Quem quiser aproveitar o bicentenário da imprensa no Brasil para ler um texto útil, tem à disposição a quinta edição, revista e aumentada, de Cale a Boca, Jornalista! – O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa brasileira, do jornalista e escritor Fernando Jorge. São 448 páginas, pela Novo Século, de assassinatos, torturas, tiros, emboscadas, processos, censuras, prisões ilegais, socos, bengaladas e xingamentos, desde o Império, mas principalmente na ditadura pós-1964. Traz também numerosos relatos de quebradeiras em redações, promovidas por políticos e policiais.
Não sem motivo, o livro tem vermelho na capa e contracapa. É a cor do sangue de jornalistas mortos, baleados ou espancados porque, ao cumprir o ofício de informar, contrariaram interesses de facínoras no poder. Alguns, além de brutalidades físicas, sofreram o terrível desgosto de, dominados, presenciar agressões a familiares.
‘Abandonai a esperança, vós que entrais!’
Estão no livro, entre muitos outros casos, o assassinato de Vladimir Herzog após tortura no DOI-Codi, em São Paulo, 1975; os murros de Leonel Brizola contra David Nasser adoentado, 1963; o tiro contra Líbero Badaró, 1830; a surra sofrida por Luís Augusto May, do Malagueta Extraordinária, 1823; o duelo a pistola entre o senador Pinheiro Machado e Edmundo Bittencourt, 1906; a agressão a João do Rio por oficiais da Marinha, 1920; o espancamento de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, também por oficiais da Marinha, 1934; a troca de murros entre o general João Punaro Bley e José Maria Rabêlo e o arraso na redação do Binômio, 1961; a bomba contra a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), 1968; a prisão do pessoal do Pasquim na década de 70 e a advertência de militares à Volkswagen: ‘Anúncio no Pasquim, nós consideramos a subvenção da subversão.’
O ódio contra a imprensa no Brasil é ‘antigo, secular, proveniente de espíritos sempre anacrônicos, em conflito com os avanços da democracia’, escreveu Fernando Jorge, em cuja obra há páginas duríssimas, com descrições de cenas tão brutais que dão a impressão de se estar lendo A Divina Comédia, parte Inferno. Está escrito na página 237 do livro do florentino Dante Alighieri… Não, não, do livro de Fernando Jorge: ‘Ferros que são enfiados debaixo das unhas’, ‘latas com as bordas cortantes, sobre as quais a vítima é obrigada a ficar com os pés descalços, até que as bordas penetrem nas carnes’ e ‘vítima pendurada no pau-de-arara, debaixo do qual se acende um fogo’. O boi de tortura de Perilo, do canto XXVII?
Relato impressionante é o de Frederico Pessoa da Silva sobre o ocorrido no DOI-Codi (‘Por mim se vai à cidade das dores’, ‘abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!’, canto III) de São Paulo, em 1975:
‘Na sala de tortura me mandaram tirar a roupa e me recusei. Começaram a me bater: soco, pontapé, tapa, palmada com as mãos, com cassetete. (…) Fui amarrado na cadeira-do-dragão (…). Com o impacto do choque, da dor, eu esperneava, o fio ia cortando e aqui cortou fundo. Outro fio estava ligado no pinto. Tinha fios nas mãos e também no ouvido, enrolado na orelha. E o cara, ao meu lado, com um bastão de dar choque, ficava percorrendo o meu corpo, procurando descobrir a área mais sensível. (…) Depois de umas 10 horas de tortura, eles então – achando que nada conseguiriam – foram prender minha mulher, que jamais teve qualquer participação política. Prenderam minha mulher para torturá-la na minha frente. (…) Começaram a tirar a roupa dela e a bater.’
Lacerda, hipócrita e fascista
São muitos os jornais alvejados por bombas, quebradeiras, processos, apreensões e outras violências. Diário Constitucional, nas primeiras décadas do século 19, Correio da Manhã, que nas décadas de 1960 e 70 foi perseguido até fechar, Tribuna da Imprensa, Coojornal, Hora do Povo, Movimento, Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Pasquim, Jornal da Tarde, revista Veja… Um dos destaques contra a ditadura é o jornal Opinião, que circulou de 1973 a 77. ‘A odisséia desse semanário é uma das mais belas e heróicas da história da imprensa brasileira’, contou Fernando Jorge, ‘pois ele pelejou cheio de coragem, resistiu longo tempo em circunstâncias absolutamente adversas, sofreu um bárbaro atentado terrorista e toda espécie de iniqüidades, de pressões econômicas, teve edições várias vezes apreendidas por motivos absurdos, oriundos da inventiva de cérebros estreitos e quadrados.’
Uma das quebradeiras homéricas é a do A Tribuna, no final do século 19, apoiada pelo marechal Deodoro da Fonseca, criticado pelo jornal. ‘Dirigiram-se ao primeiro andar e praticaram todas as violências, espancando redatores, revisores, conferentes, contínuos e até pessoas que estavam a negócios ou de visitas. A destruição foi completa, não escapando um móvel, uma arandela de gás, um tinteiro’, narrou o jornalista Antônio de Medeiros, reproduzido em Cale a Boca, Jornalista!.
O político santista José Bonifácio de Andrada e Silva, o alcunhado Patriarca da Independência, aparece como truculento depredador de redações, como fez, segundo o historiador Assis Cintra, com o jornal Sentinela da Liberdade. José Bonifácio, conforme Assis Cintra, ‘não tolerava os jornalistas que não o endeusassem’ e perseguiu jornais independentes. ‘Embora houvesse influído muito na declaração da Independência, era rancoroso’, pôs no livro Fernando Jorge. O presidente mineiro Artur Bernardes, escreveu o polemista, era ‘exímio na arte de censurar, de reprimir as manifestações dos articulistas francos e denodados’. Carlos Lacerda, democrático? Ele discorda: ‘Lenda, mentira, Lacerda era um hipócrita. Quando governou o estado da Guanabara, agiu como fascista, perseguiu o Correio da Manhã e outros jornais.’ Recebeu, está no livro, dinheiro do DIP para escrever artigos de louvor ao Estado Novo.
Pastor torturador
Humor na dureza. Fernando Jorge contou, baseado em informações do jornalista Miranda Jordão, que um general foi à Folha de S.Paulo apresentar o decálogo do AI-5 para atuação da imprensa. Todos prontos para anotar, o militar começou: um, não pode falar em Juscelino Kubitschek; dois, não pode publicar discurso do papa sobre direitos humanos. Foi citando, como ‘quem estivesse lendo uma ucasse de Ivan, o Terrível’, até encerrar no nove. Cláudio Abramo cutucou o colega Miranda Jordão: ‘É um decálogo com nove itens?’ Este comunicou o lapso ao general, que se saiu, digamos, muito bem: ‘O décimo item? O décimo item é… cumpra-se!’
Cale a Boca, Jornalista! apresenta também o incrível caso, contado pelo jornalista Sérgio Porto no livro O Festival de Besteiras que Assola o País, do desapontamento de agentes do Dops que foram ao Teatro Municipal de São Paulo, onde estava em cartaz a peça Electra, de ‘natureza subversiva’, com uma missão um tanto difícil: prender o dramaturgo grego Sófocles, morto no ano 406 antes de Cristo.
A obra nomeia vários torturadores e seus diabólicos equipamentos de produzir horror, como o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão e a pianola Boilensen. Um desses é o capitão e pastor evangélico Roberto Pontuschka, insólito cruel: torturava presos de dia e à noite a eles distribuía bíblias. O jornalista Antônio Carlos Fon, vítima de tortura, quis saber dele por que um religioso era capaz de tamanha crueldade. ‘Trago a palavra de Deus, mas, para quem se recusa a ouvi-la, uso esta outra linguagem.’
Ferir o coração da mentira
O livro cita o processo sofrido em 1981 pelo jornalista itabirano Carlos Cruz, enquadrado na Lei de Segurança Nacional após publicar nota polêmica sobre um colar de esmeraldas ganho em Itabira pelo então ministro de Minas e Energia, César Cals. Também menciona a histórica entrevista de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, em 1945, no Correio da Manhã. Essa matéria, ‘que impulsionou a redemocratização do país e sepultou o Estado Novo’, foi articulada pelo historiador itabirano Luiz Camillo de Oliveira Netto – informação não escrita no livro.
Ao contar a história do ódio contra jornalistas brasileiros, Cale a Boca, Jornalista! dá, por tabela, nomes de corajosos que se opuseram ao despotismo: o jurista mineiro Sobral Pinto é um deles, como os jornalistas Rodolfo Konder, Maurício Azêdo, Míriam Leitão, Renato da Mota e José Augusto Pires, entre muitos outros. ‘Embora os hipócritas tentem derrubá-la, a seta da verdade sempre voa bem alto, em linha reta, para ferir mortalmente o coração da mentira’, enfeitou Fernando Jorge. ‘Meu compromisso é com a verdade histórica. É preciso disseminar a verdade. Meu livro é para todos que odeiam o fascismo, o nazismo, e amam a liberdade.’
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