O aborto voltou a ser notícia semana passada. Desta vez porque um juiz de Mato Grosso do Sul resolveu punir as mulheres que fizeram aborto em uma clínica de planejamento familiar. Enquanto a dona da clínica espera júri popular, 26 mulheres já cumprem penas alternativas, trabalhando em creches e no atendimento de crianças excepcionais.
‘Num caso inédito e polêmico, a Justiça de Mato Grosso do Sul está indiciando, julgando e condenando 150 mulheres acusadas de praticarem aborto em uma clínica de Campo Grande – o número total de envolvidas no caso, e que devem passar por uma investigação, é de 1,5 mil. De julho até o início deste mês, 150 já foram indiciadas e 26, condenadas a penas alternativas’ (O Estado de S.Paulo, 16/11/2008).
Enquanto blogs na internet e sites (feministas, de organizações políticas e religiosas) se manifestam intensamente – a favor ou contra o juiz –, a grande imprensa se limita a noticiar o processo. Talvez nem possa ser diferente. Afinal, falar de aborto cria polêmica, exalta ânimos, exige muito cuidado para evitar a acusação de publicar matérias tendenciosas.
Mas os jornais poderiam, pelo menos, discutir o assunto com maior profundidade. O que se vê, de modo geral, são pequenas matérias sobre o assunto. Notas que, se fossem transformadas em uma grande matéria, permitiriam ao leitor ter mais informações para se posicionar sobre um tema tão polêmico.
Sigilo desrespeitado
O primeiro item a discutir seria o papel do governo:
‘Em 1995, o Brasil subscreveu a Declaração de Pequim, adotada pela 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, comprometendo-se a considerar a revisão de leis contendo medidas punitivas contra mulheres que tivessem feito abortos ilegais. Tendo nosso governo assumido claramente, no âmbito das Nações Unidas, posição contrária à penalização das mulheres que, por circunstâncias diversas e sempre difíceis, submetem-se a um aborto, parece incongruente o ímpeto punitivo de que foram acometidas autoridades de Campo Grande, onde, a partir de denúncias de um promotor estadual acolhidas por um juiz, 10 mil mulheres que freqüentaram determinada clínica de planejamento familiar respondem a inquérito policial por suspeita de prática de aborto’ (Jornal do Brasil, 3/5/2008).
A ministra Nilcéa Freire, citada pelo jornal O Estado de S.Paulo, diz: ‘Está em curso, em Mato Grosso do Sul, um episódio assustador e de intensa fúria persecutória contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil.’
A atuação da Justiça seria o segundo item para a imprensa discutir, já que o processo foi denunciado à Anistia Internacional. Diz a professora de Direito – e membro do movimento Jornadas pelo Aborto Legal – Samantha Buglione:
‘Um dos principais problemas apontados foi o desrespeito dos prontuários médicos, apreendidos sem um pedido especial e depois expostos à consulta pública por cerca de sete dias úteis. Tecnicamente, o prontuário médico é um documento sigiloso, tanto quanto os documentos encontrados nos escritórios de advocacia, tanto quanto as contas bancárias de cada pessoa. A única diferença é que, como há um julgamento moral sobre as mulheres nesse caso, esse sigilo foi totalmente desrespeitado e colocado à disposição dos curiosos, inclusive homens que iam até lá ver o nome das mulheres suspeitas’ (O Estado de S.Paulo, 16/11/2008).
Os motivos do juiz
Como ficam as mulheres envolvidas no processo? Delas, a imprensa pouco se ocupou. ‘A situação é muito constrangedora’, afirmou uma das envolvidas ao jornal O Estado de S.Paulo. Segundo a acusada, ‘eles vão fundo no interrogatório’. Os jornais – e especialmente as revistas femininas, que usam e abusam de psicólogos para discutir comportamento – bem que poderiam conversar com dois ou três especialistas para tentar mostrar como ficam as mulheres depois de fazer aborto. Afinal, todo mundo sabe – inclusive os que defendem a criminalização – que abortar nunca é uma decisão fácil e que dificilmente as mulheres que fizeram um aborto conseguem enfrentar o assunto sem culpa.
O último item que precisaria ser analisado em profundidade é a atitude do juiz Aluízio Pereira que, além de ir contra uma decisão governamental (a assinatura do compromisso na Conferência de Pequim), teve um comportamento nada elogiável ao conduzir o processo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, ‘ele afirma ser necessário invadir a privacidade nesses casos em busca de detalhes da vida sexual das mulheres suspeitas’. Seria o caso de pelo menos perguntar: se o que se julga é o ato do aborto, o que a vida sexual das mulheres tem a ver com isso? É interesse da justiça, voyeurismo ou o simples desejo não apenas de punir, mas de humilhar mulheres?
O que esse juiz espera dando como pena o serviço nas creches e Apaes? Se o que ele quer é aumentar o sofrimento (já bastante grande) das mulheres que foram obrigadas a abortar, vai conseguir. Mas se julga que vai dar consciência, fazer com que sintam culpa (além da culpa de terem sido obrigadas a optar pelo aborto), é porque não conhece nada de mulheres. E, o que é pior, preocupado apenas com o comportamento sexual das acusadas, não se preocupou em tentar descobrir as razões que as levaram a cometer o ‘crime’.
Esse juiz merece um detalhado perfil, feito por um bom repórter, que desvende qual é, na verdade, sua motivação ao punir as mulheres que fizeram aborto. Se era apenas se destacar na mídia, isso ele conseguiu. Haveria outros motivos?
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Jornalista