Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Canal da Imprensa

MÍDIA & RELIGIÃO
Tales Tomaz

Não há contraditório

‘O papa Bento 16 já voltou para seu lar no Vaticano, mas a mídia garantiu que os efeitos de sua visita possam ser mensurados. O professor Ivo Lucchesi, em entrevista por e-mail para o Canal da Imprensa, falou sobre a forma como a imprensa compreendeu e transmitiu o papa e seus discursos. Ele acredita que a mídia falhou no ponto mais importante que, na sua opinião, era fazer uma análise crítica dos assuntos polêmicos que Bento 16 tratou. Para ele, a imprensa deveria ter promovido a prática do ‘contraditório’, tão essencial para um jornalismo sério. Lucchesi também fala sobre a diferença entre ‘liberdade de expressão’, tão apregoada pela mídia, e ‘liberdade de pensamento’.

Ivo Lucchesi é doutor em Teoria Literária pela Faculdade de Letras da UFRJ. Ele é autor de livros, ensaios nas áreas de crítica literária e crítica da cultura. É professor de Teoria da Comunicação e de Linguagem Impressa e Audiovisual do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), no Rio de Janeiro. Lucchesi também é articulista do Observatório da Imprensa.

Canal da Imprensa – De uma forma geral, a mídia tratou a visita do papa por uma perspectiva religiosa, política ou social?

Ivo Lucchesi – A mídia, habituada a versões anteriores, eis que se sentiu um tanto desconfortável, ante o perfil deste papa. Acabou por não cobrir em nenhum dos três. Quase teve falência múltipla dos órgãos.

CI – Qual é a diferença entre as imagens de Bento 16 e de João Paulo II na mídia?

Lucchesi – A comparação entre os dois recentes papas, grosso modo, aponta para o perfil nitidamente midiático que bem encarnou João Paulo II, no propósito explícito de ampliar a rede mundial de católicos, afora a missão política que desenvolveu nos primeiros anos, a começar pela ‘coincidência’ entre João Paulo II ser polonês e, justamente na Polônia, haver iniciado, sob a regência do movimento ‘Solidariedade’, o processo de estilhaçamento da antiga União Soviética.

No tocante à figura de Bento 16, cabe assinalar o perfil quase oposto ao do antecessor, ou seja, o sucessor encarna o papel de quem, na condição de líder máximo dos católicos, chama a si a missão de realinhamento da Igreja Católica quanto aos seus pilares de sustentação: os dogmas e os sacramentos. Para cumprir tal estratégia, a imagem de Bento 16 se descola da ‘sedução midiática’ para consagrar a afirmação da ‘consciência religiosa’. Sem ignorar o significado profundo da fé, agrega-lhe o sentido da razão. Fica, pois, nítido o processo de horizontalidade de João Paulo II (expansão), em oposição ao processo de verticalização de Bento 16 (qualificação).

CI – Em quais aspectos a mídia foi bem na cobertura do papa?

Lucchesi – Rigorosamente, a mídia não teve bom desempenho na cobertura, exatamente porque o figurino da nova visita não apresentou o modelo ao qual, tão facilmente, a mídia se habituara, nas ocasiões anteriores. O problema real reside na questão de fundo: a mídia brasileira não tem autonomia crítica, à altura de confrontar estruturas de poder. Parte de sua limitação provém da própria fragilidade econômico-financeira das principais empresas de comunicação. Parte outra deriva do ‘caráter dissimulado’, típico de estrutura de sociedade ainda reprimida.

CI – Você comentou em artigo no Observatório da Imprensa que a mídia evitou ‘se arriscar’ na cobertura da visita. Como ela deveria se arriscar mais? Faltou à mídia mais uma vez dar uma exposição mais crítica para o leitor?

Lucchesi – Faltou à mídia ‘puxar’ os temas polêmicos, ao deixar de trazer maior número de vozes favoráveis e contrárias.

CI – Faltou ‘puxar os temas polêmicos’. Que temas polêmicos seriam esses?

Lucchesi – A mídia, no seu modelito justo, optou por deixar na periferia as reais questões que a vinda de Bento 16 suscitou, isto é, os temas presentes na complexidade da sociedade moderna ficaram bem claros nas mensagens de Bento 16. Todavia, os leitores não tiveram da parte da grande mídia o comportamento de isenção para, de modo efetivo, trazer à pauta das discussões a intransigência da Igreja Católica, a exemplo do aborto, união entre homossexuais, o uso de preservativos, a eutanásia e a inaceitabilidade do divórcio (embora, entre nós, já, há muito, legalizado). Enfim, ao explícito tom conservador de Bento 16, a mídia (‘democrática’) não soube (ou não quis) promover a prática do contraditório.

CI – Você acha que esses temas deveriam ser melhor debatidos pela mídia?

Lucchesi – Obviamente, tais temas, se tratados jornalisticamente de modo eficaz, trariam mais substância reflexiva a leitores (ou receptores). É função intransferível da mídia cumprir tal expediente, se há real democracia.

CI – Você não acha que a imprensa trata o catolicismo como uma religião dominante em um país que é cada vez mais tomado por pentecostais e evangélicos?

Lucchesi – Isto é visível e explicável. Nenhum veículo de comunicação, no Brasil, confronta estruturas sólidas, tais como: CNBB, Forças Armadas e autoridades políticas.

CI – A Igreja Católica no Brasil sai fortalecida dessa visita? Ela encontrou mais espaço na mídia, a partir de agora, para discutir as questões sociais?

Lucchesi – Creio que sim. Bem (ou mal), a Igreja Católica esteve na vitrine.

CI – Na sua opinião, foi mais para ‘bem’ ou mais para ‘mal’?

Lucchesi – Não será o caso de se colocar nesses termos (‘bem’ ou ‘mal’). É preferível considerar que, numa sociedade de massa, a exposição na ‘vitrine’ sempre acaba por favorecer quem se expõe. Vira notícia, amplia o foco de ‘celebração’. No âmbito específico, a exposição serviu para fortalecer os fiéis, fazer ‘estremecerem’ alguns indecisos e fechou a porta para os que já se encontravam do lado de fora. Computando tudo, houve rentabilidade.

CI – Você sentiu diferença na cobertura de algum veículo?

Lucchesi – Destaque, talvez, terá merecido a Folha de S. Paulo, principalmente na edição na qual agregou um caderno especial sobre ‘Religiões’. Os demais veículos mantiveram o enfoque normalmente destinado a ‘cobertura de eventos’.

CI – A própria Folha relatou em 12 de maio a divergência ‘Record x Globo’, quando a primeira ocultou a canonização de frei Galvão e a segunda chamou os protestantes de seita. Com exemplos como esse, você não acha que a mídia está deixando de lado cada vez mais sua imparcialidade?

Lucchesi – As diferenças entre Record e Globo não ultrapassam a ‘mesquinharia’ da luta por audiência. Em particular, a TV Globo demonstrou a capacidade invulgar em atropelar qualquer dimensão do sagrado. No domingo no qual havia corrida de Fórmula 1 e a missa do papa, a Globo, em questão de segundos, saiu da pista e entrou na igreja. Nunca o profano e o sagrado foram tão nivelados. Pior ainda o público, que aceitou a dobradinha.

CI – O papa citou alguns problemas da sociedade que precisam ser combatidos, entre eles o ‘laicismo’ e os ‘veículos de comunicação’. Isso não é uma ameaça a duas conquistas importantes para a democracia?

Lucchesi – Não se trata, creio, de ameaça. Nenhuma religião tem compromissos com democracia. E, pelo que religião (instituição) é, não tem como ser. Agora, indo mais fundo na questão, cabe indagar: será que o Brasil, efetivamente, já chegou ao patamar da ‘democracia’? No Brasil, faz-se leitura muito rasteira, ou seja, entende-se que democracia é ‘liberdade de expressão’. Minha gatinha também tem (e sempre teve) ‘liberdade de expressão’. Há muito tempo, escrevi sobre a diferença entre ‘liberdade de expressão’ e ‘liberdade de pensamento’.

CI – Explique melhor por que uma religião não tem compromissos com a democracia

Lucchesi – A questão não é o fato de ter (ou não ter) compromissos com a democracia. A religião, por sua própria natureza de concepção, gera entraves à liberdade humana, a começar pela ingerência que faz sobre o corpo. No que a religião estipula ‘condenações’ por práticas que ela veta, qualquer sentido maior de democracia se esvazia na origem.

CI – O que seria ‘ir mais fundo na questão’ da democracia?

Lucchesi – A mídia, principalmente, se esforça em alardear a vigência do exercício democrático. Para tanto, ela exalta a ‘liberdade de expressão’. Curiosamente, no Brasil, não se usa ‘liberdade de pensamento’. O que define democracia não se situa nos limites da ‘expressão’. A questão é saber se o indivíduo foi educado para libertar o ‘pensamento’. Em caso contrário, ele apenas expressará livremente conteúdos que, na raiz, já foram delimitados.’

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Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.

Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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