Eliane Brum é uma repórter surpreendente até nos seus amores. Nasceu no Rio Grande do Sul, mas é apaixonada pela terra do outro extremo do país, Roraima. Paixão adquirida durante a experiência mais plena de seus vinte anos de jornalismo, passada para o texto, na forma de uma declaração de amor incompreendida. A reportagem mais brilhante que eu já li sobre os conflitos agrários na Amazônia, a segunda deste livro, desagradou gente poderosa de Roraima, o lugar onde ela afirma não haver dias comuns, muito menos unanimidade.
Ela renasce e se recria a cada reportagem. ‘Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão’, Eliane avisa já nas primeiras das 424 páginas de grandes revelações.
Reportagem, para Eliane, é um ato de entrega, de envolvimento intenso entre quem fala e quem escuta, por meio de uma relação preciosa de confiança mútua entre repórter e personagem. O resultado dessa cumplicidade está explícito em cada uma das histórias captadas em O olho da rua.
Por mais que eu tenha buscado na leitura rigor técnico para o prefácio, fui tomado pela emoção do começo ao fim. Precisei de releituras para tentar o afastamento crítico diante da complexidade intrigante dos personagens, descobertas raras nos mergulhos de apuração de uma repórter que se nega a ser dona de alguma verdade.
Repórter de verdade, nas palavras de Eliane Brum, ‘atravessa a rua de si mesmo para olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo’. Embora minha admiração pelo trabalho de Eliane venha de longa data, pouco sabia de seus fundamentos sobre o jornalismo, com os quais concordo integralmente, exibidos aqui como instrumento oportuno de ligação entre os capítulos. São práticas de conduta simples, mas simbolicamente corajosas por se oporem, nestes tempos, à corrente dominante nas redações brasileiras, reféns da arrogância e de maniqueísmos.
Perguntas e respostas
‘Muito jornalista experiente escorrega porque presume demais. e presume a partir de seus preconceitos, de sua visão de mundo, de sua vida cotidiana numa realidade muito diferente… A vida sempre fica mais fácil quando reduzida a um ponto de vista que nos coloca como civilizados em contraposição ao outro – sempre frio, sujo, malvado e ignorante.’
Os métodos rigorosos de pesquisa da autora representam, para meu entusiasmo, o avesso da dinâmica tecnoburocrática predominante. Apurar por e-mail, por telefone, por intercâmbios eletrônicos de informação, além de excluir da pesquisa a maioria da população, que não tem acesso a essas tecnologias, elimina o melhor da prática jornalística: ouvir de perto, ao vivo, de preferência com os pés envolvidos ‘na lama dos acontecimentos’.
A reportagem é a arte da escuta. Para Eliane Brum, é muito mais do que ouvir. Por autodefinição mulher esfinge, ela exercita com esmero o seu dom de ouvinte, que abrange por ofício a captação do tom e do ritmo das palavras e do silêncio. É o seu jeito de aproveitar ao máximo o privilégio dos repórteres: o de ver primeiro, o de entrar nas casas, o de ouvir narrativas de vidas, do parto à vivência da morte, para depois transmitir aos outros.
‘Como repórter e como gente eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar era saber ouvir a resposta… eu não arranco nada. só me comprometo a ouvir, a escutar de verdade, sem preconceitos.’
‘Mundo em dissonância’
É um livro de referência, que entusiasma jornalistas de todas as idades. Durante minhas semanas de leitura, tive vontade de fazer cópias dos originais para distribuí-las, com urgência, aos meus colegas da equipe do programa Profissão: repórter, formada em sua maioria por jovens profissionais, em começo de carreira na TV. Não contive o ímpeto, confesso, Eliane, e li em voz alta na redação e no carro da reportagem algumas frases dos capítulos que mais me emocionaram.
Do capítulo sobre as parteiras da Floresta Amazônica:
‘Elas são chamadas nas horas mortas da noite para povoar o mundo’.
Do capítulo sobre o garimpo:
‘O garimpeiro é o brasileiro pobre que se recusou a desistir’.
Do capítulo sobre os asilos para velhos:
‘Inventaram a expressão casa de repouso para abrigar velhos supostamente cansados da vida quando é o mundo que se cansou deles’.
Escrever como ato físico, ‘carnal’, com obstinada busca pela precisão das palavras, distribuídas como se fossem compor uma melodia, com ritmo e sentimento. Criar texto por música. Mas, o melhor deste livro transcende a beleza das frases, o rigor do método, o valor dos fundamentos.
O que mais emociona é o olhar, a sensibilidade da autora para a descoberta de histórias de um ‘mundo em dissonância’. Eliane Brum vê grandeza até nos pequenos feitos de pessoas despercebidas.
Por isso, antes de recomendá-la fortemente para você, leitor, eu a indiquei para a prateleira de meus autores preferidos, como escritora de uma obra imune ao tempo.
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Sobre a autora:
Eliane Brum é uma das mais premiadas jornalistas brasileiras. Ganhou quase 40 prêmios de reportagem, como Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna e Sociedade Interamericana de Imprensa. Gaúcha de Ijuí, nasceu em 1966. Iniciou sua trajetória como repórter no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 1988. Desde 2000, é repórter especial da revista Época, em São Paulo. Este é seu terceiro livro. Pelo primeiro, Coluna prestes – o avesso da lenda (1994, Artes e Ofícios), no qual refez a marcha do exército rebelde pelo país entrevistando uma centena de testemunhas, recebeu o Prêmio Açorianos como autora-revelação. A vida que ninguém vê (2006, Arquipélago Editorial), uma coletânea de histórias reais sobre a extraordinária vida das pessoas comuns, foi reconhecido com o Prêmio Jabuti 2007, na categoria melhor livro de reportagem. Seu documentário de estréia, Uma história severina (2005), do qual é co-diretora e co-roteirista, foi contemplado com mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Nele, acompanha a trajetória de uma nordestina que teve o destino alterado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
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Jornalista