Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O alemão queimado e o cadáver da ética

A manhã começava a raiar quando os moradores de um condomínio em São Conrado, na Zona Sul do Rio, acordaram subitamente com uma grande explosão. Todos tiveram de sair de casa às pressas. Passada a perplexidade inicial, logo se constatou que o problema resultou de um vazamento de gás, provavelmente do aquecedor instalado na área de um apartamento do décimo andar. A violência do choque foi tal que destruiu também os imóveis dos andares de cima e de baixo, rompendo as lajes, e danificou vários outros. O prédio passa agora por obras que vão durar meses e não se sabe quando estará novamente apto a funcionar.

O morador do apartamento onde ocorreu a explosão é um alemão que sofreu queimaduras em 50% do corpo e está internado em estado grave no CTI do Hospital Pedro II, em Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade. Aos médicos, disse que havia sido atacado e torturado por um ladrão, mas a versão parece fantasiosa. A polícia ainda está investigando o caso.

Exploração rasteira

O fato ocorreu no dia 18/5. Por ora, mais nenhuma novidade.

Quando não temos novidade, o que fazemos? Arrumamos um jeito de chamar a atenção. Nem que seja passando pelo cadáver da ética.

Foi assim que O Globo resolveu publicar reportagem assinada por dois de seus mais experientes repórteres na qual o grande chamariz era a foto, “obtida com exclusividade” – melhor seria dizer “produzida”, pois o crédito é dado à própria repórter que foi ao hospital –, de uma pessoa deitada na cama, debaixo de um cobertor, com o rosto enfaixado e entubado.

Sabemos que é o alemão porque o jornal diz que sim: tudo o que vemos é um corpo embrulhado em cobertas e ataduras. Seja quem for: qual é a necessidade de se exibir essa imagem, a não ser pela exploração do mais rasteiro sensacionalismo? Desde quando se pode invadir assim a intimidade de pessoas, ainda mais nesse estado, em coma induzido, sem qualquer possibilidade de reagir? O hospital terá autorizado a captura da foto? A repórter foi “esperta” e ludibriou quem deveria zelar pela privacidade do doente? Não percebeu que não tinha o direito de agir assim?

No “popular”

A foto está disponível no site do jornal. Qualquer um, com uma breve pesquisa, pode acessá-la. Não a reproduzimos aqui para não contribuir com a divulgação de uma imagem que jamais deveria ter sido publicada.

O caso chama ainda mais atenção por ter ocorrido no Globo, um jornal que se classifica entre os chamados “de referência”. É como se considerássemos que jornais populares, ou popularescos, estivessem autorizados a fazer qualquer coisa. Não estão: cada qual tem sua linguagem própria, mas todos precisam obedecer a determinados princípios éticos elementares. O que tantas vezes não acontece. E, mais uma vez, não aconteceu.

Na edição de quarta-feira (20/5), o tabloide Meia Hora, conhecido por suas manchetes de duplo sentido – às vezes muito criativas, às vezes de péssimo gosto –, escancarou, ao lado da foto da fachada do apartamento destruído: “Explosão: garoto de programa pode estar por trás”.

Muito engraçado, não é? O sujeito está internado, com risco de vida, e o jornal resolve explorar uma hipótese escatológica, bem ao gosto de seu público. Se não proceder – e aparentemente não procede –, não faz mal: nem precisa pedir desculpas, a vida segue, o alemão – se sobreviver – vai ser sacaneado, mas quem se importa? O jornal é assim mesmo, perito em fazer gracinhas.

Não é bem assim: não custa lembrar que, em setembro de 2012, diante da chacina de jovens numa localidade da Baixada Fluminense, o Meia Hora saiu com uma capa em que pedia desculpas ao leitor: “Hoje não tem piada” (ver “Os mortos bons e os maus”).

Ou seja: para tudo há um limite. O problema é quem o define.

Em tempo (1): Este artigo já estava publicado quando a autora soube que a obtenção da foto foi comemorada pelo aquário e mereceu “ponto positivo” da direção do jornal.

Em tempo (2): O alemão acabou falecendo na madrugada de quinta-feira (28/5).

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)