; Aldo Rebelo, pelo PC do B; e Luiza Erundina, pelo PSB.

PSDB até ofereceu a vaga de vice a Paulinho. ‘O problema é que estamos reticentes sobre até onde vai a candidatura de Alckmin’, afirmou o deputado Brizola Neto (PDT-RJ), que diz ser maior tendência de aproximação com o PT.

O deputado Edson Aparecido (PSDB-SP) afirma, porém, que as negociações avançam. ‘Não estamos descartando conversar com esses partidos.’’

 

TELES
Nilson Brandão Junior

Andrade e Jereissati chegam ao topo

‘A compra da Brasil Telecom (BrT) pela Oi, anunciada anteontem, vai projetar Sergio Andrade, da Andrade Gutierrez, e Carlos Jereissati, da La Fonte, para o topo da lista dos principais empresários do País. Juntas, as duas empresas ficariam na quarta colocação entre as empresas abertas no País, atrás apenas da Petrobrás, Vale e Gerdau.

A negociação, que chegou a cair no descrédito na últimas semanas por causa dos sucessivos atrasos para o anúncio, foi uma das mais complexas da história do capitalismo do País e criará um grupo que vai investir cerca de R$ 30 bilhões (US$ 18 bilhões) até 2012, no Brasil e no exterior.

Os entendimentos foram tão tumultuados e sui generis que provocaram várias situações desconfortáveis para todos os participantes. Um executivo de um dos grupos que trabalha em outro Estado passou a semana levando uma muda de roupa caso tivesse de vir de última hora para o Rio. Outro importante negociador dormiu em média três horas por noite desde terça-feira. No mercado, analistas de um importante banco fizeram um bolão para ver quem acertava a data do anúncio. O prêmio, um cartão com créditos da Oi.

O anúncio do acordo saiu ontem à tarde. Pôs fim, de quebra, a uma das mais polêmicas sociedades no País, que reuniu dentro da BrT o Citigroup, o Opportunity e os fundos de pensão – todos brigando entre si. Sinal da disposição de Gutierrez e Jereissati em levar a empresa de telecomunicação, a Oi concordou em pagar R$ 315 milhões para a BrT e ao Opportunity para que levantassem as ações judiciais de um contra o outro. Caso os controladores da Oi não tivessem tomado a decisão, a briga societária na BrT continuaria e não haveria negócio. Ou, talvez pior, assumiriam uma empresa cheia de problemas potenciais. ‘A BrT foi saneada em termos de controle’, disse uma fonte.

‘A chave dessa negociação foi a capacidade, que muita gente achava inviável, de compradores e vendedores se articularem em meio a todos os conflitos e alinharem uma solução’, disse outro executivo. Os controladores do Grupo Oi não se arrependeram do valor pago para suspender as ações ou pelo controle da BrT. ‘A arapuca foi desarmada’, disse uma fonte próxima aos controladores da maior empresa nacional de telecomunicação, que depende, ainda, para sair do papel, de autorização da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Já estão no mapa do novo grupo investimentos em serviços de telecomunicação e multimídia no Brasil, expansão para mercados de telefonia em outros países e mesmo o crescimento e internacionalização da Contax, uma controlada da TmarPart para o setor de call center. Além dos planos de investimentos, os novos controladores terão de enfrentar, contudo, outro desafio para os próximos anos: o convívio entre os dois empresários. No mercado, há quem diga que a convivência nem sempre foi tão fácil, por causa de interesses divergentes, portes empresariais distintos e temperamentos bem diferentes.

Andrade, marcado pelo estilo reservado, comanda um grupo que movimenta quase R$ 8 bilhões ao ano. O foco inicial eram obras públicas. A empreiteira cresceu e se diversificou desde o fim dos anos de 1990. Atualmente, o grupo trabalha na área de concessões rodoviárias, é acionista de grandes empresas como a Light e avançou no setor de telefonia. Com a aquisição da BrT pela Oi, estima-se que o peso do setor de telecomunicação nas receitas totais ultrapasse 60% e até chegue perto dos 75%, conforme a forma de contabilização na nova empresa.

Já o grupo de Jereissati, um empresário considerado mais agressivo, tem porte menor, fatura ao redor de R$ 3 bilhões ao ano. Atua no setor de telecomunicação, é dono do Grande Moinho Cearense, mas a área principal é a de shopping centers. Começou a trabalhar nesse ramo em 1974, depois de comprar participação no shopping, que já existia havia três anos. Hoje, tem participação em outros 13 shoppings. Na última sexta-feira, Jereissati e Andrade fizeram parte do grupo de cerca de 100 pessoas que passou quase oito horas assinando os 50 documentos da compra da BrT.

Grande parte dessa quantidade de acordos diz respeito à imensa briga interna na BrT. Por isso, as cláusulas de todos os acordos foram checadas e rechecadas, geralmente com a ajuda de um projetor durante os entendimentos das últimas semanas. Eram dez escritórios de advocacia empresarial e outros dez voltados ao contencioso, ou seja, aos litígios na Justiça. As últimas reuniões ocorreram no centro do Rio. Numa sala maior, 40 advogados e representantes de acionistas repassavam os documentos. Quando surgiam as freqüentes divergências, subgrupos discutiam o assunto em salas menores. ‘Foi tudo muito complicado’, disse um dos negociadores, na noite de sexta-feira.’

 

LIVROS
Antonio Gonçalves Filho

Memórias submersas

‘Com apenas quatro livros de ficção publicados em sua curta existência, encerrada no dia 14 de dezembro de 2001, aos 57 anos, o escritor alemão W.G. Sebald (Winfried Georg Sebald) passou à posteridade como um peregrino em busca das memórias submersas da Europa, continente afogado no remorso por crimes praticados pelo nazi-fascismo. Elevado à estatura do austríaco Thomas Bernhard e definido como um herdeiro de Proust, Walter Benjamin e Borges, Sebald tem agora todos os seus livros publicados pela editora Companhia das Letras, a começar pelo último, Austerlitz (tradução de José Marcos Macedo, 296 págs., R$ 44), história de um homem que vaga em busca de sua identidade por amplos espaços urbanos da Europa. Austerlitz é uma obra-prima. Exige um leitor sintonizado com o universo literário de Sebald, além de um olhar atento às referências arquitetônicas e fotográficas que lhe servem de guia. Sebald, professor de literatura por mais de 30 anos na Inglaterra , fez por ela o que Walter Benjamin fez pela filosofia, ao decifrar os subterrâneos da cultura francesa por meio do traçado urbanístico de Paris, no antológico Passagens.

A Companhia das Letras prepara o lançamento das outras três obras de ficção deixadas por Sebald – Vertigo (1990), Os Emigrantes (1992) e Os Anéis de Saturno (1995), os dois últimos anteriormente publicados aqui pela Record – e mais a coletânea de ensaios Sobre a História Natural da Destruição (Luftkrieg und Literatur, Fischer, 9,90), seu segundo livro publicado postumamente (o primeiro foi After Nature, tríptico sobre o pintor Grünewald, o botânico Georg Stellar e o próprio autor, um híbrido de tratado científico com suíte poética, lançado na Inglaterra em 2001). Existiria ainda, um outro livro, inédito, a confiar nas informações da professora de literatura australiana Deane Blacker, autora de Reading W. G. Sebald: Adventure and Disobedience (Camden House, US$ 75). Seria uma novela escrita por Sebald em 1967, em Manchester, logo após fixar residência na Inglaterra, mas a professora da Universidade da Tasmânia tem poucas informações a respeito.

Tanto interesse por Sebald, alvo de uma disputa sem precedentes entre editoras e tema de dezenas de ensaios acadêmicos, tem uma razão além do evidente valor literário de sua obra. Ninguém passa por seus livros sem testemunhar uma espécie de epifania. Sebald é um desses escritores que transformam leitores com suas iluminações filosóficas em momentos críticos de consciência global. Ele sustenta, por exemplo (em Sobre a História Natural da Destruição) que a catástrofe promovida pelo Terceiro Reich não encontrou intérpretes à altura no pós-guerra alemão, livrando apenas três ou quatro autores, entre eles Peter Weiss e Alfred Andersch. E culpa não só os nazistas, mas os aliados, pela orgia bélica que foi além dos limites na 2ª Guerra, devastando vidas e cidades por conta de uma demonstração bélica de poderio tecnológico.

Um exemplo dos paradoxos da guerra denunciados por Sebald está no ensaio que escreveu sobre Alfred Andersch, um exilado dentro da própria Alemanha. Membro do Partido Comunista, foi preso em 1933, quando Hitler subiu ao poder, e convocado para lutar na Wehrmacht alemã, acabou desertando na Itália, em 1944, sendo depois preso pelos americanos – experiência descrita em Die Kirschen der Freiheit (As Cerejas da Liberdade). Ele é a súmula dos personagens de Sebald: introspectivo, deslocado e vítima do tempo em que vive. Andersch, autor de Der Vater eines Mõrders (O Pai de Um Assassino, publicado em 1980), era um ser angustiado pelo presente que, como explicou Bergson, nada mais é que um futuro que transcorre no passado – daí a fixação de Sebald por fotografias antigas, como as que ilustram esta página e o livro Austerlitz.

Em Austerlitz, o principal personagem – um refugiado garoto judeu checo despachado num trem para ser criado por um pastor calvinista no País de Gales – é justamente o deslocado de seu tempo, sempre temeroso de que o passado retorne e se torne o presente. Nem mesmo seu nome verdadeiro o passado lhe concedeu. Sua família desapareceu em campos de extermínio, como milhares de outras destruídas nos países ocupados pelos nazistas. Professor de arquitetura, Austerlitz é apresentado ao leitor por um narrador não identificado, que viaja com freqüência da Inglaterra à Bélgica, onde conhece o misterioso personagem de sua narrativa polifônica – em que as vozes se confundem a ponto de Sebald replicar frases de outros personagens (usando o artifício ‘disse Gerald, disse Austerlitz’).

Especialmente nessa passagem, em que cita a amizade que une Austerlitz ao ornitólogo Gerald, está a chave que Sebald oferece ao leitor para essa experiência epifânica diante de espaços amplos e vazios, que faz com que o homem construa monumentos arquitetônicos sem função ou produza obras de arte. Gerald/Austerlitz observa que, se alguém soltar um pombo a bordo de um navio em meio a uma tempestade de neve no mar do Norte, ele encontrará infalivelmente o caminho de volta para casa. Como esses animaizinhos superam o próprio medo e rumam para o local de origem? A ciência silencia, mas não o crítico literário Carl S. McTague, que, num ensaio sobre Sebald, analisa a aparição da arca de Noé em duas passagens de Austerlitz. Na primeira, um templo maçom incorporado a um hotel londrino ostenta uma pintura dourada da arca; na segunda, Austerlitz identifica-a com uma propriedade abandonada de Oxford, ao visitar um salão de bilhar hermeticamente fechado de Iver Grove.

A arca de Noé é vista por McTague como uma metáfora da memória submersa de Austerlitz. A primeira imagem concreta da submersão, segundo McTague, é o fascínio infantil exercido pela inundação da casa do pai adotivo, batizado com o sugestivo nome bíblico de Elias. Austerlitz sempre sentiu frio na casa do pregador, eternamente trancada como a arca de Noé, enquanto o mesmo escrevia seus sermões sobre pecado e punição. Surge em sua cabeça uma mitologia da destruição de Llanwddyn, o lugarejo submerso onde o fantasma do pastor e dos aldeões se comunicariam com os vivos. Submersão, para Sebald, seria, então, igual à morte: a perda de pessoas queridas só seria compensada pela literatura ou pela memória fotográfica.

Com a morte dos pais adotivos, Austerlitz parte em busca dos vestígios dos pais biológicos, mas não revela de imediato sua identidade ao narrador, tão ignorante sobre suas origens como o leitor, submetido a uma prova de erudição, compensada pela prosa poética de Sebald – inexistem parágrafos nas 300 páginas desse monólogo, que traz referências ao filósofo Wittgenstein e criadores torturados pelos nazistas, como o escritor Jean Améry e o pintor Gastone Novelli. O último é personagem de Claude Simon no livro Le Jardin des Plantes. Membro da Resistência condenado à morte em 1943, Novelli escapou e passou pelo Brasil, inventando uma língua só com vogais, após conviver com os índios. Uma língua que não o levou a lugar nenhum, além de uma fixação enlouquecida pela letra A, pintada à exaustão. A partir dela, Sebald reinventa a literatura, mesmo após Adorno ter observado que a arte e a poesia morreram com o Holocausto.’

 

O Estado de S. Paulo

Informações reveladoras da guerra ao terrorismo

‘War and Decision

Douglas J. Feith Harper

674 págs., R$ 65,96

Ex-subsecretário de Defesa dos EUA, Douglas J. Feith oferece neste livro uma imagem profunda e relevadora do ideário, planos e decisões que apoiaram a guerra ao terrorismo, tanto no Iraque como no Afeganistão. Ele foi um dos idealizadores das estratégias de combate quando Donald Rumsfeld conduzia o Departamento de Defesa norte-americana. Ele também releva as negociações e decisões entre o presidente e os grandes nomes do poder: o vice-presidente Dick Cheney, Paul Wolfowitz, Condoleezza Rice e Colin Powell, entre outros. Além de testemunhar esses fatos que não vêm a público, Douglas J. Feith apresenta documentos e informes sobre o assunto.’

 

INIMIGO RUMOR
Francisco Quinteiro Pires

A resistência da poesia

‘Como a poesia pode resistir a um mundo de sentimentos embotados e a homens de comportamento pautado pelo cálculo pragmático? Quem se interessa em escrevê-la e fruí-la? É comum na vida de uma revista de poesia o seguinte ciclo: vir à luz, intervir de algum modo na cena poética e depois desaparecer porque parece não haver sensibilidade para recebê-la. Contrariando o destino curto desse tipo de publicação, a Inimigo Rumor chega ao 20º número e ao 10º ano de existência.

Desde o primeiro número, em 1997, a Inimigo Rumor (7 Letras e Cosac Naify, 328 págs., R$ 33) não apresenta manifesto poético ou declaração editorial. A sua preocupação era reunir poemas e ensaios sobre poesias tanto de estreantes como de autores influentes. A escolha do material a ser publicado, segundo os editores, já é por si mesma uma carta de intenções: a apresentação de autores de linhas de pensamento e atuação diversas.

Desde 2003, ela deixou de ser editada somente pela 7 Letras para ganhar a parceira da Cosac Naify. Por essa época surgiu uma parceria, que durou cinco números, com as editoras portuguesas Cotovia e Ângelus Novus.

Neste número comemorativo, há um dossiê sobre fotografia, com textos de Paul Valéry, Roberto Bolaño e entrevista com Man Ray. A poesia não é feita só de versos. A crítica literária Flora Süssekind publica um ensaio – Hagiografias – sobre o paranaense Paulo Leminski, no qual também aborda as obras de Ana Cristina Cesar e Cacaso. Uma das características da Inimigo Rumor é editar ensaios clássicos, como o de Antonio Candido sobre T.S. Eliot e o de Walter Benjamim sobre os poemas de Bertolt Brecht.

Em Hagiografias, Flora Süssekind critica o processo de mitificação feito pela crítica cultural com os artistas. Embora trate da obra de Paulo Leminski e dos outros dois poetas, ela está preocupada com o exercício contemporâneo da crítica, que é capaz de converter músicos, como Chico Science, Cássia Eller e Cazuza, em mártires. Ou de fazer a ressurreição de bandas como Os Mutantes. Criticar não é exaltar, tampouco divulgar tão-somente a riqueza de uma obra poética. Ela cita casos de santificação no cinema (Glauber Rocha e Leon Hirszman) e nas artes plásticas (Lygia Clark e Hélio Oiticica).

Essa canonização se apóia em pilares emblemáticos: uma vida breve, que termina numa morte trágica. E Leminski – ao lado de Mário Faustino, Torquato Neto e Caio Fernando Abreu, por exemplo -, quando se transforma em objeto de estudo, ganha essa aura santa, ainda que seja para dele construir uma ‘hagiografia maldita’.

Tornar um poeta sagrado, de acordo com Flora, não pode esmaecer o poder de fogo desses ‘mitos recentes’ que são uma ‘forma de resistência a uma atrofia de perspectivas’. A idolatria cega pode desmerecer os milagres de um santo.’

 

BIOGRAFIA
Ubiratan Brasil

O mercado biográfico contra-ataca

‘Hoje faz exatamente um ano que o juiz Tércio Pires comandou um acordo entre representantes do cantor Roberto Carlos e da Editora Planeta, evitando a abertura de um processo: alegando que sua privacidade havia sido invadida, o cantor queria interromper a venda de Roberto Carlos em Detalhes (Planeta), biografia não-autorizada de Paulo César de Araújo.

O acordo, condenado na época por escritores e editores, fez com que a obra fosse recolhida e aumentasse o temor das editoras em investir em biografias não-autorizadas. Na verdade, segundo relato geral, o patrulhamento já acontecia antes, mas jamais tivera tamanha grandeza como a conquistada pela obra sobre Roberto Carlos. ‘Foi algo que acabou incentivando os profissionais da área’, conta Galeno Amorim, diretor do Instituto de Desenvolvimento de Estudos Avançados do Livro e da Leitura (Ideall) e em cujo blog se criou um movimento de reação .

Foi a partir de algumas dessas discussões que o deputado federal Antonio Palocci (PT-SP) se interessou em apresentar um projeto de lei que altera o artigo 20 da Lei Federal nº 10.406, justamente o evocado pelos biografados que se julgam maltratados (caso de Roberto Carlos). Na alteração, está a inclusão de um parágrafo, que pretende oferecer um fôlego ao trabalho dos biógrafos: ‘É livre a divulgação de informações biográficas sobre pessoas públicas ou que tenham participado de acontecimentos de interesse da coletividade.’

Segundo Roberto Feith, da editora Objetiva, a discussão também movimentou o Sindicato Nacional de Editores de Livros. ‘Houve um agravamento das limitações das biografias sem explicações.’

Ele aponta dois princípios não contemplados na lei atual: a diferença entre o direito de privacidade de pessoas públicas e de privadas, e a proteção para que o autor possa escrever sobre figuras conhecidas sem o receio de haver punição. ‘O caso envolvendo Roberto Carlos foi único no mundo, pois não havia inverdades.’ Para o editor, é preciso cuidado também com o poder de ação de herdeiros.

‘Esta alteração do Código Civil representará um grande avanço porque, no caso de biografias, parece que estamos impedidos de publicar até mesmo informações indiscutivelmente verdadeiras e sabidas por todos’, comenta Paulo César de Araújo. ‘Por outro lado, acho que o problema não é apenas da jurisprudência atual, mas de interpretações equivocadas que dela são feitas. A rigor, se a lei fosse devidamente observada, meu livro não estaria hoje proibido.’

A mudança, até o momento, é bem-vinda. ‘As ameaças que temos sofrido (Ruy Castro com Garrincha, Paulo César com Roberto Carlos e eu com Ronaldo Caiado, para falar só de casos mais notórios) desestimulam autores e editores’, comenta Fernando Morais. ‘É uma trava não para quem escreve (é fácil arranjar bons assuntos a salvo de descendentes), mas para quem lê. Não se pode privar a população de ler sua própria história em nome da subjetivíssima opinião dos tataranetos dos protagonistas.’

Morais aponta um exemplo que considera digno: a decisão da corte suprema francesa condenando com alta multa a filha de um personagem que tentara proibir uma biografia dele. ‘Isso é civilização.’

Repercussão

‘Os biógrafos são hoje mais cerceados do que nos tempos da execrável censura do período pós-64.’

DEONÍSIO DA SILVA, ESCRITOR

‘Hoje, é virtualmente impossível para escritores brasileiros escreverem biografias independentes sobre os protagonistas da nossa história. Isto é uma perda incomensurável.’

ROBERTO FEITH, ED. OBJETIVA

‘Em outros países, existe legislação semelhante, um complemento à liberdade de expressão e livre circulação das idéias. Coíbe atitudes oportunistas de quem quer faturar em cima do trabalho dos biógrafos – caso de familiares de falecidos e também atitudes autoritárias e extemporâneas de quem se acha dono exclusivo de sua própria verdade, como Roberto Carlos.’

FELIPE LINDOSO, ESPECIALISTA EM POLÍTICAS DO LIVRO’

 

SILVIO DE ABREU
Doris Bicudo

‘Minha vida é um capítulo por dia’

‘Assim como Silvio de Abreu, nosso encontro teve a cara de São Paulo. Depois de mais de uma hora de trânsito, cheguei ao meu destino: o tríplex do autor, que fica no 20º andar de um prédio nos Jardins. Subo uma escada e chego ao seu universo particular. Uma mesa, com uma aquarela de Pink Wainer ao fundo. O tema do desenho? Uma paisagem urbana. A porta de vidro, aberta, dá para as antenas da Avenida Paulista. Uma pequena piscina, que ele diz usar apenas em dias muito quentes, completa o cantinho de criação de um dos mais importantes autores de novela brasileiros.

É lá que tudo acontece. ‘Enquanto escrevo, choro, dou risada, me apaixono, odeio e até danço com meus personagens.’ Apaixonado pela chanchada – e em especial por Oscarito -, começou sua carreira de sucesso no teatro e no cinema – fez cinco filmes, entre eles, algumas pornochanchadas. Mas foi na televisão que se realizou de fato. ‘O meu grande prazer é me comunicar com as pessoas, com esse monte de gente.’

O que você tem a dizer sobre essa novela-tragédia do caso Isabella, que está dominando as emissoras e o interesse do público? O interesse das pessoas pelo assunto é, sem dúvida, estimulado pela mídia, que viu um filão enorme de audiência nesse triste caso. O crime é muito intrigante e aguça a imaginação das pessoas. Infelizmente, essa tragédia tem todos os elementos de intriga de uma boa trama policial. E, como diz Woody Allen, só a ficção precisa fazer sentido, a realidade não.

Como nasce uma novela? Basicamente, vou pela intuição. Às vezes o enredo vem de uma notícia de jornal, da vontade de trabalhar com um ator. Outras vezes, vou inventando até encontrar o caminho que quero seguir. Por exemplo, em Belíssima, o ponto de partida foi Glória Pires, com quem nunca tinha trabalhado. Um dos sonhos de Glória era contracenar com Tony Ramos. Feito, vou escrever uma novela para juntá-los.

Quando vê um possível personagem na rua ou em um restaurante, chega a abordá-lo? Abordar não, mas gosto de observar. Na verdade, gosto é de ficção. Eu gosto de ver uma pessoa e imaginar a vida dela. Por que ela está lá? Por que está usando aquele tipo de roupa? Por que está comendo aquela comida? Gosto desse processo inventivo.

O ibope não direciona? Eu quero é fazer ibope. Quando não tenho, quero saber por quê. Mas isso não quer dizer que eu vá mudar a história. No caso, não é a novela que deve ser mudada, mas a maneira como está sendo contada. Tudo influencia: um ator errado para o personagem, um casal romântico que não tem química… Escrever para a televisão é muito diferente de fazer um livro ou escrever para cinema ou teatro. As pessoas não param a vida para assistir à novela. A atenção é dividida com várias coisas.

Nunca se sentiu elitista? Nunca fui. Não tenho essa pretensão nem quis ter. Nem o meu gosto pessoal é elitista. Procuro fazer um trabalho de categoria e que possa despertar o raciocínio de uma classe menos privilegiada.

Durante uma novela, você trabalha fechado neste escritório mais de 12 horas por dia. Não se sente sozinho? Eu não sei o que é solidão. É uma diversão. Os personagens estão todos juntos a mim, com vida. Mas fica tudo aqui dentro. A hora em que passo pela porta, não sei o que ficou aqui. Durante a criação, minha rotina é de um capítulo – 65 páginas – por dia. E eles nascem sem serem planejados. A sensação de novidade é a mesma que passo para o público. Para ele se surpreender, eu também tenho de me surpreender.

De suas novelas já saíram casamentos na vida real? Sim. E o casal mais famoso é Claudia Raia e Edson Celulari. Eles se conheceram em Deus Nos Acuda. Engraçado que eu já estava perseguindo essa química havia algum tempo: tinha feito Rainha da Sucata, dois anos antes, e o personagem vivido por Antônio Fagundes – par romântico de Claudia – seria para Celulari, que não pôde fazer.

E quanto ao dinheiro, você vive no mundo do faz-de-conta? Minha mulher é quem cuida dessa parte. Principalmente no período em que estou escrevendo. Mas meus investimentos são ecléticos: tenho alguns imóveis, gosto de ter quadros, tenho um pouco de ações e investimentos em renda fixa. Eu não sou um investidor arrojado. Sou muito certinho. O dinheiro é bom para você não ter dor de cabeça. Quando ele virou dor de cabeça, é melhor não ter.

Quais as imposições dentro da Globo? Por exemplo, pode escolher o diretor com quem quer trabalhar? Acho meio pretensioso dizer que escolho o diretor, mas eu poderia recusar se eu quisesse. É a mesma coisa do outro lado. Tenho de trabalhar com gente de quem eu goste. É um casamento mesmo, que dura um ano e meio. Desde o embrião, gosto de começar com o diretor. Imaginar onde os personagens vivem, que lugares eles freqüentam. Por conta da minha formação em cinema, tudo para mim é imagem.

Tem algum ator ou atriz com quem ainda não conseguiu trabalhar? Tirando Sophia Loren… Os atores gostam de trabalhar comigo e eu respeito muito o trabalho deles. Não sou aquele autor que acha que o ator está lá só para falar o texto. Sou uma parte importante do processo, mas não a única. Se minha trama tiver um diretor, um ator ou até uma música que não se casem, o trabalho não é pleno.

Literatura ou cinema: o que é melhor como inspiração? A literatura brasileira é tão ampla… Desde criança gostava muito de ler Érico Veríssimo. Também gosto muito de Lygia Fagundes Telles. Dos universais, Sidney Sheldon tem muita história. De uns tempos para cá, tenho lido muito pouca ficção: fico com medo de copiar. Às vezes você está escrevendo e vem alguma coisa na sua cabeça que nem sabe da onde veio. E pode ser perigoso. Gosto de fazer homenagem ao cinema, refazer cenas. Mas isso, eu cito. Não é plágio e sim puro prazer. Fiz em Vereda Tropical, em Guerra dos Sexos. Lembra em Rainha da Sucata, o personagem de Renata Sorrah ia ao cinema e se via dentro do filme? Ela na pele de Ingrid Bergman e Daniel Filho na de Humphrey Bogart. Acho que já prestei homenagem a todos os filmes que queria.

Já teve de lidar com o insucesso? A primeira novela que fiz na Rede Globo, Pecado Rasgado, não fez sucesso. Queria fazer uma novela mais anárquica. Gênero que naquela época – 1978 – estava mais lincado à área de shows do que à dramaturgia. Meu gosto pessoal não era exatamente o gosto pessoal do momento na TV Globo e a novela não aconteceu, o que me deixou muito frustrado. Por outro lado, foi ótimo, porque aprendi a ter humildade. Fui fazer outras coisas, entre elas, escrever o Programa da Hebe. E foi com ela que aprendi o prazer de fazer, independentemente do resultado.

E qual foi seu primeiro sucesso na Globo? Guerra dos Sexos, com Paulo Autran levando torta na cara, Fernanda Montenegro levando torta na cara…

Um novo autor… É o que tenho procurado fazer na Globo: descobrir novas pessoas. Supervisionar novos autores. Nomes como João Emanuel Carneiro (Da Cor do Pecado), Andréa Maltarolli (Beleza Pura) e Alcides Nogueira (Ciranda de Pedra). Também acho a Elizabeth Jhin (Eterna Magia) uma excelente autora.

Qual vai ser a próxima novela? Ainda não sei. A única coisa certa é que será exibida no ano que vem.’

 

MACHADO DE ASSIS
Bernardo Ajzenberg

‘O mestre do inusitado e da sugestão’

‘Certa feita, Bernardo Ajzenberg encontrou um jovem que lhe pediu: ‘Apresente-me um Machado de Assis verdadeiro.’ O escritor, autor de Variações Goldman, foi atrás de edições antigas e marcou as passagens tidas como essenciais. Ao apresentar Machado ao jovem, ele se descortinava também: do gosto pelo pensar ao exercício do duvidar incorporados durante a leitura das obras. E a dúvida ficou em aberto, tal como nos livros do Bruxo do Cosme Velho: o que aquele jovem fez com o Machado essencial de Ajzenberg ou qual Machado lhe surgiu no espírito?

Um rapaz de 19, 20 anos, estudante de Letras, muito curioso, me perguntou outro dia se eu tinha alguma edição ‘antiga’ de Memórias Póstumas de Braz Cubas ou outras do mesmo autor. Queria ler aquela grafia sentindo aquele cheiro, tateando aquele papel velho e enrugado – para saber, disse ele, como era ‘o verdadeiro Machado de Assis’. E, além disso, ter uma ‘visão panorâmica’ de sua obra.

Fui atrás e arrumei um exemplar de 1946, nem tão antigo assim mas pelo menos bem anterior a mim e útil nesse caso, e acabei por reunir edições relativamente caducas de outros livros. Trouxe o pacote para ele. Tinha marcado algumas páginas e passagens nesses volumes. Expliquei-lhe que nelas estava ‘o essencial’.

Desconfiado, mas sem conter o entusiasmo, o rapaz – parente de segundo grau a quem franqueei, assim, o acesso à minha pequena biblioteca – passou a escarafunchar tudo aquilo feito um rato, começando, é claro, pelas indicações que eu fizera.

‘MEMORIAS POSTHUMAS’

Nas Memorias Posthumas, abriu o capítulo LV, chamado O Velho Diálogo de Adão e Eva, fantasticamente constituído apenas por reticências, pontos finais, de exclamação e de interrogação, além dos nomes dos protagonistas (Braz Cubas e Virgília). Numa página do XXVI, o jovem leu as anotações do narrador em forma de poesia livre: ‘Arma virumque cano/A/Arma virumque cano/ arma virumque cano/arma virumque/arma virumque cano/virumque.’ Olhou-me, parecia, perplexo.

ENTRE QUINCAS E AYRES

Veio então o Quincas Borba, com o capítulo CLXXXVI, curtinho, de apenas duas linhas: ‘?Para mim, é claro?, saiu pensando o Dr. Falcão, ?aquêle homem foi amante da mulher dêste sujeito?.’ O estudante coçou o queixo.

Em seguida, pôs os olhos no registrado em 21 de Septembro pelo Memorial de Ayres: ‘Ao sahir hoje de casa, vi passar na rua, ao lado opposto, a irman do corretor Miranda, D. Cesaria, tão risonha que parecia fallar mal de mim, mas não fallava, ia só – ou fallava de mim comsigo; mas só comsigo não teria tanto prazer. Cumprimentámo-nos e seguimos.’

‘Tem certeza de que tudo isso é do Machado?’, ele me perguntou, tentando parecer irônico. Sem responder, teimei em que ele aguardasse mais e prosseguisse com o XLII (Uma Hypothese) de Esaú e Jacob: ‘(…) Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hypothese, espécie de andorinha, que avoaça entre arvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa alli, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothese vaga e colorida, a saber, que se os gêmeos tivessem nascido d?elle talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito.’

O DICIONÁRIO E OS CONTOS

E, ainda, com o prefácio do Dom Casmurro (numa edição de 1970): ‘Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que êles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo.’

O jovem fechou o livro, sentou-se numa poltrona e ficou calado. Eu disse que havia também os contos, como, por exemplo, O Espelho, que trata de um modo hiperconcentrado e premonitório a questão da identidade pessoal, da aparência em oposição à ‘alma’; Missa do Galo, uma pequena jóia da dissimulação, da sedução velada e da angústia numa sala de estar; ou o Trio em Lá Menor, transpondo magicamente para a escrita diferentes andamentos musicais.

Já me dava por satisfeito, quando veio o sopapo. ‘Peraí’, disse o rapaz – que eu já não sabia se estava decepcionado ou, ao contrário, pronto para se tornar mais um fã do autor -, ‘essa é uma seleção sua, muito parcial, mas o Machado não é isso! Faltam mais romances e novelas, dizem que meio fracos em alguns casos, a poesia, o teatro, as crônicas, a crítica… Cadê a eloqüência, a elegância, o veio analítico, o velho ranzinza de que tanto se fala?’

EM BUSCA DA IMAGINAÇÃO

Sentei-me, também, e respondi, à guisa de conclusão: ‘Para saber o que é realmente o Machado, no que tem de bom e no que tem de ruim, talvez você devesse ir atrás do Bosi, do Merquior, do Schwarz, do Gledson e outros estudiosos que se debruçaram sobre ele. Isso aí que eu lhe mostrei é apenas um resuminho prático de um Machado que se fixou em mim como mestre do inusitado e da sugestão. Aquele que me marcou quando eu tinha a sua idade, impactante e antecipador na ousadia formal e no conteúdo irônico, sutil, galhofeiro. Irreverentemente experimental. Um universo machadiano bem circunscrito, até mesmo limitado, eu admito. Mas foi aquele que me estimulou a pensar, a imaginar mais, a construir personagens e cenas dentro da cabeça, renovando-os a cada releitura (ainda hoje não tenho nenhuma convicção quanto ao adultério, ou não, da Capitu, e acho isso delicioso). Que me fez gostar de escrever de forma condensada, porém com ritmo e liberdade, procurando alimentar, em mim mesmo e nos outros, a cultura da dúvida, em busca da imaginação. Que ainda hoje me interessa e me instiga. Esse Machado às vezes impalpável nunca poderá ser superado pelo cinema ou pela televisão – daí o seu valor imprescindível para a literatura. Por ele de vez em quando passo os olhos, o nariz e as mãos, com muito gosto. Aproveite se quiser.’

O jovem…’

 

CINEMA
Luiz Zanin Oricchio

Essas ficções tão documentais

‘Walter Salles diz que seu novo filme, Linha de Passe, selecionado para o Festival de Cannes, tem dois documentários em sua origem – Futebol e Santa Cruz, ambos do seu irmão João Moreira Salles. A declaração de Walter não espanta, mesmo porque João é um dos mais criativos documentaristas contemporâneos. Basta assistir a Santiago, há pouco sagrado vencedor do Grande Prêmio Brasil na categoria, para comprovar a qualidade dos filmes dirigidos por ele.

Além disso, Futebol e Santa Cruz trazem, em suas temáticas, as linhas de ficção que interessavam a Walter Salles e sua parceira no filme, Daniela Thomas. Um desses documentários fala da carreira do jogador de futebol e, em sua primeira parte (Futebol é uma trilogia), mostra as dificuldades do garoto ao entrar para a carreira, enfrentando as ‘peneiras’ da vida pelos quatro cantos do Brasil. O segundo, revela o mundo dos evangélicos e sua luta para manter a população carente ao largo do tráfico e do consumo de drogas. Somando esses temas, Linha de Passe fala de uma mãe que cria os quatro filhos sem um marido para ajudá-la. Um dos rapazes – Vinícius de Oliveira, o garotinho de Central do Brasil – é aspirante a jogador de futebol, essa carreira que é sonho de dez entre dez dos garotos de periferia que, assim, esperam tornar-se ricos e tirar a família da miséria.

Não é a primeira vez que Walter Salles se inspira em documentários para fazer um filme de ficção. Seu maior sucesso – Central do Brasil, Urso de Ouro em Berlim em 1998), tem sua origem em documentário dirigido por ele mesmo em 1995, Socorro Nobre, sobre a surpreendente troca de cartas entre uma presidiária e o artista plástico Frans Krajcberg. Daí até a idéia inicial de Central do Brasil – a mulher que ganha a vida na principal estação de trens do Rio de Janeiro escrevendo cartas para analfabetos – foi apenas um passo.

Mas não se trata apenas do ‘tema’, ou do ‘conteúdo’ dos filmes. Quem tiver Central do Brasil na memória irá se lembrar de que algumas de suas melhores cenas, talvez as mais emocionantes, sejam as de tom ‘documental’ – os rostos das pessoas comuns que encomendam as cartas a Dora (Fernanda Montenegro), olhando para a câmera e dizendo seus nomes, por exemplo. Aquele desfile de rostos tão brasileiros vale por mil comentários sociológicos a respeito da composição socioeconômica do País. E coloca o filme de ficção num patamar de emoção e de verdade (documental) que de outra maneira não teria.

Traços documentais como esses estão presentes em alguns dos melhores filmes de ficção contemporâneos, como Amarelo Manga e Baixio das Bestas, ambos de Claudio Assis, ou Os Matadores e O Invasor, de Beto Brant, para ficar nesses poucos exemplos. São filmes que, mesmo não optando por um realismo radical, bebem no real, buscam efeitos de realidade. E assim fazendo, incrementam sua veracidade, e mesmo a sua verossimilhança ficcional, embora seja claro que afirmações desse tipo não têm hoje senão um valor didático, pois as fronteiras entre o cinema documental e o de ficção confundem-se cada vez mais.

O ano passado, aliás, foi pródigo em exemplos de como a passagem de um gênero a outro se tornou cada vez mais fácil e natural. Santiago, a pretexto de reproduzir a trajetória do antigo mordomo da família Moreira Salles, abre toda uma perspectiva sobre determinada maneira de sentir e, nas entrelinhas, sobre o relacionamento entre classes, por exemplo. Personagem de si mesmo, Santiago, em seu delicado devaneio sobre nobres, príncipes e princesas, produz um comentário sutil, e por isso mesmo incisivo, sobre a arquitetura social brasileira. Cineasta inteligente, João cita em seu filme um mestre como Ozu, fazendo com que o melhor da ficção oriental alimente aquilo que pretende ser um documentário ‘quase’ de família.

Em Jogo de Cena, Eduardo Coutinho leva essa diluição de fronteiras até um limite difícil de ser superado. As histórias de vida de personagens reais são contadas por elas mesmas para a câmera ou, ao invés disso, são interpretadas por atrizes conhecidas, como Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão. Às vezes o jogo se complica porque as atrizes não são tão reconhecíveis pelo público e porque determinadas histórias são interpretadas pelas personagens reais e também por atrizes. Esse delicado jogo do imaginário deixa o espectador boiando na indecisão entre o real e o encenado. Mas o que o filme passa, de fato, é uma profunda sensação da verdade dos sentimentos, sejam eles interpretados ou vivenciados.

Outro filme extraordinário também se instala nessa fronteira. Em Serras da Desordem, Andrea Tonacci traz a história do índio Carapiru, que viu sua aldeia ser dizimada por jagunços em 1978, vagou sem rumo durante dez anos pelo Brasil, até ser encontrado e encaminhado à Funai. Há nesse caso um outro reencontro, e que serviu de estímulo inicial ao cineasta: no fim do percurso, Carapiru revê um filho que provavelmente já julgava morto. O notável é que toda a ‘reconstituição’ é realizada pelo próprio Carapiru, que, assim, torna-se o ator e intérprete da sua própria história. Quando lhe perguntam se Serras da Desordem é documentário ou ficção, Tonacci não hesita em responder: ‘É um filme de ficção.’ E uma obra de ficção que lhe serviu para trabalhar (talvez no sentido psicanalítico do termo) algo que o incomodava e que era a questão paterna, a separação e o reencontro entre pai e filho.

Esses exemplos recentes, sobre um relacionamento íntimo que vai quase à indistinção entre documentário e ficção, só fazem aprofundar uma característica já presente nos primórdios do Cinema Novo, quer dizer, do moderno cinema brasileiro. De fato, quando se estudam os antecessores desse movimento, costuma-se citar não apenas os dois longas de estréia de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, mas também dois documentários hoje clássicos, Aruanda, de Linduarte Noronha, e Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro.

Se Nelson, com esses filmes de 1955 e 1957, fazia uma espécie de aclimatação do neo-realismo italiano no Brasil, os documentários, realizados no início da década de 1960, abririam alguns caminhos formais para o que viria a ser o Cinema Novo. Num deles, o que está em jogo é o cotidiano dos pescadores naquela localidade do litoral fluminense presente no título; no outro, a comunidade de descendentes de escravos na serra do Talhado, na Paraíba. Ambos saciavam uma espécie de ‘sede da realidade brasileira’, característica daqueles anos. Além disso, inovavam numa série de procedimentos, como as falas improvisadas dos personagens em um e o uso de luz crua, sem filtro, áspera, aquela luz que fustigava o sertanejo em sua luta pela sobrevivência, no outro. O tom épico dessa luta, a luz, a movimentação da câmera, já antecipavam o grande cinema de invenção que explodiria em seguida. O interessante é que a impressão de realidade de Aruanda era tão forte que as pessoas não ‘percebiam’ que a chegada dos primeiros quilombolas ao local era reconstituída de forma ficcional.

Portanto, o casamento entre cinema de ficção e documental já é coisa antiga no Brasil. Apenas se aprofunda, nos últimos anos, para benefício de ambos. Tornaram-se comuns a utilização de técnicas ficcionais no documentário e de técnicas documentais na ficção. Tudo aponta para uma desfronteirização de gêneros que se hibridam, mas nem por isso devem ser confundidos, como se fossem uma coisa só.’

 

 

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