O professor Adelto Gonçalves, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), pediu-me algumas linhas sobre o ilustre Machado de Assis (1839-1908). É gratificante, porque através de Assis faço um rewind às memórias do ‘antigamente’.
De facto, conheço algo de Machado de Assis… sim, senhor… de ouvir em casa desde infante pela geração de meu pai João (1920-1997) e de meu tio, o poeta José (1922-2003). Tinham alguns livros dele: Quincas Borba; Esaú e Jacó (com a problemática da escravatura). Mas Iaiá Garcia, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) eram os títulos favoritos de meu pai, João sênior, um especialista em língua e literatura portuguesas e admirador da literatura brasileira. Mesmo com as restrições de certa literatura do Brasil lá chegavam à colônia de Moçambique autores brasileiros e traduções. Algumas vezes, certos livros do Brasil eram retirados das livrarias. Os autores brasileiros não eram vistos com bons olhos pela polícia política de Salazar. Excetuando a revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, 1892-1968 (amigo do ditador português, Oliveira Salazar, 1889-1970).
A questão nunca referenciada
Outro aspecto, de identificação do mestiço de Moçambique com o Brasil e os EUA, era o fator mimético: Machado de Assis, filho de um mestiço pintor de casas (Francisco José de Assis, descendente de escravos alforriados do lado materno, suponho) e de uma lavadeira açoriana-portuguesa (Maria Leopoldina Machado), ambos humildes. Uma mestiçagem luso-africana no Brasil, só que o ‘macho dominante’ era o elo mais fraco do ponto de vista social: o mestiço.
Nas colônias africanas, mesmo em casos de relacionamentos do homem europeu (dominante) e mulher africana (submetida) não eram aprovados socialmente. Daí a razão de raros casamentos mistos, oficiais. Impensável homem negro-mestiço com mulher branca. Eis a razão, devido à extrapolação, da rejeição em Moçambique, a um Machado de Assis, por temerem contaminação quer em ideais liberais quer no olhar marginalizado ‘do outro’ para com as mulheres soit disant brancas – tanto as vindas de Portugal, quer as filhas nascidas em África (pior). Este preconceito iria se refletir inclusive na literatura e na poesia em que (uns), mesmo utilizando a língua portuguesa, se demarcariam identificando com os valores negro-africanos (banto) e outros com os portugueses, ainda que reivindicando um espaço cultural sui generis dentro de Moçambique. Ora, na literatura (início século 20), desde os pioneiros irmãos Albasines (João e José) a um Rui de Noronha (outro mestiço) passando por um José Craveirinha irrompendo pela negritude até às pioneiras do gender, Noémia de Sousa, na poesia, e Bertina Lopes, na pintura, há uma tônica comum em todos; são mestiços e seus modelos intelectuais eram os mestiços do Brasil e mais os afros dos EUA (pela rebeldia). Em ambos os casos, descendentes de escravos: Machado de Assis, William Wells Brown (1814-1884), Frederick Douglass (1845-1895), citando os mais antigos, os dois últimos mais empenhados na causa anti-escravagista, além de escritores e editores.
Literatura e autores vistos com desconfiança
A Pide, polícia política portuguesa de então, e, grosso modo, os coloniais, frisavam que não iriam admitir em África que ‘mulatos’ imitassem os ‘mulatos’ do Brasil desde o Tiradentes (Joaquim J. S. Xavier, 1746-1792) a Jorge Amado.
Ora estes aspectos genealógicos incomodavam os portugueses coloniais em Moçambique, por ‘serem maus exemplos’. A geração de meus pais tinha dois modelos de negros-mestiços como referência: os brasileiros e os norte-americanos. Isto porque a geração deles era uma geração silenciada na sua dignidade de valores da fusão afro-européia. O poeta José Craveirinha ‘cantou’: ‘música de mulato asa amarrada’, ele que era filho de uma negra moçambicana e de um branco português, sabia por que dizia isso.
O termo pejorativo mulato, no século 15, na Península Ibérica, teria surgido do tráfico de escravos para classificar a besta de carga ‘parda’ do cruzamento do cavalo superior (o branco) com a burra inferior (a negra). Resultando num mulato, macho de mula. Impensável ao contrário: homem negro com mulher branca. Os dicionários de língua portuguesa, editados em Portugal, somente depois de 1974 colocavam timidamente essa última possibilidade. Dentro deste critério colonial, Machado de Assis, eventualmente, seria catalogado de ‘cabrito’ por ser filho de ‘mulato’ com ‘branca’, por tal ‘menos besta de carga’ e mais próximo de branco.
A intelectualidade soit disant branca e portuguesa de Moçambique rejeitava figuras como Machado de Assis pelo seu nível intelectual e postura de dignidade de um mestiço (ainda que mais claro) com a ‘ousadia’ de casar com uma branca portuguesa de família conhecida do Porto (Carolina Xavier de Novais). Figuras mestiças como Machado de Assis eram, para as autoridades coloniais em África, um mau exemplo para o ‘negro assimilado’ considerado não indígena por ter a escolaridade primária e em particular para o mestiço em Moçambique (nomeadamente na capital colonial, cidade de Lourenço Marques, edificada no século 19 na terra dos banto do clã dos Mpfumos. Situação de discriminação era pior na cidade da Beira).
Sempre existiu uma profunda clivagem entre o suburbano negro-mestiço e a cidade dita branca dos reinóis vindos da metrópole colonial e os filhos desses colonos portugueses de Moçambique. Era notória a adesão a influências, quer da Rodésia quer da África do Sul do apartheid (1950 a 1970). Sobretudo a partir do pós-2ª Guerra Mundial, quando os caminhos da identidade cultural do negro-mestiço em Moçambique se definiriam mais acentuadamente através do desporto e da literatura, nas décadas de 1940 a 1960. No período da luta pela independência, a partir de 1962 a 1974, seria totalmente definido o assumir de uma nova nacionalidade na forja.
Os intelectuais brancos portugueses de Moçambique (crescidos ou nascidos) nunca se identificaram com a cultura negra-africana, ou banto, se preferirem – um universo de 99% do total da população. Para esse núcleo europeu ou deles descendentes, válido era enaltecer os valores europeus numa visão de um mundo africano sem africanismos. Evidentemente que em tudo, há sempre raras exceções.
Nota: Em Moçambique no início da independência, prevaleceu o conceito norte-americano do one drop rule (regra de uma gota negra no sangue) do século 19… em que deixava de haver mestiços para todos serem blacks por mais claros que fossem. Aliás, está a entrar no Brasil atualmente essa corrente. No entanto, em Moçambique, atualmente, está a haver um retrocesso conceptual em que a juventude soit disant mestiça reivindica o epíteto de mestiço – mulato (independente do tipo de mestiçagem). Por outro lado, temos o exemplo dos mestiços sul-africanos (sobretudo de Cape Town) que se intitulam de browns e rejeitam ser blacks… Enfim, coisas de situações anteriores coloniais…
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Nasceu na ilha de Moçambique (África oriental) em 1947, é escritor e pintor, publicou quatro livros e tem outros quatro aguardando editor; clique aqui para o seu sítio