‘O juiz comportou-se de forma insolente e insólita, não tem isenção nem equilíbrio, não pode ser tolerado, famigerado, via oblíqua para desrespeitar uma decisão do STF, autoritário, insubordinado, bandidos, ilícito, desrespeito ao judiciário e vai por aí em um festival de grosserias.’
Estas foram as palavras mais pronunciadas nas seis horas que durou a última sessão do Supremo Tribunal Federal para julgar os polêmicos habeas corpus dados liminarmente pelo seu presidente Gilmar Mendes a Daniel Dantas, livrando-o das sentenças de prisão provisória e preventiva decretadas em irretocáveis atos jurídicos pelo juiz federal Fausto De Sanctis.
Por incrível que pareça, os doutos magistrados ‘esqueceram’ de desenvolver uma argumentação objetiva e baseada nos autos processuais, partindo para um discurso vago em defesa de princípios de liberdade e de solidariedade irrestrita ao seu presidente G. Mendes. O nível dos debates foi tão medíocre que as únicas ponderações objetivas contra falhas processuais foram da defesa, com o argumento de que os acusados não poderiam ter formado uma quadrilha, pois eram três, e não quatro (sic), e do relator, que achou uma falha fundamental ser chamado, em ofício, de Eros Grau de Mello, misturando o seu nome com o de outro membro do STF, concluindo de forma solene e grave que ‘o desvio, talvez irônico, consubstancia desrespeito a todos nós’.
Sem questionamento
Já quase no final, o ministro Cezar Peluso deu o que seria o tiro de misericórdia, acusando o juiz De Sanctis de burlar a lei e pediu ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que investigasse os juízes de primeira instância que assinaram manifesto contra o presidente da Suprema Corte. Entretanto, tentou melhorar o deplorável nível jurídico da sessão invocando a figura da fraude legis. Mas a credibilidade não era mais recomposta e aceita pela sociedade, pois citações e frases em latim são encontradas nestas compilações de brocardos jurídicos que são vendidas em qualquer banca de jornal. Por outro lado, a substituição de uma argumentação cristalina por meras menções de nomes de leis e parágrafos de códigos penais, data vênia, é uma prática conhecida até mesmo entre bandidos.
No final, quem foi julgado e condenado sem direito a defesa foi um juiz honrado (De Sanctis), que foi procurador do estado de São Paulo, atuou no Tribunal do Júri, foi juiz de Direito e desde 1991 é o juiz federal mais antigo e será o próximo desembargador federal do Tribunal Federal de São Paulo por antiguidade. É doutor em Direito Penal pela USP, professor de várias faculdades e tem sido homenageado por várias entidades internacionais.
Mas, o mais grave de tudo foi o comportamento da grande imprensa, que apenas noticiou, mesmo assim em páginas secundárias, o anômalo julgamento, sem qualquer crítica ou comentário (consultei O Globo, Folha de S.Paulo e Veja, bem como diversas versões online de outros jornais). Não houve também questionamento algum ou análise da participação de Gilmar Mendes neste julgamento, pois para muitos deveria estar impedido, devido às suas repetidas incursões na imprensa, dando declarações fora dos autos processuais, em flagrante choque com a Lei Orgânica da Magistratura e com a Constituição Federal. Não houve também questionamento algum por suas constantes declarações agressivas e evasivas como, por exemplo, no recente episódio da CartaCapital, noticiado pela Agência Brasil [ver ‘Conspurcação informativa ou legal‘,].
Seria a internet a solução?
O mais grave foi uma espécie de defesa de Gilmar Mendes no início desta sessão, quando ‘reclamou de blogs’ que tentam desmoralizar o STF.
Até aqui, as críticas da sociedade ao judiciário eram centradas, de uma maneira até injusta, em Gilmar Mendes, que no fundo bancava um boi de piranha – expressão bem conhecida em Mato Grosso. Mas destes dias em diante houve uma espécie de curto circuito entre aqueles que, para muitos, supostamente constituíam um baixo clero e aqueles que supostamente se consideravam a intelligentsia. Como resultado da fusão final, ninguém será tolerado pela sociedade que expressa a sua liberdade indignatória em blogs, diante da omissão da chamada grande imprensa.
Quando certos luminares tomarem conhecimento de suas imagens perante a sociedade, pesquisando informações sobre seus nomes em programas de busca, certamente não faltarão fórmulas jurídicas tiradas da cartola – agora sim, em uma verdadeira fraude legis aos princípios constitucionais da livre expressão – para a censurar a internet, que não tem sido tão bem comportada como a grande imprensa.
A ironia de tudo é que a Justiça Federal foi criada pela ditadura para ser uma fraude judiciária e hoje, quatro décadas depois, tentam recompor o que um regime de exceção não conseguiu. Mas se este poder mobilizador da internet mostrou ser capaz de influenciar até uma eleição presidencial, quem sabe não é a solução para tornar a nossa sociedade mais digna?
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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ