No rigorosíssimo inverno de 1983-84, o pior até então registrado nos Estados Unidos, a rotina era diária: acordar, tomar banho, apesar do frio, engolir apressadamente o café da manhã, ligar o aquecedor do carro e sair para deixar os filhos na escola, de lá seguindo para o campus da Universidade da Flórida. Quantas vezes a WJJ entrasse na sintonia do receptor, tantas vezes ouvíamos Thriller.
A música já tinha um ano de lançada, mas as emissoras de rádio, de costa a costa, não paravam de tocá-la. Virou a marca registrada da nossa permanência em terras americanas. Juliana, Lívio e Angelim a cantavam e dançavam, crianças de 10 a 6 anos. Lenil e eu ensaiávamos a nossa parte; eu, quando sozinho, me flagrava tentando uma imitação furreca daqueles passos para trás que pareciam abolir a força da gravidade nos movimentos do astro. Debalde, como disse Egmont, pela tradução de Benedito Nunes, quando da encenação da peça de Goethe no Teatro da Paz, 40 anos atrás.
Eu tinha que receber o impacto, ao saber pela televisão da morte de Michael Jackson, um dos maiores criadores de música popular no mundo – e dançarino como raros. Ele fazia parte da minha vida – e de uma parte feliz e fértil dela – como da vida de milhões de pessoas espalhadas pelo planeta. Seu desaparecimento arrasta aquele pedaço da existência para a qual ele se tornou referência. Ao ouvir Thriller, bastava fechar os olhos: as imagens e sensações dos meses em Gainesville, na divisa da Flórida com a Geórgia, escorriam límpidas e saborosas pela memória, eternizando-se dentro de mim.
Não se trata apenas de uma associação casual de fatos, embora, no âmbito bem pessoal, o fenômeno tenha sua importância. É porque Michael Jackson conseguiu o que poucos alcançam em sua peregrinação pela vida: criar uma marca própria, única. Na verdade, ele criou a si.
Esquisitices e extravagâncias
Aquela criança prodigiosa que ele foi desde os 4 anos, quando já cantava com afinação e exuberância, e era um líder nato, podia ter-se tornado uma celebridade sem se envolver em tantos acontecimentos polêmicos, destruidores. Michael era uma pessoa alegre, otimista, enérgica. Seria daqueles que vencem as barreiras da discriminação aos negros nos Estados Unidos, parecem não carregar seqüelas dessas origens e se tornam um exemplo, um padrão para a sociedade, como várias das personalidades do show-bizz americano (Harry Belafonte, por exemplo, ou Denzel Washington).
Ele, no entanto, afastou a linha sincrônica da sua vida e foi se equilibrar, sempre ousando, no fio afiado do diacrônico, faustiano. Refez o próprio corpo, parte por parte, de forma natural e artificial. Negou sua ‘raça’ e procurou embranquecer, tornando-se um híbrido, uma criatura maneirista? Sim, mas não só: virou um objeto não-identificado, como na canção de Caetano Veloso; sozinho e apaixonado. Um ser dos tempos virtuais, da cópia em alta tecnologia: um andróide.
A nova figura, uma escultura em carne e osso, se tornou um bólido, através do qual Michael detonou uma cultura que era a expressão não dele no original, no simplesmente material, mas de sua visão do mundo, de suas fantasias e paranóias, da sua realidade e das suas utopias, da sua ambivalência, parte dela mergulhada no lodo, a outra parte projetada no espaço, no céu, no arco-íris da sua imaginação fecunda, na terra-do-nunca, que agora o abriga e o encerra.
Michel criou um novo universo, à margem deste em que estamos contidos (na amplitude de significados da expressão), como se fosse um bruxo, um mágico, um verdadeiro artista, dos maiores da cultura pop, um Tolkien (ou um C. S. Lewis) a manejar não palavras, mas sons e gestos, a teatralidade dos escaninhos metropolitanos. A iconografia dos seus trajes, a coreografia da sua dança, as letras das suas músicas, as interpretações afinadas e agudas que delas consumava, suas expressões faciais e mesmo suas esquisitices, extravagâncias e hábitos chocantes, tudo isso, combinado, resultou no modo Michel Jackson de ser, cultivado e imitado pelos seguidores, mais numerosos do que a maioria dos líderes mundiais jamais conseguiu recrutar.
Tarja preta
Michael marcou presença na cena americana e, em seguida, internacional, por quase meio século. Quantos o ombreiam nessa façanha? No entanto, morreu cedo, de forma abrupta, de surpresa e em meio a um mistério que também nunca será completamente desfeito. Superou todos os casos semelhantes que o antecederam, como James Dean, Elvis Presley (a este ainda mais ligado por ter casado com a filha do cantor, um branco de alma negra, no estigma contrário ao de Jackson), e até mesmo personagens de outra esfera, mas em contato com o circuito do artista, como Howard Hughes. De certa forma, Michael deu continuidade a um tipo de cultura sacramentada pelos Beatles (de cujas músicas se tornou proprietário, com um lance de quase 50 milhões de dólares, em 1985), mas revista e adaptada para um mundo muito diferente a partir dos anos 1970.
Nele, já não cabiam baladas melodiosas, paletós de corte timidamente contestador, cabelos compridos alinhados, botinas engraxadas, excessos sob controle (até serem estourados por John Lennon). Era a vez de zumbis, monstros, gritos, mixagem das músicas de gueto, passos de dança inspirados em astronautas, na harmonia de corpos magros que se adestram fugindo de navalhas e de tiros, escuridão das ruas segregadas e a explosão de vitalidade dos que, mesmo assim, ainda acreditam na esperança.
Atrás dela, Michael se recriou Peter Pan e foi atrás das suas crianças. Deparou com processos judiciais, indenizações milionárias, responsabilidades civis, falência e uma parada cardíaca na seqüência de remédios sem conta de tarja preta. O céu e o inferno, a terra e o cosmos, a vida e a morte, a história. Grande Michael Jackson.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)