Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cobertura de TV questionada na Câmara

O sensacionalismo não é uma prática nova no jornalismo brasileiro. No caso da televisão, o impacto das imagens faz com que tal atitude seja potencializada em nome de ganhos de pontos de audiência às custas da espetacularização da miséria e da desgraça humana. A dramatização constitui uma narrativa emocional em cima de um determinado episódio de modo a manter a atenção das pessoas ligada à tela. Mesmo que os fatos reais ocorram em velocidade aquém do necessário para manter uma transmissão incessante, ‘esquenta-se’ o tema com repercussões e atualizações sem novidades.


O mais recente caso do uso deste recurso foi o acompanhamento das redes de TV do seqüestro da jovem Eloá Pimentel, em Santo André, pelo seu ex-namorado, e que terminou com o assassinato da menina. Em audiência realizada na Câmara dos Deputados na terça-feira (11/11) para discutir a atuação das emissoras comerciais neste episódio, pesquisadores e deputados criticaram duramente a atuação desses grupos não só nas notícias produzidas como na interferência em seu desfecho. Para parte dos presentes, diferente de outros casos de seqüestro, neste os veículos estabeleceram uma relação direta com o autor, Lindemberg Alves Fernandes, com recorrentes entrevistas e conversas ao vivo, criando uma espécie de ‘mediação paralela’.


‘A cobertura teve participação indireta neste assassinato’, sentenciou o deputado Ivan Valente (PSOL-SP). Uma das formas dessa incidência foi a intensa transmissão das imagens ao vivo, o que teria dado à Lindemberg um status de celebridade. ‘Tivemos uma grande cena de big brother, onde houve vigilância constante em tempo real’, acrescentou a psicóloga Maria Luiza Oliveira, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).


Para o deputado Luis Bassuma (PT-BA), a veiculação contínua do caso em tempo real teria feito com que Lindemberg dilatasse o seqüestro. ‘Ao se ver o tempo todo assediado, [o seqüestrador] provocou um prolongamento daquilo que me pareceu uma cena de prazer mórbido’, disse o parlamentar.


Apologia à violência


Na avaliação do pesquisador sênior do Núcleo de Mídia e Política da Universidade de Brasília Venício Lima, a cobertura do ‘caso Eloá’ está inserida dentro de um contexto mais amplo de apologia à violência e promoção da cultura do sucesso. ‘A violência passa a ser naturalizada e tratada como algo banal. Parece ter criminoso que se inspira na mídia, que se fortalece na certeza que se tornará em celebridade disputado por câmeras, sairá do anonimato impotente e se tornará estrela’, comentou Lima. ‘Já a cultura de sucesso faz com que pessoas não estejam preparadas para receber um `não´, como, no caso, ser rejeitado pela namorada.’ Esses dois aspectos da produção de informação e cultura nos meios de comunicação teriam, segundo o pesquisador, atuado diretamente sobre os envolvidos no episódio.


O promotor de Justiça de São Paulo Augusto Rossini, que participou da última etapa da negociação com Lindemberg Alves, também esteve presente à audiência. Rossini afirmou em uma entrevista à Rede Record que as redes influenciaram de fato no desfecho do seqüestro. Para além dos aspectos levantados por outros presentes, o promotor citou interferências operacionais – como a dificuldade da polícia falar com o seqüestrador por conta das linhas de telefone em seu poder estarem ocupadas pelas conversas com a imprensa.


Para Ivan Valente, as redes de televisão infringiram o Código de Ética dos Jornalistas, especialmente em seu Artigo 11º, que proíbe o jornalista de divulgar informações ‘de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes’. O deputado questionou diretamente os dois representantes das emissoras presentes à audiência, da Record e da Globo, como viam sua atuação no episódio e se haviam feito alguma autocrítica sobre ela.


Auto-complacência


Os dirigentes das redes Globo e Record esquivaram-se dos questionamentos e afirmaram que suas emissoras não foram sensacionalistas nem trabalharam fora dos preceitos éticos. ‘Nós não tivemos nenhum benefício de audiência e não perseguiríamos isso em nenhuma hipótese. Como normas gerais, temos no nosso jornalismo para eventos onde há sinais de banditismo noticiar tudo sempre, mas mantendo e tendo em vista a integridade das vítimas potenciais e também a investigação da polícia’, afirmou Evandro Guimarães, vice-presidente institucional das Organizações Globo.


Incomodado com a retórica de Guimarães, Ivan Valente perguntou diretamente o que o executivo achava das entrevistas com o Lindemberg durante o seqüestro, prática apontada como a mais efetivamente influente no curso do episódio. ‘Não me cabe este julgamento de mérito. O que posso lhe garantir é que estamos avaliando tudo o que foi feito’, respondeu o representante da Rede Globo.


Márcio Novaes, da Record, afirmou que sua emissora também pautou-se pelos princípios da ética e que a avaliação interna é uma prática cotidiana. Para ele, há um desafio em encontrar pontos de equilíbrio entre o que é correto e inadequado, especialmente pelo fato de ‘não terem inventado até hoje uma faculdade de bom senso’. Um dos limites que garantiria este bom senso seria a legislação, que na opinião de Novaes foi respeitada pelas redes na cobertura do caso. O representante da Record também apelou para a recorrente justificativa da importância dos grupos de comunicação no país ao utilizarem sua liberdade de expressão.


Controle social e regulamentação


O pesquisador Venício Lima rebateu, afirmando que o debate não tratava de liberdade de expressão, mas de ‘controle social sobre situações específicas de cobertura’. Sendo impossível confiar unicamente às emissoras o julgamento sobre o correto, defendeu a necessidade de estabelecer limites e mecanismos de controle da sociedade sobre o conteúdo veiculado. ‘O mercado não pode ser o único critério de regulação espontânea do conteúdo da mídia de massa. A exemplo de outros países, é inadiável que se cumpra a Constituição Federal e se construam formas de controle social que impeçam a cobertura que a mídia fez no seqüestro de Santo André.’


O promotor Augusto Rossini defendeu a regulamentação do sigilo em casos de investigação ou atuação policial como uma forma de evitar a interferência prejudicial da cobertura neste tipo de episódio, em especial a influência que os relatos possuem sobre os agentes do sistema de justiça e segurança (como juízes e jurados) para o julgamento dos casos. ‘Há de se fazer regulamentação. Não dá para pedir ao juiz isenção. Há influência sim, e isso tem de ser fortemente tratado. Decretando-se o sigilo, ninguém pode quebrá-lo’, propôs.

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Do Observatório do Direito à Comunicação