Levantamento das coberturas feitas pelos principais jornais brasileiros sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo mostra que houve desequilíbrio no tratamento do assunto nos dez primeiros dias de edição dos materiais. O estudo foi feito pelo projeto Monitor de Mídia, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), com apoio do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), que forneceu a clipagem eletrônica dos jornais.
Habituado a acompanhar sistematicamente a imprensa catarinense, o Monitor de Mídia – que completa agora três anos de serviços – observou como se deu a cobertura do CFJ no período de 6 a 16 de agosto, quando foram analisadas as edições da Folha de S. Paulo, de O Estado de S.Paulo, de O Globo, do Jornal do Brasil e do Correio Braziliense, principais títulos diários das bancas e considerados jornais nacionais. O objetivo era dar um panorama de como o assunto teve cobertura e se houve equilíbrio nos materiais editados.
Como critério metodológico, a análise levou em conta as fontes utilizadas nos textos e suas posições frente ao tema. A contagem e classificação das fontes consultadas permitiriam observar se as matérias traziam os dois lados da questão, se havia o mesmo espaço para ambos e quem era ouvido. É evidente que a análise em questão reserva elementos de ordem subjetiva, mas a evidência e a quantidade das fontes citadas no texto sinalizam um percurso de sobrevalorização de uma opinião em detrimento de outras.
De maneira geral, a grande imprensa foi parcial no tratamento do CFJ, destacando falas que criticavam o projeto.
Folha
simula equilíbrio das fontesA Folha de S. Paulo tentou demonstrar certo equilíbrio quanto as suas fontes, buscando sempre o mesmo número de opiniões, contrárias ou a favor da criação do CFJ. Foram contabilizadas 17 opiniões simpáticas ao projeto e 15 discordantes. Mas, como disse Marcelo Beraba, o ombudsman da Folha em 15/08, a parelha foi apenas numérica. As opiniões negativas foram muito mais destacadas dentro das matérias. Exemplar é a edição de 07/08 em que a reportagem fecha com uma declaração do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo, dizendo que ‘A Fenaj pariu mal esse projeto. Vamos pedir ao Congresso a rejeição total da proposta’. Nesta mesma edição, foi dado o devido destaque a uma frase dita por Bill Kovach (jornalista e teórico norte-americano) demonstrando seu descontentamento com relação ao CFJ: ‘Se o Governo decide o que é conduta adequada, você não pode ser independente…Se você realmente acredita em imprensa livre, qualquer um tem o direito de expressar a sua opinião, sem ter que receber licença de ninguém’.
Na edição do dia seguinte, mais destaque aos ‘teóricos americanos’: ‘Isso é assustador’, disse Kovach. Depois, foi a vez de Manning Pynn, presidente da Organização de Ombudsman de Notícias, soltar o verbo: ‘É terrível’. A Folha publicou, também, o editorial do jornal britânico Financial Times, que condenava a iniciativa do governo brasileiro de mandar o anteprojeto ao Congresso Nacional. ‘A legislação proposta para o Brasil deve ser rejeitada’. Aqui, fica clara a intenção da Folha em mostrar ao leitor que as posições contrárias ao CFJ também vêm de fora.
Ainda no dia 8, o jornal veio com seu único editorial sobre o tema (‘A mão sinistra’) nos dez dias de monitoramento do noticiário. O texto foi claro, direto e sem papas na língua. ‘A idéia, [do CFJ] que foi lamentavelmente sugerida pela própria Federação Nacional dos Jornalistas’ deveria ser rechaçada ‘pelo Legislativo’.
Os colunistas do jornal compraram a briga e todos, sem exceção, trataram do projeto com severas críticas. Destaque para Eliane Cantanhêde que escreveu: ‘Não será um conselho de jornalismo, mas, sim, um conselho do PT contra os jornalistas’. O cronista Carlos Heitor Cony manteve a mesma tônica negativa, afirmando que ‘o Conselho Federal de Jornalismo… Ficará alinhado com aqueles que precisam de conselhos do próprio governo para baixar o sarrafo’. Oito artigos sobre o CFJ foram publicados na Folha sendo apenas um defendendo a sua criação (do jornalista Ricardo Kotscho, ex-Folha e secretário de imprensa da presidência da República). Os demais textos bombardearam o anteprojeto do CFJ.
Na seção Painel do Leitor, a Folha, mais uma vez, mostrou-se tendenciosa. Chegou-se ao número de seis opiniões a favor do CFJ e oito contra. A mesma situação no conteúdo noticioso. As declarações negativas foram mais destacadas. Em 07/08, duas opiniões sobre o projeto foram publicadas, as duas contrárias. Dois dias depois, três opiniões, todas contrárias novamente. A cada edição, a Folha intercalava duas opiniões favoráveis e uma contra, fazendo um contraponto do ‘morde e assopra’ feito em 07/08 e 09/08.
O jornal também frisou em quase todas as matérias publicadas que a principal função do Conselho Federal de Jornalismo é o de ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’. O leitor, com certeza, se perguntou: ‘É para isso que serve o conselho?’ Essa definição tomada pela Folha como absoluta, não favorece a discussão, o debate. Focar o assunto em apenas um aspecto desinforma e torna seu entendimento distorcido e confuso. Nesta linha editorial, quem sai perdendo é o leitor.
Estadão
esquece o outro lado; Correio pega mais leveEm O Estado de S.Paulo, a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo foi tratada de maneira bastante tendenciosa: além da publicação de muito mais cartas de leitores contrárias à proposta, o jornal não trouxe um único artigo simpatizante à idéia, e ainda deu mais espaço às críticas que às defesas do projeto.
Em dez dias de cobertura, o Estadão publicou três editoriais (‘Governo mostra sua face autoritária’, de 11/08, ‘O braço do dr. Strangelove’, de 12/08, e ‘A ofensiva do governo contra a democracia’, do dia seguinte), sete artigos de jornalistas e colunistas e 21 manifestações de leitores, todos contrários ao projeto. Apenas duas cartas de leitores apoiavam a criação do CFJ. Clara evidência de que houve amplo espaço para as críticas, e pouco se ouviu do outro lado.
Do conteúdo noticioso monitorado, foram contabilizadas 17 matérias. E mesmo nas reportagens, os contrários sempre estiveram à frente no placar. Para se ter uma idéia, dois textos publicados em 7 de agosto trouxeram nove declarações negando o projeto contra três defendendo-o. No dia 10, houve equilíbrio, e o espaço dado às duas vertentes foi o mesmo. Mas no dia seguinte, em ‘Para jornalistas, projeto é abominável, uma aberração’, foram quatro falas detonando o projeto contra nenhuma em sua defesa. Na mesma edição, o texto ‘Imprensa já é regulada por várias leis’ traz outros dois especialistas defenestrando a proposta, e nenhum contraponto. No dia 13 de agosto, o bombardeio continua: um texto sobre nota do PFL condenando o projeto, outro com críticas do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, outro comparando a legislação brasileira às leis dos Estados Unidos, e uma matéria com ataques da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e da Associação Nacional dos Editores de Revista (ANER). Em nenhuma das matérias, havia o chamado ‘outro lado’.
O Correio Braziliense ofereceu uma cobertura um pouco mais equilibrada aos seus leitores, dando espaços também para os apoiadores do CFJ. Na amostragem de dez dias, contabilizou-se 17 ocorrências, entre matérias, artigos e manifestações através de cartas. No dia 6 de agosto, o noticiário foi sucinto e meramente informativo, trazendo uma nota sobre o projeto de lei. No dia seguinte, no entanto, percebe-se uma tendência à condenação da iniciativa no registro de que havia uma ‘ampla condenação’ à proposta. No entanto, a ‘ampla condenação’ é expressa apenas no depoimento do presidente da ABI, Maurício Azêdo, e na fala do líder do PFL na Câmara, José Carlos Aleluia.
O assunto volta à tona em 11 de agosto, quando o Correio traz a matéria ‘Projeto prevê punição’, onde duas fontes mostram-se contrárias ao CFJ e uma coloca-se a favor, e a matéria ‘Oposição quer barrar proposta’, com quatro fontes contrárias e duas favoráveis. No mesmo dia, são publicados um artigo do jornalista Luis Costa Pinto e o editorial ‘Projeto antidemocrático’, ambos negativos à iniciativa. Ainda no dia 11, o Correio publica carta de Ari Cunha, cujo texto pende para os dois lados, sem se definir por um.
No dia 13, o Correio traz a matéria ‘João Paulo: ‘O governo errou’’, duas cartas – uma contra e outra a favor – e um artigo da jornalista Taís Braga manifestando-se contrária ao projeto. No dia seguinte, o diário de Brasília traz pela primeira vez a voz do presidente da Fenaj, Sérgio Murillo de Andrade. A fala recheia a matéria ‘Governo vai retirar a proposta’, que tem ainda como fonte o presidente da ABI, detonando a idéia. Abaixo, o jornal traz ‘Ataque dos pefelistas’, matéria apoiada apenas nas falas do deputado José Thomaz Nonô criticando a criação do CFJ e a iniciativa do governo.
No dia 15, a edição vem com uma extensa matéria sobre o tema: ‘Contra as ‘patrulhas’’, que ouve não apenas o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, mas outros quatro especialistas de diferentes áreas, promovendo um verdadeiro debate sobre o projeto. Na mesma edição, o Correio Braziliense trouxe dois artigos – um do professor Luiz Martins, da Universidade de Brasília, defendendo o projeto, e outro do presidente da ABI desacreditando a proposta –, além da manifestação do leitor Antonio Negrão de Sá, apoiando o projeto da Fenaj.
De maneira geral, o Correio Braziliense foi claro na defesa de sua opinião – contrária ao projeto -, chegando a dar ligeiramente mais espaço a esse viés. No entanto, não ignorou as manifestações simpáticas ao CFJ, vindas principalmente de leitores.
JB
prioriza opinativo e enaltece as críticasNo Jornal do Brasil, o período analisado apresentou apenas quatro matérias que tratavam da criação do Conselho Federal de Jornalismo. A primeira menção ao assunto em material informativo ocorreu no dia 10 na matéria intitulada ‘Bastos critica o denuncismo’. O texto apresentava apenas declarações do ministro da Justiça que defendeu a criação do Conselho. No dia seguinte, ‘Criação de Conselho de Jornalismo gera polêmica’ já traz a opinião de outras fontes, mas foram ouvidos apenas políticos e o presidente da Associação dos Magistrados no Brasil. As três declarações vindas de pessoas ligadas ao governo falavam que era possível parar para discutir antes de aprovar o projeto. As outras três apresentadas tinham tom contrário à iniciativa. No dia 13, ‘Conselho de jornalismo leva João Paulo a criticar governo’ traz as críticas do presidente da Câmara pela ‘falta de diálogo’ com o Parlamento, já que, segundo o jornal ,uma iniciativa semelhante tramita na Casa há dois anos. Além disso, há duas posições contrárias ao projeto. A outra declaração que constitui a matéria não define a posição do deputado Celso Russomano já que ‘admite que ainda não analisou cuidadosamente a proposta do governo’. No dia 14, ‘Bastidores de reportagem municiam polêmica’ concentra-se em descrições do material que seria publicado pela revista Isto É. Esse material mostra que não houve uma preocupação do jornal em esclarecer a seu leitor o que estava acontecendo em relação à criação do CFJ, uma vez que se concentra na discussão política, sem apresentar o que o projeto de criação do Conselho propõe e sem ouvir nenhum representante da Fenaj ou cidadão.
No material opinativo analisado a posição do jornal, contrária à criação do Conselho, ficou mais clara. A começar pela edição das cartas enviadas à redação. Nos dez dias em que o jornal foi monitorado, foram publicadas 33. Destas, apenas 6 apresentavam opiniões favoráveis à iniciativa. Nos artigos e colunas, uma situação bem semelhante. Das 13 ocorrências, três não definiam uma posição e oito eram contrárias. A única voz em defesa do Conselho publicada pelo jornal foi a da tesoureira da Fenaj e presidente do Sindicato dos Jornalistas de Goiás, Maria José Braga.
Globo
é contra, mas equilibra noticiárioO carioca O Globo realizou uma cobertura equilibrada, apesar de ser explicitamente contra. Fontes dos dois lados foram ouvidas, e até mesmo D. Pedro II foi invocado para a discussão. De seis a 16 de agosto, o jornal só não publicou matérias relativas ao projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) nos dias nove e 12 de agosto. Foram 45 menções ao CFJ, sendo 15 noticiosas e 30 opinativas (divididas em: um editorial, 12 cartas e 17 notas de colunistas/artigos/entrevistas). Das 12 cartas enviadas por leitores, publicadas nos dias 13, 14 e 15 de agosto, somente uma foi a favor da criação do conselho.
Além de priorizar as opiniões dos leitores que eram contrárias à proposta, O Globo manifestou repúdio à criação do conselho no editorial ‘O único juiz’, publicado no dia 10 de agosto. Para o jornal, a ética jornalística é altamente subjetiva. ‘O mesmo fato pode ter abordagens diferentes, ambas éticas – e a sociedade tem direito a conhecer as duas’. Essa relação entre angulações e interpretações do fato com a ética da profissão é duvidosa.
O leitor que não está familiarizado com a gramática jornalística é certamente confundido pelo jornal. Os critérios de noticiabilidade – que determinam o que é notícia, avaliam o interesse público das pautas e hierarquizam as informações dentro da publicação – dentre outras decisões diárias dos jornalistas, podem ser subjetivas. Mas a ética não. Dizer que a ética no jornalismo é algo ‘altamente subjetivo’ é dar margem às fraudes, manipulações e erros da imprensa. O editorial ainda afirma que ‘o único juiz legítimo da imprensa é a opinião pública’, exatamente a mesma que ele tinha acabado de confundir sobre o que é ser ético em jornalismo. O posicionamento do Globo fica claro como desfavorável ao CFJ, classificando a decisão do Executivo como uma ‘peculiar demonstração de açodamento e ignorância’.
O conteúdo noticioso e opinativo da cobertura realizada apontou para a mesma direção, mas de forma mais equilibrada e menos radical. Apesar de a estruturação das matérias estar de acordo com a linha editorial e sugerir que o projeto não é adequado nem necessário, dando mais destaque às posições contrárias à criação do CFJ, o outro lado também foi ouvido. Na contabilidade das fontes mencionadas pelo jornal, houve equilíbrio entre os ataques e o apoio ao conselho.
Pode-se destacar a histeria da coluna Panorama Econômico de 13 de agosto, ao afirmar que os jornalistas serão controlados pelo ‘Código de Hamurabi’ caso o CFJ seja aprovado. No dia 14 de agosto Zuenir Ventura relembrou os tempos do império. ‘É hora de lembrar a lição de D. Pedro II: ‘Os males da imprensa se curam com a própria imprensa’’. Será que já não é hora de evoluirmos? Ao mesmo tempo, no dia 11 de agosto a matéria ‘Fenaj denuncia massacre da mídia’ expôs a posição da entidade, protestando contra a omissão das posições a favor ao CFJ pelos grandes jornais brasileiros: ‘Das 61 reportagens publicadas, apenas uma é favorável’.
A colunista Tereza Cruvinel acompanhou a polêmica desde o início, apontando que a discussão era saudável e importante para o jornalismo brasileiro, independente das farpas trocadas entre os envolvidos. ‘Sustentar que as práticas da imprensa não podem ser discutidas é acreditar que tudo lhe é permitido’. Cruvinel sinaliza a necessidade de colocar o assunto em pauta ao comentar a cobertura das recentes CPIs. ‘Para combater uma ilegalidade pode a imprensa valer-se de outra?’. Se um conselho de jornalismo já existisse, com certeza teria meios para responder a essa pergunta.