I
Um dos melhores cadernos dedicados ao centenário da morte de Machado de Assis (1839-1908), o leitor não vai encontrar na grande imprensa, mas na imprensa universitária. É o caderno ‘Para sempre, Machado’, preparado pelos alunos do 8º ciclo de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos-SP, para a edição de setembro, nº 102, do jornal-laboratório Primeira Impressão. Ao contrário dos jornalões, que se limitaram a convidar acadêmicos para escrever longos artigos sobre a obra do maior romancista da literatura brasileira, o Primeira Impressão colocou seus alunos-repórteres para entrevistar alguns dos maiores especialistas na obra do bruxo do Cosme Velho.
Entre os entrevistados, estão os professores João Adolfo Hansen, Massaud Moisés e Terezinha Tagé, todos da Universidade de São Paulo (USP), o historiador Sidney Chalhoub e o professor Paulo Franchetti, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o escritor Ronaldo Cagiano, os poetas Anderson Braga Horta, Ademir Demarchi e Flávio Viegas Amoreira, o maestro Gilberto Mendes, o jornalista Daniel Piza, autor de Machado de Assis, um gênio brasileiro (São Paulo, Imprensa Oficial, 2006), Luiz Antônio de Aguiar, autor de Almanaque Machado de Assis (Rio de Janeiro, Record, 2008), o professor Mauro Rosso, autor de Contos de Machado de Assis: relicários e raisonné (Editora PUC-Rio/Editora Loyola, 2008) e o professor José Leonardo do Nascimento, autor de O Primo Basílio na imprensa brasileira (São Paulo, Editora Unesp, 2008). Entre os que residem no exterior estão o pintor e escritor moçambicano João Craveirinha, radicado em Lisboa, e Kenneth David Jackson, professor de Português da Yale University, EUA.
II
Para João Adolfo Hansen, a literatura de Machado de Assis é marcada pela ironia, diferindo do sentido tradicional da ironia socrática. ‘No caso de Machado, a ironia é aplicada para dissolver tudo, pois não há nenhuma verdade que ele defenda. Nesse sentido, os textos dele produzem indeterminações do sentido das coisas, pois dissolvem as verdades morais, religiosas, filosóficas, científicas, políticas etc.’, diz o professor.
O velho debate sobre a possível traição de Capitu a Bentinho em Dom Casmurro é reavivado nessa edição especial do Primeira Impressão. O professor Massaud Moisés, por exemplo, defende que houve traição, lembrando que a prova está na derradeira cena do velório de Escobar. Mas ressalva que a obra é construída sob o ponto de vista do esposo enciumado.
Já o professor Sidney Chalhoub, autor de Machado de Assis, historiador (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), observa que os textos do romancista eram profundos e representavam suas ideologias. ‘Mecanismos de violência dos senhores (de escravos) eram expostos, mas sem ser de maneira explícita’, diz.
Enquanto os professores Paulo Franchetti e José Leonardo do Nascimento recuperam as críticas feitas por Machado de Assis ao naturalismo de Eça de Queirós (1845-1900), o professor Kenneth David Jackson lamenta que o autor brasileiro ainda seja pouco estudado nas universidades norte-americanas, fora do âmbito dos cursos de especialização em Literatura Brasileira. ‘Machado é pouco estudado, sim, no sentido de um debate sobre a interpretação da sua obra, mas a bibliografia sobre ele é grande e é o único escritor sul-americano estudado em Yale’, garante.
Também na Rússia, o escritor começa a ficar conhecido, depois que a Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, publicou, em 2006 e 2007, dois livros de seus contos em edição bilíngüe russo-português, com prefácios deste articulista. ‘Os livros têm encontrado leitores entre aqueles que estão a aprender português e são muito importantes para autodidatas’, diz o professor Vadim Kopyl, diretor do Centro Lusófono Camões, da Universidade Hertzen, que editou e supervisou os contos machadianos traduzidos por especialistas russos.
Um dos textos mais interessantes desta edição especial do Primeira Impressão é uma entrevista com o moçambicano João Craveirinha, que ressalta um aspecto até hoje pouco conhecido no Brasil: a censura que as obras de Machado de Assis sofreram na África portuguesa ao tempo do salazarismo. ‘A elite branca de Moçambique rejeitava figuras como Machado de Assis pelo seu nível intelectual e postura de dignidade de um mestiço que teve a ousadia de casar com uma branca portuguesa de família conhecida do Porto, Carolina Xavier de Novais’, afirma Craveirinha, lembrando que tais aspectos genealógicos incomodavam os colonos portugueses por serem considerados maus exemplos para a sociedade local.
Craveirinha lembra que a geração de seu pai e de seu tio, o poeta José Craveirinha (1922-2003), Prêmio Camões de 1991, tinha dois modelos de negros-mestiços como referência: os brasileiros e os norte-americanos. ‘A geração deles era uma geração silenciada na sua dignidade de valores da fusão afro-européia’, diz, lembrando que certos livros do Brasil, inclusive os de Machado de Assis, eram retirados das livrarias pelo governo colonial.
O segundo caderno do Primeira Impressão, de 12 páginas, dedica também uma página ao centenário de Guimarães Rosa (1908-1967) e outra aos 70 anos de publicação do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892-1953).
III
A edição de setembro do Primeira Impressão traz ainda um caderno de 10 páginas dedicado aos 50 anos da Bossa Nova, com reportagens sobre o bar Garota de Ipanema, antigo Veloso, no Rio de Janeiro, onde ainda trabalha o garçom Arlindo Costa Faria, que serviu a Tom Jobim, Vinícius de Morais, João Gilberto e outros ícones do movimento; e entrevistas com o musicólogo Zuza Homem de Mello, a professora Maria Lúcia de Godoy, doutora em Música pela USP e especialista em Bossa Nova, o maestro Gilberto Mendes, Bebel Gilberto e cantores das gerações mais jovens que cultuam o estilo, além de retrospectivas sobre o movimento.
Quem se interessar por obter um exemplar dessa imperdível edição do Primeira Impressão pode escrever para: jornalpi@gmail.com
******
Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)