Cruzeiro e Grêmio fizeram um dos melhores jogos do ano no meio da semana passada pelas semifinais da Taça Libertadores da América, mas a bela vitória dos mineiros acabou ofuscada pelo incidente em que o atacante argentino Maxi Lopez teria chamado o defensor Elicarlos de macaco, num entrevero que lembrou o ocorrido há três anos envolvendo outro argentino e o ex-são-paulino Grafite, com os protagonistas indo dar com os costados na polícia e tudo mais.
Como naquela ocasião, antes mesmo da devida checagem dos fatos o grosso da imprensa não hesitou em dar a acusação do brasileiro por verdadeira, com o discurso politicamente correto se sobrepondo a uma discussão mais ampla e corajosa. Discussão que passa pela necessidade de enquadrar corretamente os fatos e, como parece ser o caso, saber diferenciar a suposta manifestação racista de uma mera ofensa ou provocação, prática de resto corriqueira no futebol ou qualquer modalidade esportiva. Coisa nada edificante, por supuesto, mas até certo ponto compreensível, do mesmo modo como xingamentos proferidos de cabeça quente não podem ser levados muito a sério.
Quem joga ou já jogou futebol sabe que o linguajar dentro das quatro linhas é de ruborizar as moças mais recatadas, se é que ainda as há, e que mesmo ofensas preconceituosas, de conotação racial, às vezes escapulem nos bate-bocas, mas nem por isso devem interpretadas ao pé da letra. Dentro de campo, no calor da luta, apela-se para tudo e um pouco mais, no afã de desestabilizar o adversário e tirar algum proveito para ganhar o jogo, ao final do qual geralmente tudo é esquecido. Afinal, todos sabem que no fundo ninguém ali é santo e que na hora H entrar de sola ou falar qualquer besteira se prestam a um só objetivo.
Apenas papo-furado
De modo que o importante é estar atento ao contexto em que essas manifestações acontecem. Uma coisa é uma expressão infeliz, dita impensadamente, em meio a uma troca generalizada de insultos, como ocorre nas confusões entre jogadores; outra é o ranço da discriminação fria e deliberada que se vê nas relações sociais, imperdoável sob qualquer ponto de vista.
Por uma questão de outrossim, a crônica esportiva voltou a optar pela conveniência dos velhos clichês, caindo de pau em Maxi Lopez sem se preocupar em considerar possíveis atenuantes. Mesmo entre a numerosa confraria de ex-jogadores fantasiados de comentaristas, eu pelo menos não vi nenhum sequer questionar a veracidade das acusações do jogador cruzeirense, que bem pode ter inventado – ou no mínimo dramatizado – a história, já que o atacante gremista vinha dando uma trabalheira danada para ser marcado.
Ironicamente, coube a um ex-ídolo cruzeirense – o meia Alex, de férias no futebol turco – colocar as coisas em seus devidos lugares, minimizando o ocorrido ao confessar que ele mesmo já disse e ouviu toda sorte de barbaridades jogando e que tudo o que se fala dentro de campo no fundo não passa de papo-furado.
Discurso peca pela hipocrisia
Que fique bem claro: não se trata de relevar ou fazer vistas grossas a um tipo de atitude normalmente injustificável e muito menos negar o direito do atleta de denunciar o fato à Justiça, mas diante da evidente inutilidade das discussões e da tradicional truculência da polícia, a impressão que fica é, das duas, uma: ou se faz o que a lei determina, e racismo é crime inafiaçável, ou o melhor encarar o falatório como parte do jogo. Insisto: se é para não ir além da encenação de praxe e ficar tudo por isso mesmo, como bem disse o comedido técnico gremista Paulo Autuori, que os atletas deixem de frescura e resolvam entre eles. Na bola ou na porrada, como chegou a sugerir o exaltado corintiano Cristiam, ao opinar a respeito do que faria em caso semelhante. Sim, pois do jeito que essas situações estão vindo à público a única conseqüência concreta tende a ser o aumento da animosidade, conforme, aliás, já está se prevendo para o jogo da volta em Porto Alegre.
Para reforçar a impressão de que tudo não passou de outra grande presepada, basta lembrar que o próprio Grafite, pivô daquela polêmica iniciativa de denunciar o zagueiro argentino, que chegou a ser preso após a partida em meio a um escarcéu dos diabos, já declarou várias vezes que se arrepende do que fez. Por vários motivos, mas principalmente por ter se sentido usado e que, no fim das contas, aquela confusão toda não serviu de reparação. Hoje mais rodado e no auge da carreira, com a artilharia e o inédito título alemão recém-conquistado pelo Wolsburg, Grafite provavelmente ainda convive com o preconceito racial, ainda mais jogando no estrangeiro, mas deve ter sacado que neste particular o futebol ainda é o melhor dos mundos.
Tanto é que casos envolvendo atletas, como este do Mineirão, continuam uma exceção à regra, e nem poderia ser diferente, com o intenso intercâmbio que caracteriza o futebol globalizado. Nesse sentido, é fundamental que a imprensa esteja atenta e zele pela preservação do espírito de respeito e congraçamento multiracial que o futebol, mais do que qualquer outra atividade, inspira e estimula. Convém apenas não levar essa missão a ferro e fogo, para não promover excessos e exageros em nome de um discurso politicamente correto, mas que muitas vezes peca pela hipocrisia.
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Jornalista, Santos, SP