O Estado Novo não desabara, prisões ainda fechadas, desaparecidos ainda não encontrados e os muros já estavam sendo pichados com o os slogans ‘Queremos Getúlio’ e ‘Constituinte com Vargas’. O queremismo começou meses antes da derrubada do ditador em 29 de Outubro de 1945 e continua até hoje, 59 anos depois.
Não seria estranho que este messianismo às avessas fosse empunhado pelos conservadores sempre mais permeáveis às diferentes formas de monarquismo. Mas que algumas esquerdas ditas modernas se deixem seduzir pelo caudilhismo é um fenômeno que ultrapassa à ciência política. Melhor seria estudá-lo à luz da psicanálise.
Em 15 de Julho de 1945, Luís Carlos Prestes saiu praticamente da prisão para o comício do Pacaembu e, esquecido da sua tragédia pessoal, proclamou o seu apoio ao governo de Vargas, que prometia marchar para a democracia, contra o golpismo fascista.
Um mês antes, a 12 de Junho de 1945, fundara-se a Esquerda Democrática reunindo políticos e intelectuais de formação social-democrata avessos a qualquer tipo de parceria com o antigo regime. Vacinados contra as tentações bolcheviques e as ilusões dos ‘partidos de massas’ (que haviam produzido os banhos de sangue na Alemanha, Itália e União Soviética), miravam-se no trabalhismo inglês, que naqueles dias havia derrotado espetacularmente o herói da 2ª Mundial, Winston Churchill.
Esta Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB) e muitos dos seus fundadores, 32 anos depois, também assinaram a ata de fundação do Partido dos Trabalhadores. Hoje, o PT considera-se social-democrata, mas o governo federal, esquecido de alguns dos seus antecedentes genéticos, embarcou com algum pudor — mas não muitos — na corrente neoqueremista.
Lembrar o suicídio e a figura de Getúlio Vargas, meio século depois, é obrigação histórica. O mais importante estadista brasileiro do século XX e o momento mais trágico da nossa história política não podem ser esquecidos ou minimizados. Seja numa data redonda ou efemeridade quebrada. Uma sociedade tão impregnada pelo efêmero carece destas incursões retrospectivas.
Mas é preciso lembrar também que Vargas, o pai dos pobres e o unificador das esperanças nacionais, personifica uma sucessão de divisões ainda não cicatrizadas. A Revolução Constitucionalista de 32 não pode ser vista como mero conflito secessionista. Foi um movimento popular essencialmente democrático – talvez o primeiro desde a proclamação da República.
A sangrenta repressão à ‘Intentona Comunista’ não se resumiu à estúpida entrega de Olga Benário e a sua companheira Machla ‘Sabo’ Berger à Gestapo. O marido desta, Harry Berger, ficou insano de tanto apanhar. O furor punitivo de 1935-36 funcionou como ensaio-geral para a sanha do Doi-Codi quarenta anos depois. O carrasco Filinto Müller foi senador do partido que sustentou a ditadura militar.
Getúlio Vargas nada tem a ver com o golpe de 1964, mas foi o artífice e beneficiário de seu paradigma, o golpe do Estado Novo precedido pela espalhafatosa revelação do Plano Cohen por meio da imprensa, uma das mais viciosas fraudes políticas da história do país.
Entende-se que políticos ou historiadores inebriados pela política partidária estejam empenhados num ‘revival’ do getulismo econômico. Mas é uma tremendo equívoco imaginar que Vargas fez uma escolha estratégica ao escolher o Estado como o principal agente do desenvolvimento econômico. O credito internacional estava comprometido no esforço de guerra e a iniciativa privada (majoritariamente agrícola) não dispunha de recursos para injetar nas indústrias de base. Não foi opção, foi a única saída.
Não importa saber se a Era Vargas acabou ou não. Periodizações são sempre aleatórias e provisórias. Também os mitos. Quando se fala nos herdeiros do trabalhismo de Vargas menciona-se unilateralmente Jango e Leonel Brizola mas conviria abrir os horizontes para neles colocar figuras como Alberto Pasqualini ou Fernando Ferrari.
Imperioso estudar Vargas sob todos os ângulos, fascinar-se com o homem, suas contradições, flagrar ambigüidades, examinar suas marcas. Mas é imperioso lembrar que o conhecimento é o único antídoto contra as repetições.
O queremismo é o nosso sebastianismo, devoção ao redentor, culto às personalidades, fascinação pelas fórmulas salvacionistas. Interessante num museu, perigoso como modelo. Entregar-se ao varguismo de forma acrítica pode levar a algumas armadilhas que nos transformaria num grande Gabão.