Encerradas as Olimpíadas da Grécia, começam a ser feitos os tradicionais balanços sobre a participação brasileira – tida como a melhor até hoje, apesar de algumas duras decepções – suas causas, conseqüências e lições que encerram. A nós, jornalistas, seria útil tentar analisar o que foi nossa cobertura dos Jogos, especialmente a feita pelo veículo que atinge o maior número de consumidores de informação: a televisão.
Vista com um mínimo de distanciamento, a cobertura da televisão – canais abertos e canais por assinatura, especializados ou não em esportes – percorreu em maior ou menos grau, com raríssimas exceções, cinco diferentes vertentes que consistiram em:
1.
torcer pelos brasileiros, em qualquer modalidade ou circunstância;2.
comemorar as poucas vitórias, e tentar a todo custo justificar as derrotas;3.
consolar, via transmissões ou mesmo pessoalmente, os atletas derrotados;4.
considerar ‘excelente’ a participação brasileira, ainda quando o atleta ou a equipe teve desempenho bisonho e ficou em último lugar, como ocorreu com o handebol masculino;5.
afirmar ao público que certamente em Pequim, em 2008, tudo vai melhorar.Será isso jornalismo? Terá sido a cobertura dos Jogos minimamente isenta, preocupada em apurar fatos e bastidores, ir atrás da informação exclusiva, ligar causa e efeito?
Não há dúvida de que as emissoras, em graus diferentes, fizeram um grande investimento na cobertura dos Jogos. Equipes numerosas foram levadas a Atenas. Houve um esforço hercúleo para, no caso das emissoras abertas, encaixar as competições na grade de programação. Técnicos e ex-atletas com excelente grau de conhecimento viram-se convocados a comentar eventos e dissecar seus meandros – dessa vez sem serem incomodados pelo corporativismo da exigência do diploma de jornalista para estar na mídia. Repórteres, produtores, editores, comentaristas e apresentadores trabalharam muito, muitas vezes no limite da resistência física. Não há dúvida, também, de que o público teve à sua disposição uma cobertura farta e variada. Ainda assim, a resposta às duas perguntas do parágrafo anterior é ‘não’.
Informação com entretenimento
A razão talvez seja que, em nenhuma outra área do jornalismo, aí incluído o show business, estão misturados em tão alto grau a informação e o entretenimento – uma das grandes pragas que ameaçam o jornalismo contemporâneo. A emoção, como sabemos, é a própria alma do esporte. Ela está na glória da vitória, na decepção da derrota, na superação dos limites, nas trapaças do imprevisto, nos dramas e êxtases que um megaevento como as Olimpíadas comportam. Ela constitui, igualmente, a matéria-prima por excelência do entretenimento – na música, no teatro, na dança e, sobretudo, no cinema e na TV.
Não é fácil ao jornalismo esportivo resistir a misturar duas coisas que compartilham de idêntico fio condutor. Adicione-se a este outros fatores que encerram na própria natureza sérios conflitos de interesse: nos esportes, as emissoras têm que lidar simultaneamente com o fato jornalístico a ser coberto e com o evento que precisaram ‘comprar’ e que, portanto, exige o máximo de audiência para que o retorno financeiro seja compensador. Pronto, está feita a cama para o infotainment, a palavra híbrida com que os americanos batizam essa mixórdia.
Na verdade, o fenômeno não é novo. Mas o fato é que a televisão, nessa área, cada vez mais intervém na realidade que cobre – não apenas influenciando in loco a atitude e o próprio desempenho dos atletas, mas editando as reportagens com elementos ficcionais. Por mais que a emoção do esporte seja suficiente para encantar a alma humana, a realidade que ocorre em estádios, ginásios e piscinas é pouco, não basta, não é suficiente para o grau de espetaculosidade que a TV anseia exibir.
Assim, lá vêm os cortes arbitrários de imagem, os trechos de partidas ou provas em videoclip, os atletas forçados a ‘representar’ alegria, tristeza, júbilo ou orgulho nacional diante das câmaras, as famílias de atletas tendo sua intimidade e até seus telefonemas ‘produzidos’ para filmagens, os trechos em câmara lenta ou acelerados, o fundo musical. Quem não se lembra da inevitável musiquinha que acompanhava as vitórias de Ayrton Senna na Fórmula-1 transmitida pela Globo, com o indefectível grito de ‘Brasiiilll’ produzido em estúdio com efeito de eco? (A Globo, como se sabe, continua usando o grito em quase toda disputa esportiva em que o Brasil é envolvido).
A TV quer até torcer por nós
Mas o veículo TV carrega em si uma natureza tão prepotente que, mesmo com todo esse tipo de manipulação no produto que despeja para o público, ela não fica satisfeita: precisa, também, torcer – não apenas com o torcedor, mas, muitas vezes, pelo torcedor. O público, de certa forma, vê ‘editado’ pelos veículos até esse seu direito incontestável e elementar. Não é suficiente, para a TV, portanto, ‘produzir’ a emoção que ela apresenta na telinha: é preciso, adicionalmente, tentar ‘produzir’ a que o telespectador sente em casa.
No caso dos Jogos, à carga de emoção intrínseca ao esporte, somada à que a TV produz, ainda se juntou uma velha conhecida – a patriotada nas transmissões. Ela poderia ser tolerável se tivesse se limitado às transmissões dos narradores propriamente dita, uma vez que há décadas, desde a era do rádio, incorporou-se aos usos e costumes nacionais. Mas, infelizmente, não parou por aí: invadiu o comportamento de grande número de comentaristas, adentrou o terreno dos especialistas e instalou-se, mesmo, naquele último terreno em que se esperava que a preocupação de informar, pura e simplesmente, se sobrepusesse minimamente às demais: a reportagem.
Os exemplos, entre os vários tipos de profissionais, foram inúmeros. Vários comentaristas torciam mais do que comentavam detalhes das provas. Entre os especialistas não-jornalistas, houve um, na SporTV, durante uma prova de hipismo, que se esqueceu do assinante e passou a se dirigir diretamente ao cavaleiro Rodrigo Pessoa, como se ele pudesse ouvir lá de Atenas: ‘Aí, Rodrigo. Agora acalme o cavalo. Não deixe que ele faça isso ou aquilo. Cuidado com esse obstáculo. Isso, continue assim…’. A ginasta Daiane dos Santos, terminada a prova que a deixou em 5º lugar, longe da medalha de ouro que a mídia apregoava como inevitável, viu-se acossada por ofertas de justificativas feitas por repórteres: o responsável pela colocação teria sido o joelho, a emoção, os juízes, o fato de ser a primeira entre oito ginastas a apresentar-se. Precisou ela própria, com candura e coragem, dizer que errou, e pronto – e que a nota recebida era justa.
Durante todo o tempo, presenciamos repórteres dizendo a atletas, antes de competições, que iriam torcer por eles, ou parabenizando-os, como tietes, depois delas. Foram abundantes as perguntas chochas, que permitem ao entrevistado ir para onde quiser e não esclarecem nada, do tipo ‘Como você se sentiu quando…?’ – de novo, a busca da emoção, e não da informação – em vez de perguntas factuais que poderiam iluminar detalhes importantes dos eventos, da atuação dos brasileiros, do comportamento dos adversários e dos juízes.
Matérias ‘engraçadinhas’
Com exceções honrosas, os repórteres também deitaram e rolaram na produção de matérias ‘bem humoradas’, ‘engraçadinhas’, cheias de trocadilhos entre texto e imagem, de alegorias aos deuses do Olimpo, de brincadeirinhas com atletas, turistas brasileiros e cidadãos de Atenas, cujo esmero em não parecerem ‘sérias’ incluíam o tom de voz. O ‘estilo Tino Marcos’, repórter global especialista nesse tipo de matéria – seja qual for o teor do que cobre, mesmo quando o assunto não comporta graça alguma – encontrou seguidores ferrenhos na própria Globo e invadiu os canais especializados. Inclusive a ESPN, normalmente elogiável pela excelência de suas coberturas e que, na média, realizou um bom trabalho na Grécia: em contraste com seus colegas, um de seus repórteres, extremamente ativo e diligente, conseguiu a proeza de imprimir esse viés a todas as suas reportagens sobre competições e atletas.
Ninguém, naturalmente, pode ter nada contra o humor. O problema desse tipo de matéria, no entanto, além de significar interpretação se sobrepondo à reportagem, é que, repetindo-se, ela mistura, nivela e descaracteriza na mesma massa amorfa o sucesso e o fracasso, o absurdo e o correto, o feito heróico e o desempenho bisonho. Será jornalismo?
Quanto aos apresentadores, com as elogiáveis exceções de praxe, como o sóbrio, bem informado e atento Milton Leite, da ESPN, foi aquilo que se sabe: não havia jogos nem disputas na tela, mas ‘nós’ e ‘eles’. Em nome da ‘emoção’, valeu quase tudo – no caso do apresentador de programas policiais e ex-locutor esportivo José Luiz Datena, até chegar a milímetros de ofender os adversários, durante suas narrativas gritalhonas pela Band.
Estreiteza de horizontes
Voltou à cena a quase intransponível dificuldade de pronunciar corretamente nomes em idiomas com os quais, presume-se, tais profissionais devam ter alguma familiaridade, como o francês, o inglês e até o espanhol (grandes profissionais vão à luta e conseguem descobrir como pronunciar em alemão, chinês ou grego). Brigou-se bastante com os adjetivos pátrios: um corredor das Ilhas Maurício – fértil arquipélago no Oceano Índico, a sudeste da costa da África – foi o tempo todo tratado como sendo da Mauritânia, tórrido país árabe no noroeste do continente africano ocupado em mais de dois terços pelo deserto do Saara. À falta de saber que existe, por exemplo, o adjetivo letão, dizia-se ‘o atleta da Letônia’.
Sem contar a desinformação sobre acontecimentos, circunstâncias e pessoas extra-esporte que apareciam nas imagens do pool da Athens Olimpic Broadcast, geradora das transmissões. Nessas ocasiões, grande parte dos apresentadores exibiu uma constrangedora estreiteza de horizontes jornalísticos, como aliás é quase de praxe acontecer. Basta lembrar a catatonia do narrador Galvão Bueno, da Globo, quando, destacado para uma cobertura esportiva em Buenos Aires em dezembro de 2001, desabou sobre sua cabeça a responsabilidade de, enquanto repórteres qualificados não chegavam à Argentina, informar algo sobre gravíssima crise que levou o presidente Fernando de la Rua à renúncia.
Em Atenas, o basquete feminino do Brasil enfrenta a Espanha, e da platéia alguém levanta uma bandeira estranha – nenhum narrador parecia saber tratar-se do pavilhão que extremistas querem para um País Basco independente. Atletas medíocres da ilha de Chipre fazem o público delirar, ante o silêncio do narrador que visivelmente ignora o problema político a separar, neste país independente, as comunidades grega, majoritária, da turca, ligada ao país vizinho e inimigo histórico da Grécia. No Estádio Olímpico, a bela sueca Carolina Kluft vence a prova do heptatlo feminino, enrola-se na bandeira de seu país, vai confraternizar com as adversárias. A TV foca, na platéia, um casal de meia idade que a aplaude. Silêncio do narrador, que desconhecia tratar-se dos reis suecos Carlos Gustavo e Sílvia. Outras figuras públicas, como a rainha Sofia, da Espanha, a princesa Anne, da Grã-Bretanha, presidentes, primeiros-ministros e até velhos atletas do passado passaram em branco por quase todos os narradores.
É claro nem todos os apresentadores escorregaram. E também é certo que muitos repórteres e comentaristas conseguiram produzir bom jornalismo nas Olimpíadas – felizmente. No conjunto da cobertura, porém, foram engolfados pelo infotainment. Foi ele quem subiu ao pódio na Grécia.
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Jornalista