Sem nenhuma data redonda por perto para estimular tamanha coincidência, acabam de ser publicados dois livros sobre um mesmo e fascinante assunto: o nascimento, a glória e a derrocada completa do grupo Bloch, o último grande editor de revistas do Rio de Janeiro, criador da Manchete, entre outros títulos, e de uma rede de tevê com o mesmo nome.
Em quase meio século de atividade na imprensa, do número 1 de Manchete, em 1952, à falência em 2000, a editora Bloch construiu uma imagem forte, polêmica, muito atrelada à imagem do homem que ergueu – e ajudou a destruir – o negócio. É natural, por isso, que Adolpho Bloch seja o personagem principal tanto de Aconteceu na Manchete – As histórias que ninguém contou (Desiderata, 448 pgs, R$ 60), quanto de Os Irmãos Karamabloch – Ascensão e queda de um império familiar (Companhia das Letras, 342 pgs, R$ 48).
O primeiro livro reúne textos com as lembranças de quase três dezenas de jornalistas, fotógrafos, diagramadores, amigos e colaboradores, capitaneados por Jose Esmeraldo Gonçalves. O segundo é igualmente uma narrativa de cunho memorialístico, assinada por Arnaldo Bloch, neto de um irmão de Adolpho, também chamado Arnaldo.
Enquanto Aconteceu na Manchete restringe-se ao cotidiano daqueles profissionais no famoso prédio da Rua do Russel, projetado por Oscar Niemeyer, Os Irmãos Karamabloch recorre à memória de tios, tias, primos e amigos para descrever uma saga familiar, iniciada no final do século 19, na Ucrânia, pelo pai de Adolpho, o bem-sucedido gráfico Joseph.
Somados os dois livros, são 790 páginas dedicadas a evocar a memória de dezenas de pessoas sobre um mundo que se revela terrível. De um lado, uma família gerida por um pai autoritário, três filhos homens de maus hábitos (Boris, Arnaldo e Adolpho), cinco irmãs que pouco fazem, uma série de sobrinhos ‘condenados’ a disputar a atenção dos tios, mais um monte de esposas, amantes e cachorros.
De outro lado, uma empresa familiar típica, refratária a qualquer método de gestão moderna, dependente dos humores do chefe – primeiro Joseph, depois Boris e, por fim, Adolpho, que é odiado por seus acessos de fúria, cenas de humilhação e atos de vingança, e ao mesmo tempo amado por seus gestos de camaradagem, bom humor e cumplicidade.
Rumo ao Brasil
Arnaldo Bloch reconstitui os passos desta família de origem judaica desde o final do século 19, numa pequena aldeia ucraniana, segue-os na mudança para a cidade grande, Jitomir, onde Joseph prospera como gráfico, até a viagem para o Rio de Janeiro, em 1922, em fuga da perseguição que se seguiu à revolução de 1917.
O navio traz Joseph e mais 16 pessoas – sua mãe, oito filhos, o irmão Jorge (com a mulher e três filhos), e a irmã Fruma (com um sobrinho). Vão se instalar, quase todos, no início da década de 30, em uma casa na Rua 5 de Julho, em Copacabana. A certa altura, na década de 40, mais de 30 familiares moram nesta casa.
A parte mais impressionante do livro de Arnaldo Bloch é a descrição da fase de formação dos três varões da família Bloch. Os Irmãos Karamabloch, apelido cunhado pelo perspicaz Otto Lara Resende, cresceram às turras, competindo ferozmente, quando não enganando e roubando uns aos outros, em negócios escusos e mal explicados. Arnaldo e Adolpho, viciados em jogo, enterraram parte da fortuna da família em cassinos.
Mais de uma vez, conta o livro, levaram uma criança (Leonardo, filho de Arnaldo) para a jogatina, para deixá-la como garantia caso precisassem voltar para casa em busca de mais dinheiro.
A sucessão na família se resolverá em favor de Adolpho, o mais jovem dos três. Será dele a iniciativa de criar uma revista, batizada Manchete, em 1952, para ocupar parte da ociosidade do parque gráfico do grupo.
Revistas de dar inveja
Manchete vai dar novo gás a um segmento antes dominado por Cruzeiro e será, até a falência, a principal revista do grupo. Adolpho atrai para o empreendimento vários nomes importantes, seja como editores (Helio Fernandes, Otto Lara Resende, Justino Martins, Carlos Heitor Cony), seja como colunistas e colaboradores (Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Joel Silveira, Otto Maria Carpeaux, Antonio Callado).
Ao longo das décadas seguintes, diversos novos títulos nascerão: Desfile, Fatos&Fotos, EleEla, Sétimo Céu, Carinho, Pais&Filhos, Geográfica Universal, Amiga etc. Era um portfólio de fazer inveja, mas gerido como um armazém de secos e molhados, a julgar pelos depoimentos que dão corpo a Aconteceu na Manchete.
Vários relatos confirmam a lenda que Adolpho, quando não gostava do resultado de algum ensaio fotográfico, mordia os negativos do filme, antes de jogar fora o material. Mais de um texto afirma que o dono da editora respondia a pedidos de aumento com o argumento que a vista maravilhosa da baía de Guanabara, a partir do prédio da Bloch, era uma compensação ao baixo salário. Também se lê nos dois livros a história que Adolpho foi discutir com grevistas, na porta do prédio, e mostrou os bolsos vazios, a sugerir que não tinha dinheiro para dar reajuste.
O apoio das publicações Bloch ao regime militar é relatado de passagem nos dois livros, bem como a amizade de Adolpho com Juscelino Kubitscheck e a estripulia feita para que o velório do ex-presidente ocorresse no saguão do prédio da Manchete. Também fala-se, em alguns trechos, da relação promíscua entre publicidade e jornalismo com as quais as revistas do grupo, Manchete à frente, eram obrigadas a conviver.
Alguns textos, como as memórias de Roberto Muggiati e Marília Campos, por exemplo, acrescentam ao anedotário um precioso olhar crítico ou cômico, e não apenas autocentrado, ao relato. Outros limitam-se a descrever as trajetórias pessoais dos próprios autores, sem ajudar muito a compreender do que era feita a Bloch Editores. E, por fim, há vários depoimentos de pessoas que conviveram muito de perto com Adolpho Bloch, como Cony, Arnaldo Niskier, Zevi Ghivelder, que parecem ter guardado as melhores lembranças para outros momentos.
A vilã da história
A criação da TV Manchete é um elemento central na história do grupo – e aparece como vilã da história. A tevê, de fato, é responsável pela multiplicação da dívida da companhia, mas faltam elementos a ambos os livros para poder julgar, de forma precisa, a relação entre uma coisa e outra. Fato é que o grupo foi à falência em 2000, cinco anos depois da morte de Adolpho, deixando centenas de funcionários desamparados.
Ambos os livros enriquecem o anedotário a respeito dos Bloch, mas deixam para um próximo estudo a tarefa de entender os meandros que Adolpho e seus irmãos percorreram, as articulações políticas que empreenderam, a engenharia econômica e financeira que montaram, enfim, o lugar que ocuparam no campo midiático em diferentes momentos ao longo de seis décadas.
Mais que a saga de um império familiar, de resto interessantíssima, a ascensão e queda do grupo Bloch é um notável capítulo da história da imprensa carioca, cujo processo de modernização, vivido a partir da década de 50, teve efeito irradiador sobre a imprensa do resto do País, e cuja decadência, ainda a ser estudada em mais detalhes, pode ajudar a entender a crise de todo um modelo de negócios.
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Repórter especial do iG