Virtude da inteligência humana é a capacidade de analisar fatos diversos e combiná-los em eixo que permita sua interpretação coerente: por isso é louvável o alerta que a imprensa tem feito acerca do fim a que convergem diversas atitudes isoladas do Executivo nacional, o preocupante sufocamento do regime democrático.
À proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), à influência para reduzir os poderes investigatórios do Ministério Público e às mordaças em geral, pode ser acrescido – no contexto do que um editorial do jornal O Estado de S. Paulo (13/8/04) chamou de ‘encadeamento sinistro de ações do Planalto’ – o desarmamento da população civil, pela compra de suas armas com recursos federais, no investimento do dinheiro do contribuinte para o desmantelamento de sua própria defesa.
Mas estas considerações pretendem-se limitar à polêmica do projeto de lei da criação do CFJ e das vantagens que poderia haver naquilo que os interessados no sucesso desse plano sugerem como algo próximo à auto-regulamentação do jornalismo.
Não existe dúvida qualquer de que a atividade da imprensa merece controle ou tutela, não para que se lhe possa cercear o exercício, mas para zelar por sua ética e minimizar os efeitos do abuso em seu poder. A criação, porém, de uma Ordem, tal qual existe para a profissão de advogado, ou de um Conselho, como ocorre com a Medicina, desde logo não se afigura como a solução mais adequada por dois motivos principais, que podem ser apresentados separadamente: primeiro, porque é ao Poder Judiciário que incumbe a tutela de qualquer lesão ao indivíduo e à sociedade, e com a imprensa não seria diferente; e segundo, porque seguramente a atividade jornalística merece um trato diverso – entenda-se um trato mais livre – do que a atividade dos outros profissionais, e disso faz prova o instituto da Lei de Imprensa.
Regime diferenciado
Levantar como baluarte da criação do CFJ a necessidade de ‘disciplinar responsabilidades’ inerentes a seu uso é construção argumentativa falaciosa. A imprensa, notadamente nesta sociedade de informação, é fonte de risco a direitos dos mais variados, até mesmo à dignidade da pessoa humana. Entretanto, ao menos aos olhos do Direito, há de se observar, como ponto de partida de qualquer intervenção na imprensa, que seus conflitos quase sempre envolvem, de um lado, direitos da personalidade (honra, intimidade, privacidade etc.), mas de outro as importantes liberdades públicas, em especial as de expressão, de informação e de imprensa. Essas liberdades, entenda-se, não são supra-direitos, não estão de todo acima daqueles individuais, mas sua garantia requer extremo cuidado em caso de qualquer intervenção.
E é a mesma Constituição Federal, visto como um contrato assinado entre os cidadãos para a fixação de suas regras de convivência, que estabelece que incumbe ao Poder Judiciário sopesar esse conflito. O texto constitucional não se abre a dúvidas, no seu art. 5º, inciso XXXV: ‘A Lei não afastará da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’.
O indivíduo ou quem se sinta lesado por abuso na atividade da imprensa tem no Judiciário esse regulador, que irá estabelecer o alcance do dano e o custo de sua proteção à liberdade de expressão, coletiva. E nenhuma medida pode impedir a intervenção do Judiciário, quando provocado a tanto: uma punição administrativa do Conselho Federal de Medicina ao médico por ato imprudente não implica impedimento a que esse mesmo fato venha a ser apreciado em uma ação cível de reparação de dano ou em processo criminal pelo injusto culposo. Quanto à criação do CFJ, muitas vozes já têm indicado que é ao Judiciário que convergem esses conflitos, e ninguém pode impedir que a ele caiba analisar lesão ou ameaça a direito, individual ou difuso.
Mas o fato de a chamada tutela jurisdicional já ser suficiente para solucionar conflitos não seria justificativa isolada para impedir que um Conselho venha a concorrer para regular o exercício da atividade, no que a Lei determinar-lhe como competência. Nesse ponto é que cabe realçar a peculiaridade da profissão, por esse estreito vínculo que trava com a liberdade de expressão e com o potencial elevado de dano a direitos da personalidade. É tão necessário um regime diferenciado de regulamentação nessa atividade que a lei brasileira, desde o Primeiro Império, prevê para os crimes de imprensa uma forma de imputação totalmente distinta daquela aplicada a qualquer outro tipo de delito.
Evitar abusos
O Brasil, no Código Penal de 1830, foi o primeiro país do mundo a adotar, para os crimes de imprensa, o regime denominado responsabilidade sucessiva. Esse sistema, preservado até a Lei de Imprensa atual, de 1967, prevê que possa responder por uma ofensa em matéria de imprensa até mesmo o dono da gráfica em que se imprime o jornal ou o jornaleiro que o vende, caso não se encontre um idôneo que possa ser responsabilizado pelo injusto grave que uma matéria jornalística represente.
Por um contexto que interessa quase somente a operadores do direito, é de se realçar que a Lei de Imprensa, se interpretada sob os princípios constitucionais vigentes, acaba por estabelecer um sistema de responsabilidade único, com seu duplo escopo: enquanto evita o anonimato, reduz a esfera de eventuais responsáveis por crime, o que protege a liberdade de imprensa.
A observação da realidade histórica, entretanto, demonstra que um país pioneiro na adoção de um regime de responsabilidade diferenciado para o jornalismo não tem tradição de seu uso para redimir os abusos graves da imprensa. Em menos de 200 anos de nação independente, a verdade é que pouco se recorreu ao Poder Judiciário – ao uso da lei, portanto – para tutelar direitos ofendidos pelos sistemas de comunicação.
Mesmo no liberal Primeiro Império, episódios como a morte de Líbero Badaró ou a surra de Luis Augusto May ou de Pamplona Corte Real levaram o viajante inglês Fox Bunbury a afirmar que: ‘A liberdade de imprensa é garantida pela Constituição e, praticamente, é apenas cerceada pela liberdade da faca, a qual (apesar de não ser reconhecida pela Constituição), existe, assim mesmo, de maneira muito considerável’. As ditaduras que seguiram, nem é necessário que se diga, também afastaram do Judiciário a tarefa de reger a imprensa e garantir sua liberdade.
Se não tivemos tradição em usar o Judiciário para a tutela no jornalismo, é certo que existe instrumento legal para tanto. Mesmo que a Lei de Imprensa necessite de reformas, ela é suficiente para que se dispense qualquer outra regulação que venha a pôr em risco, mínimo que seja, o sopesar entre liberdades e direitos da personalidade, entre interesse público e dignidade da pessoa humana, que somente os princípios do processo legal podem fazer alcançar. Estão no devido processo legal, diante do Judiciário, e em uma eficiente lei de imprensa as garantias que a sociedade necessita para evitar os abusos e a concentração dos meios de comunicação, em harmonia com a preservação das liberdades.
Salvaguarda da liberdade
Existe, porém, solução intermediária para o dilema que ora se instaura entre a liberdade de imprensa e sua ética. A iniciativa governamental de dar à sociedade instrumento de controle dos abusos de imprensa não é de todo condenável, desde que não se conceda a um órgão o temerário poder coercitivo de cassar a licença de exercício de profissão ao eventual infrator, conforme previsto no inciso V, do artigo 7º, do projeto de lei oriundo da Casa Civil.
Por isso, a criação de um órgão multidisciplinar e respeitável para a avaliação do cumprimento do Código de Ética do Jornalismo seria alternativa ideal. Basta observar o exemplo do Conselho de Auto-regulamentação Publicitária (Conar): mesmo sem qualquer poder de censura ou punição direta, aquela ONG acumula experiência de celeridade em seus processos e acatamento de suas decisões.
Em um Conselho Multidisciplinar para a Ética do Jornalismo, à imagem do Conar, uma decisão célere, informal e segura teria todo o resguardo para ser acatada: a rapidez no veredicto, a multidisciplinariedade dos julgadores, o direito de defesa, a democracia das decisões. Somente lhe faltaria o poder coercitivo, mas pode ser logo encontrado na tutela jurisdicional, no recurso ao Judiciário, que encontraria na sentença do Conselho independente grande argumento para sua decisão.
A salvaguarda da liberdade de pensamento passa por considerar-se a tutela do Estado tanto às liberdades públicas quanto aos direitos individuais. Não se impede a criação de um Conselho para zelar pela ética, mas isso não significa que, neste momento político, deva-se disciplinar a profissão, o que é bem diverso. A criação de um Conselho multidisciplinar, nos moldes do Conar, desprovido da espada da cassação da licença porém com o respeito da sociedade e do Judiciário, é alternativa mais do que viável.
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Advogado especializado em direito de imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, autor do livros Responsabilidade penal na Lei de Imprensa, Direito Penal Moderno e da novela A hora do carvoeiro: história de um amor pelo crime