Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Além do diploma de jornalista

O poder político e financeiro das grandes empresas de comunicação que já se impunha sobre os jornalistas tornou-se maior com a extinção da exigência da formação para jornalistas e a consequente desregulamentação da profissão. Com formação, regulamentação profissional e o código de ética, ainda era possível invocar a responsabilidade social e resguardar o direito de não fazer o jornalismo encomendado pelos patrões.

As empresas que não prezam pelo bom jornalismo, agora terão um instrumento mais eficaz, dado de cortesia pelo Supremo Tribunal Federal, para fazer de jornalistas objetos descartáveis. Os profissionais não podem se conformar que o STF, a reboque das grandes empresas e de colegas com visão restrita sob o que está em jogo, atropele nossa luta histórica pela regulamentação do exercício profissional e pela não precarização do trabalho. Acabar com a exigência do diploma é desregulamentar de forma abrupta a profissão, precarizar as relações de trabalho, que nunca foram equilibradas, e desorganizar de vez a categoria. É aprofundar a escravidão nas redações.

A argumentação falaciosa em torno da garantia da livre manifestação e expressão do pensamento, liberdade de imprensa e democratização da comunicação no Brasil não se sustenta com a desregulamentação profissional. Os jornalistas são novamente vítimas de ataques matreiros e maldosos, a exemplo da nossa luta pela criação do Conselho Federal de Jornalistas, cuja proposição foi distorcida pela grande mídia e apresentada como uma forma de censura. O Conselho era uma reivindicação antiga justamente para fiscalizar, combater e punir o desvio de conduta e zelar pelo Código de Ética.

Inconsciência ou subserviência

As corporações que não deixaram vingar o Conselho, agora, lamentavelmente, conseguem que a instância jurídica ‘maior’ atue de forma voraz, abrupta e sem poupar esforços para aniquilar a profissão de jornalista. Ao fechar os olhos, o STF atende os grandes da comunicação que atuam sob o pretexto manto da liberdade de imprensa, até que esta liberdade não contraponha os interesses mercantilistas de quem faz da notícia instrumento para negócios, até inescrupulosos. Não haverá liberdade de imprensa, sem liberdade de empresa, com caráter e financiamento públicos e acompanhamento da sociedade. Precisamos é de veículos públicos, não estatais, para democratizar a comunicação, e rever o modelo de concessões para rádio e TV.

Os jornais, rádios, TVs e demais meios de comunicação não aceitam o contraditório, como não permitem a polifonia de fontes. Pluralidade e democracia são meras retóricas. Como o fim da exigência do diploma pode acabar com tudo isto? Qual é a liberdade de expressão, sem liberdade de empresa? Com ou sem diploma, os velhos coronéis da mídia e os novos que hospedam sites e blogs vão continuar mandando. Ninguém quer democratizar nada. O poder econômico é que estabelece ou restringe o espaço de expressão.

Nesta patranha, sobrou para a profissão de jornalista, como se fosse o revés de todos os males. Então, surge o iluminado, para os coronéis da mídia, Gilmar Mendes, com uma vingança odiosa contra os jornalistas. Ao atender aos poderosos, o ministro conta com coro de gente que ajuda neste desserviço lastimável, alguns de maneira instintiva, inconscientes ou embriagados pela conveniência, outros por subserviência ao patronato da comunicação e seus proselitismos em contraposição aos interesses de uma comunicação para o pleno exercício da democracia e a construção constante da cidadania para a verdadeira libertação.

Autodidatismo, amadorismo e descompromisso

O STF, cuja maioria dos ministros seguiu o voto do relator Gilmar Mendes, completou o serviço inestimável. Nada surpreendente para uma instituição que se macula pelo ativismo, sustentada pelos pilares do pensamento positivista e pós-moderno. Esperar o que de quem detém um feito na história mundial de conceder em 48 horas dois hábeas-corpus a um banqueiro condenado?

Mendes, com sua feição cínica, tripudiou os trabalhadores que nunca se impuseram e nem tiveram força para barrar do jornalismo pessoas oriundas de outras áreas. Estudar e ter diploma para que? Para Gilmar Mendes comparar, de forma preconceituosa e odiosa, a profissão de jornalista com a de cozinheiro. São profissões dignas, usadas numa justificativa indigna. Se fosse assim, todo despachante poderia ter OAB e ser presidente do STF. E há muitos com notório saber jurídico, como há cozinheiros e jornalistas com belos textos, mas sem formação ou compromisso para captação e produção da notícia para o interesse social.

Não podemos afirmar, sob a luz da razão, seja ela cartesiana, dialética ou lógica, para ficar em alguns exemplos, que para ser jornalista basta um cursinho qualquer. É não prezar pela qualificação humanística da grade curricular com estudos de filosofia, e suas vertentes como política, ética, linguagem, metodologia, lógica e metafísica, além da semiologia, sociologia, antropologia, psicologia social e as disciplinas técnicas. É optar por uma defesa insana da simbiose entre autodidatismo, amadorismo e descompromisso e refutar o avanço do conhecimento epstemiológico e cognitivo para um melhor entendimento dos fatos.

Materialidade, formação e dignidade

Que não há escolas preocupadas com a formação, não há; como há profissional desatento à universalização do conhecimento. Não podemos fazer disto a regra. Temos é que lutar pelo oposto. Substituir a formação acadêmica isenta e reflexiva por escolinhas de adestramento nas empresas é formar no mesmo quilate da fina flor do jornalismo servil sem os salários polpudos que ganham alguns em troca da propagação de ideologias e de interesses privados, na contramão da função pública da comunicação. Acabar com a exigência de diploma em um país que precisa melhorar a educação é uma defesa torta à capacitação. É assim que se incentivam jovens a não estudar para serem soldados do tráfico. E a mídia tendenciosa se encarrega de propagar e criar o imaginário.

Jornalistas, diplomados ou não, já sobrevivem a toda espécie de maus tratos em redações de rincões ou metrópoles com salários aviltantes pagos pelos coronéis da mídia. E há muita gente desempregada, alguns por não compactuarem com esta lógica perversa. Com a total desregulamentação da profissão, os coronéis poderão reviver a famosa troca de trabalho por carteirinha de jornal, prática histórica conhecida na imprensa brasileira, na qual Assis Chateaubriand dizia: ‘Para que pagar salários se já lhes dou carteirinha de jornalista?’ Se hoje existe um grande número de colunistas escrevendo de graça para jornais, por afago no ego, imaginem com a abertura da porteira pelo STF.

O Supremo acaba de ampliar o universo de oportunistas, paraquedistas e mal-intencionados que usurpam a profissão de forma predatória e serviçal com textos e notas de fofocas ou bajulação, sem técnica para coleta de informação e confecção de matérias jornalísticas. Não produzem e nem editam. Apenas se socorrem à gilete press, sugando, com paráfrases ou leituras, o trabalho alheio de profissionais. Não fazem jornalismo. Utilizam-se dele para negócios. Chegam a produzir publicações efêmeras para defesa de interesses de grupos políticos e privados. São práticas condenáveis para ganhos e conquistas fáceis.

Um alento: tiram nosso diploma em tese jurídica contestável, mas não sua materialidade, nossa formação e nossa dignidade. Alguns continuarão com os três, outros não. Há ainda os que chegarão ou permanecerão na área sem nenhum dos atributos.

‘Reforma agrária’ nas comunicações

Estes debates precisam ser feitos com urgência no Brasil. Os oligopólios da comunicação não defendem o verdadeiro espírito republicano de democracia quando invocam a liberdade de expressão para contratar quem bem entenderem – a desregulamentação logo atingirá outras áreas. Democratizar é tirar das mãos dos oligopólios – Marinho, bispo Macedo, Frias, Mesquita, Civita, Shirostsky, Saad, Sarney, Collor, Magalhães – e de outras famílias e grupos políticos e econômicos a manipulação da informação.

As mazelas neste setor são muitas. As concessões de radiodifusão são moeda de troca política. Verbas publicitárias do Executivo, Legislativo, Judiciário, de estatais e da iniciativa privada servem como adoçante ao paladar ácido e intencional de veículos que se posicionam contra ou favor de grupos, conforme a conveniência pontual. Recursos públicos capitalizam projetos de interesse meramente coorporativos e mercantilistas neste sistema.

É de conhecimento que governos sem legitimidade popular e políticos sem escrúpulos criaram leis casuísticas, transformaram as concessões em herança e estabeleceram o compadrismo num sistema de comunicação em choque com a Constituição. Criaram e fortaleceram tanto que se tornaram reféns, levando a reboque outras instituições. Mesmo lideranças com respaldo popular têm receio de tocar na questão central. Temem a construção ou desconstrução de personalidades e carreiras. Muitos acreditam no mito de que a imprensa (diga-se os donos das mídias) é o quarto poder. Cadê o compromisso de jornalismo público e social? Por que apenas os jornalistas têm que arcar com o preceito constitucional?

O Capítulo V foi invocado para golpear a categoria. Mas seus artigos, como os 221 e 224, não servem para amparar uma reforma agrária nas comunicações. Os coronéis da mídia, doutorados na manutenção do poder, mandam, não só nas redações, onde seduzem uns e imperam para outros, mas nas instituições, como no STF. Manipularam pela submissão do Supremo que desconsiderou ainda o inciso XII do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que atribuiu ao legislador ordinário a regulamentação para o exercício de determinadas profissões de interesse e relevância pública e social, dentre as quais a de jornalista.

Aos ‘latifundiários’, a complacência

À luz da cognição, os jornalistas brasileiros esperavam que os ministros do STF não criassem um precedente que atingirá outras profissões, sem que o país seja capaz de uma verdadeira reforma agrária na comunicação. Há quem comemore, reforçando a bandalheira institucionalizada em segmentos do jornalismo. E a sociedade é que pagará pelos males da desinformação, pelo descompromisso ético e moral, pelo estabelecimento de neuroses coletivas e até pela destruição de vidas.

Do jeito que os fatos se encaminharam, nos parece que houve apenas um ataque jurídico aos ‘trabalhadores rurais’ da comunicação, os jornalistas ainda empregados. Estes não são os inimigos da democratização do sistema e nem merecem o rigor da vingança. Os ‘latifundiários’ da comunicação não receberão o mesmo trato severo – a eles, a complacência, expressa no Houaiss como disposição habitual ou tendência de corresponder aos desejos, gostos, idiossincrasias de outrem com a intenção de ser-lhe agradável. E o STF se prestou a este papel.

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Jornalista, Guarulhos, SP