Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A estranha nação de Gilmar Mendes



‘Aprendi a dizer não,/ Ver a morte sem chorar,/ E a morte, o destino, tudo/ Estava fora de lugar,/ E eu vivo pra consertar’. (Disparada, de Geraldo Vandré).


Era quinta-feira, saía de um encontro com Moacyr Scliar, João Carrascoza, Mauro Rosso e Rinaldo de Fernandes, entre outros escritores, no SESC Consolação, em São Paulo, onde lemos trechos do livro Capitu mandou flores, contos que escrevemos sob inspiração de Machado de Assis, quando me veio a idéia do título para este artigo. O escritor gaúcho tem um romance intitulado A Estranha Nação de Rafael Mendes, publicado originalmente em 1983.


De Rafael Mendes a Gilmar Mendes. É que algumas declarações públicas do presidente do STF questionam certas designações consolidadas na língua portuguesa. E ele vem externando juízos desconcertantes na mídia.


O propósito do artigo não é questionar os saberes jurídicos do ministro, matéria em que ele é doutor. Não por ser do STF, que integra, não por concurso público, como fez com a tese de doutoramento, mas por injunções jurídicas combinadas com outras, de natureza política.


Tribunal da língua


Começo por reconhecer que seus votos são muito bem escritos, isto é, sua redação deixa indícios de que procura ornamentar o texto com o belo, com um modo de expressar que vai além do apenas correto. Como fazem farmacêuticos e cozinheiros, que douram a pílula ou enfeitam os pratos, ele busca escrever bonito. Claro que tais cuidados não eliminam as saudáveis controvérsias, do contrário as votações no STF seriam sempre de 11 a zero.


Falantes e escreventes nem sempre dão à língua a atenção que ela faz por merecer nos detalhes, mas às vezes eles são decisivos. E é sobretudo em textos jurídicos, religiosos, médicos e farmacêuticos que encontramos a liberdade ou a condenação, a saúde ou a doença, o remédio ou o veneno, presentes em detalhes do léxico, da sintaxe e do contexto. Uma letra ou um grama pode transformar o remédio em veneno e vice-versa. Uma grama pode melhorar pastos e uma letra das leis pode transformar povo em gado. Minha geração foi alertada para tais diferenças pela canção Disparada, vencedora do II Festival de Música Popular Brasileira, em 1966, em plena ditadura militar, ‘porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata/, mas com gente é diferente’.


No recente Acordo Ortográfico, por exemplo, há um ‘etc’ num artigo que está complicando muito as normas da nova ortografia. A Academia Brasileira de Letras, que é o STF da língua portuguesa, prorrogou o prazo, que deu a si mesma, de novembro de 2008 para fevereiro de 2009. Aguardemos a enxurrada que esse ‘etc.’ ensejou.


Juros limitados?


Voltemos ao português de Gilmar Mendes. Ele tem usado a palavra ‘terrorismo’ e ‘terrorista’ nas acepções que a ditadura usava. Seu conceito para essas e muitas outras palavras parece o mesmo dos militares que combateram a luta armada. Justamente do presidente do STF, guardião de nossas leis, virem tais juízos e designações, ‘cousa é que admira e consterna’, como diria Machado de Assis. Esses conceitos são ofensivos à consciência nacional, para dizer o mínimo, mas são sobretudo um equívoco de língua portuguesa, descontado que é ainda mais estranho ver o presidente do STF ao lado dos que rasgaram a Constituição.


Outros desdobramentos são inevitáveis. Nos conceitos de Gilmar Mendes a conquista da Gália foi obra de bandidos romanos liderados por um terrorista chamado César? Os líderes das duas grandes revoluções, a francesa e a russa, são criminosos? Vencedores e vencidos de guerras, revoluções, revoltas, guerrilhas, sebaças e outros tipos de luta armada não podem ser enquadrados como ‘terroristas’.


Aliás, que designação daremos àqueles que, ontem como hoje, torturam e matam em dependências do Estado, com a proteção do Estado, e hoje são nomes de ruas? Nada faremos contra os antigos torturadores nem contra os atuais? A anistia, votada no governo militar, não pode ser revista por um governo democrático? Como é que os juros, limitados em taxa de 12% anuais pelos constituintes de 1988, foram rapidamente revistos e hoje aquela taxa tornou-se mensal em tantos bancos?


Os leitores têm motivos para ficarem assustados. Que conceito ele terá de ‘direitos humanos’ e ‘anistia’?

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século); www.deonisio.com.br