Quem sabe o Congresso não aprova uma Emenda Constitucional garantindo, além da inviolabilidade da imagem das pessoas (inciso X do artigo 5º), também a inviolabilidade da imagem das cidades? Por que não?
Cidades têm, sim, imagens próprias. Justas e verdadeiras umas, injustas ou falsas, outras. Chicago, na década de 1930, era a cidade dos gângsteres. O Rio de Janeiro seria ainda a cidade maravilhosa? Brasília, que já foi a capital da esperança, hoje parece ter se transformado em terra da desonestidade e da corrupção.
Do desafio cívico ao insulto
Salvo períodos relativamente curtos, resido em Brasília, Distrito Federal, há quase quarenta anos. Quando me mudei para a capital federal, família e amigos diziam: ‘Não faça essa loucura. Brasília só tem poeira e a cidade não vai dar certo. Quem vai querer morar naquele fim de mundo?’
Havia, no entanto, um desafio implícito de pioneirismo em contribuir para a consolidação da nova capital e a interiorização do desenvolvimento. Além disso, apesar de todas as violências que sofreu nos seus primeiros anos, o projeto da Universidade de Brasília ainda exercia um fascínio especial naqueles que, como eu, sonhavam com uma carreira acadêmica comprometida com a transformação da sociedade brasileira.
O tempo passou e aquilo que 40 anos atrás podia ser visto como um desafio cívico transformou-se radicalmente. E para muito pior. Hoje, identificar-se como habitante de Brasília, Distrito Federal, em qualquer parte do território nacional, passou a ser motivo de chacotas, indiretas, piadas de mau gosto e até mesmo de insultos.
Se duvidar do que escrevo, leitor, faça você mesmo a experiência: desembarque em qualquer aeroporto, tome um táxi e, na conversa, simplesmente diga: ‘Sou de Brasília’. Ou declare a mesma procedência numa mesa de bar com novos amigos em uma cidade qualquer do país. É só aguardar o que ouvirá em seguida…
Corrupção e geografia
O que teria acontecido para mudar de forma tão profunda a percepção difusa que aparentemente a maioria dos brasileiros tem de sua capital e da vida de seus hoje mais de 2,5 milhões de habitantes (IBGE/PNAD 2007)?
Nos últimos 40 anos, como capital administrativa da Federação, as ações de corrupção praticadas e/ou atribuídas a pessoas ligadas, direta ou indiretamente, ao poder público passaram a ser associadas à sua geografia – vale dizer, a cidade de Brasília. E, por extensão, independente da atividade exercida, ao brasiliense. Viver e/ou nascer em Brasília passou a ser uma espécie de pecado original, um DNA maldito, que condena qualquer um a práticas criminosas.
Ora, bolas. A corrupção não é uma prática exclusiva de brasileiros. Ao contrário. Ela aparece, cada vez com mais freqüência, em países onde, em princípio, não se ‘esperava’ que ela ocorresse. Ademais, por óbvio, a corrupção não é uma prática exclusiva daqueles que se dedicam à vida pública. Ela ocorre tanto na esfera privada quanto na esfera pública [para uma excelente introdução a essas questões consultar Avritzer, Bignotto, Guimarães e Starling (orgs.); Corrupção – Ensaios e Críticas; Editora UFMG, 2008).
Como se construiu, então, essa imagem negativa de Brasília, do Distrito Federal e de seus habitantes? A quem poderia interessar rotular todos os habitantes da cidade como indiscriminadamente corruptos?
A construção de uma imagem falsa
Muitos dos velhos jornalistas que faziam/fazem a cobertura política que se origina no centro do poder, nostálgicos da antiga e litorânea capital, não se preocuparam em revelar ao resto do país que – para além das esferas do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário – existe vida honesta e ativa no Distrito Federal.
Nos últimos anos, presenciamos a uma avalanche seqüencial de escândalos políticos de todo tipo e, aparentemente, o brasileiro que se informa sobre o Distrito Federal através do que dele se noticia na grande mídia ‘pensa’ Brasília reduzida à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes. É a conhecida versão da ‘Ilha da Fantasia’.
Essa é a imagem que se foi construindo e que, além de injusta, evidentemente, é falsa.
Brasília não se reduz à atividade de políticos e burocratas que para aqui vêm, oriundos dos 26 estados da Federação. E, muito menos, às atividades daquela minoria, entre eles, que pratica a corrupção.
O Distrito Federal, nos seus quase 50 anos, consolidou uma vida própria, peculiar, diferente de outras cidades-administrativas, no Brasil e em outros países. Como em qualquer outra cidade, temos coisas boas e ruins, contradições e paradoxos. A geografia, por óbvio, não contamina indiscriminadamente seus milhões de habitantes com o vírus da corrupção.
Só os corruptos não ganhariam
Claro que uma PEC sobre a inviolabilidade da imagem das cidades é apenas uma provocação. O que é de fato necessário é a grande mídia pautar o Distrito Federal e, finalmente, revelar que este não se reduz ao pequeno circulo do poder que ela cobre diariamente e identifica, sem mais, com Brasília.
É preciso que os brasileiros não-brasilienses saibam: Brasília, como o Brasil, é certamente muito maior do que os Três Poderes da República.
Só os corruptos não ganhariam com essa ‘revelação’.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)