Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O alvo do tiro

O Diário do Pará colocou em letra de forma no domingo (2/11) o que era até então apenas boataria: a governadora Ana Júlia Carepa estaria dando apoio ao novo jornal diário da praça, o Público. Contando o milagre sem identificar o santo, registrou a coluna ‘Repórter Diário’:

‘É cada vez mais pública (e notória) a boa vontade com que o governo estadual trata um determinado jornal da cidade. Até bobinas de papel da Imprensa Oficial do Estado foram cedidas, a título de generosa colaboração’.

O próprio Diário já se beneficiou dessa – digamos assim – permuta, assim como todos os grandes jornais da terra, da Folha do Norte a O Liberal (na época, órgão oficial do PSD). Nem sempre foi possível demonstrar que as bobinas cedidas foram devolvidas – ou pagas. É provável que não, ou quase certo que a gentileza acabou se tornando doação, por favorecimento explícito ou em troca de boa vontade editorial do jornal para com o governo.

Até o Diário afirmar que papel da Imprensa Oficial foi cedido, a especulação se fundava nos anúncios que o Estado tem veiculado no Público. Os demais jornais também têm sido generosamente obsequiados pelo governo Ana Júlia. A questão está em que a nova publicação passou a ter direito à mesma mídia destinada aos mais antigos, já estabelecidos no mercado. A decisão de equipará-lo a veículos de retorno comercial e de prestígio muito maior não é ilegal exatamente nem imoral: indicaria o desejo do governo de estimular o aparecimento de um jornal independente dos dois grupos que dividem entre si o setor, o dos Maiorana e o dos Barbalho. Ao assim proceder, age politicamente, expondo-se à redação dos grandes jornais. O primeiro a cutucar foi a folha dos Barbalho.

Baliza para o disparo

O Público está correspondendo a essa expectativa sobre uma ‘terceira via’? Ao completar seu primeiro mês de circulação, a resposta é negativa. O público mal tomou conhecimento da sua existência. A circulação é deficiente e o conteúdo fraco demais. Em 30 dias, o jornal não deu uma matéria de destaque, que pudesse causar impacto, que fosse um ‘furo’. É morno, quase frio. A cobertura local é mais deficiente do que a dos supostos rivais. O Público se ressente de repórteres de linha de frente, presentes aos fatos. Não tem uma coluna atraente, bem informada. A cobertura da área cultural consegue ser pior do que a do Diário. E o jornal mudou de diretor de redação em menos de duas semanas.

Público venceu o vácuo inercial que desestimula o lançamento de uma publicação diária, pelo volume de dinheiro exigido na partida. A tarefa também é desgastante em função do fluxo permanente de capital para o custeio. Parece que houve atenção para o primeiro momento, mas não para o segundo. Até agora o jornal não deu qualquer sinal de que poderá se estabelecer num mercado tão selvagem, no qual um novo competidor dificilmente se consolidará sem derrubar quem já se acha estabelecido.

A nota do Diário do Pará foi o primeiro sinal da existência do novo jornal. A coluna teve que abrigar, logo em seguida, desmentido do governo, que negou qualquer tipo de favorecimento.

Resta saber se a reação do Diário foi em função do Público ou ele serviu mais para servir de baliza para o disparo verbal, com um destino certo: a governadora Ana Júlia Carepa.

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A sangria dos jornais continua desatada

Paulo Vieira

Apenas algumas pessoas físicas reagiram até agora à campanha contra o sensacionalismo do noticiário de polícia dos grandes jornais diários. Nenhum representante de instituição se manifestou. Devem achar que não têm nada a ver com a questão. Também nenhum jornalista, pessoalmente ou no exercício de representação da categoria. As empresas jornalísticas não mudaram o modo de proceder. Há uma razão forte para esse comportamento: a concorrência entre os dois grupos. O Diário do Pará conquistou uma fatia do mercado de anúncios classificados, antes engolido quase totalmente por O Liberal. Quem lê os pequenos anúncios do Diário vai direto às páginas de crimes – e vice-versa. Como sentiu a facada, O Liberal – e também o Amazônia Jornal – reage tentando reconquistar ou conquistar o leitor – perdido ou ainda não encontrado. Se estão abusando da exploração comercial do sangue dos outros, não interessa: precisam dessa transfusão, devidamente ‘cifronizada’.As páginas de polícia são o espaço que cabe ao povão nos grandes jornais. Ele que as leia como se estivesse diante das colunas sociais, o espaço dos bacanas.

Um cidadão reagiu: o poeta Paulo Vieira, que mandou o texto reproduzido a seguir, debaixo do título ‘Sanguinolência News’. (L.F.P.)

Num jornal da cidade. Foto de primeira folha: Um cara morto, nu, ensangüentado, amarrado a um poste da iluminação pública, com o verbo duro escrito sobre a cabeça mutilada `ESTRUPADOR´. Olhei bem pra cara do cara na manchete, e sua fotinha, de cabelos penteados, na carteira de identidade, com os dentes ainda inteiros, reproduzida a um canto do jornal. Mas não foi sequer um espanta sono para o dia do belenense.

‘O mané foi linchado e esfolado’, me disse o porteiro do prédio. E de repente notei que tem muito repórter policial por aí. Uns quantos. São anônimos e sabem sempre o que renderia uma boa primeira página. A imprensa os desconhece, mas eles conhecem a imprensa, compram o jornal de manhã, dormem sonhando com terçados, tripas espalhadas na piçarra, mulheres com os peitos arrancados, ratos roendo pedaços de cérebro horas depois de um acidente.

O leitor por estas bandas é um repórter profissional e perverso. Planeja tudo o que vai encontrar pela manhã na banca do seu João repórter jornaleiro. Confirma cada litro de sangue espalhado pela madrugada fértil, com um cafezinho no bico. As senhoras repórteres se distraem de passagem. Os meninos repórteres indo para a escola estancam em frente à banca, e um aponta a foto dizendo ao irmão ‘olha aqui, se você ficar me enchendo na sala de aula, vou te deixar igual a esse aqui’, e ambos caem na gargalhada e a mãe repórter ri junto. O motorista repórter de ônibus dá uma paradinha na banca: ‘ô seu João, muita carne hoje?’ e seu João repórter jornaleiro balança a cabeça assinalando um sinistro sim.

Estou cercado. São todos repórteres e toda notícia é fria. Quêde trauma e nervosismo? Quêde espanto de manhã? A notícia é recebida pelos repórteres leitores com tédio. Todos teriam uma versão ainda mais cabeluda para contar. O flanelinha repórter propõe uma reconstituição mais sangrenta, a atendente repórter da farmácia pensa em tortura com tarja preta, o açougueiro repórter (esse duas vezes açougueiro, ou duas vezes repórter?) planeja um esquartejamento detalhado, no maior número de pedaços possível, coisa de guinness [book]. Vejo maus repórteres e repórteres maus por todos os lados. Por onde ando me sinto assaltante e assaltado, assassino e assassinado. E mais tarde a noite me cobrirá com seus coágulos de sangue enormes.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém, PA