A matéria do New York Times sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é falha. Jornalismo de terceira categoria. Não está à altura do profissional que a assina nem do grande jornal que a divulgou. Até o repórter-fraudador Jayson Blair seria mais cauteloso e menos escandaloso ao expor a vida privada de um cidadão – mesmo que não fosse o presidente do Brasil.
Para começar, o repórter Larry Rohter errou na dimensão e na ênfase: os hábitos do presidente Lula não são ‘preocupação nacional’ porque ele nunca escondeu que gosta de um trago. A foto usada para ilustrar a matéria com uma caneca de cerveja na mão (na Oktoberfest, ano passado, em Blumenau, SC) mostra uma pessoa alegre, descontraída, sem problemas em deixar-se fotografar com uma cervejota.
É preciso lembrar que não apenas o marqueteiro Duda Mendonça como o próprio Lula da Silva, então presidente eleito, não esconderam a caríssima garrafa de vinho que o primeiro ofereceu ao cliente por ocasião da vitória no primeiro turno das eleições de 2002. Portanto, não há mistério.
O presidente – e não apenas porque foi um simples metalúrgico, mas porque é um bom garfo e um bom copo – assume publicamente os seus prazeres e hábitos. E, talvez erroneamente, até tentou tirar partido desta imagem bonachona e ‘popular’.
Reprodução acrítica
George W. Bush teve problemas de alcoolismo na juventude, por isso na campanha eleitoral foi obrigado a torná-los públicos. Se aparecesse com um copo na mão seria, sim, um caso político. O alcoólatra Boris Yeltsin era, sim, uma preocupação nacional. Mais do que isso, internacional porque numa dos freqüentes porres poderia apertar o botão errado e iniciar o holocausto nuclear.
Se nas rodas jornalísticas e políticas do Distrito Federal aumentaram ultimamente os comentários sobre a vermelhidão das bochechas e do nariz presidencial, isso não confere grande relevância ao fato. O repórter Rohter deveria saber que as fofocas de Brasília nem sempre refletem as grandes questões nacionais. Aliás, de certa forma, este é um dos grandes problemas nacionais.
Em segundo lugar: as fontes mencionadas na matéria não têm a menor credibilidade. Leonel Brizola é inimigo político do presidente Lula, portanto suspeito. Há 50 anos diz o que lhe vem na veneta e já pagamos muito caro por suas bravatas. Comparar o colunista Cláudio Humberto com o charlatão Matt Drudge desqualifica liminarmente qualquer informação. E se a fonte foi desqualificada, sua informação está liminarmente comprometida. Usar como referência a coluna de Diogo Mainardi publicada na Veja foi outro erro crasso porque o texto, além de opinativo, carece de qualquer intenção denunciadora ou mesmo factual.
Se o New York Times errou – e errou muito –, erraram mais ainda os jornais brasileiros nas suas edições de domingo (9/5). A republicação acrítica, sem qualquer comentário, sobre os erros da matéria original confirma tudo o que este Observatório vem dizendo há oito anos. Sobretudo no tocante às nossas edições de domingo.
Episódio melancólico
É inconcebível que a edição mais importante e mais nobre da semana seja fechada com tanta pressa e por equipes tão pequenas. O Estado de S.Paulo, a Folha e O Globo (que publicou pequena matéria na edição local) não poderiam contentar-se em reproduzir uma denúncia desta importância sem o devido suporte analítico. Mesmo nas edições de segunda-feira (10/5, fechadas no domingo quando as redações ainda trabalhavam em regime de meio-plantão), o grosso do material oferecido ao leitor baseou-se nas opiniões do governo, obviamente indignadas.
Faltou o outro lado, o suporte técnico, a radiografia de uma notícia precária e irresponsável. A expressão imprensa marrom mencionada na nota oficial do governo precisava ser devidamente traduzida. Inclusive para permitir sua compreensão pela imprensa internacional – acostumada com a expressão ‘imprensa amarela’, yellow press (veja a abaixo). A suspeição das fontes – sobretudo Leonel Brizola e Cláudio Humberto – precisava ser sublinhada.
O que aconteceu com a matéria envolvendo o presidente da República acontece todos os dias numa imprensa que burocratizou sua capacidade de reação e seu instinto de resposta. Este é mais um exemplo do perigoso ‘jornalismo declaratório’ que impregna e emperra nossas redações [veja remissões abaixo].
No primeiro dia (domingo), reproduziu-se passivamente o que disse o NYT. No segundo dia, fez-se o mesmo com a reação do governo. E só no terceiro dia (terça) começaram a aparecer as matérias ‘jornalisticamente trabalhadas’ (para usar a feliz expressão de Eugênio Bucci), menos factuais e mais analíticas.
O problema não é econômico, nada a ver com a crise que aflige as empresas de mídia e os brutais cortes de pessoal nas redações. O ‘novo jornalismo’ que se pratica no Brasil é lento, linear e desvitalizado. Há muitos anos que os jornais de domingo apresentam este tipo de jornalismo requentado e chocho. Fecham no ‘pescoção’ das sextas-feiras e no sábado, pela manhã e à tarde, fazem uma pequena atualização.
Podem ser eventualmente fartos no número de páginas – como foi o caso da temporada do Dia das Mães –, podem até ser densos no tocante à dimensão das matérias, mas não conseguem ser completamente atuais. Pecado capital porque a excelência jornalística mede-se principalmente pela velocidade de resposta.
Se já nos jornais de domingo (9/5) a façanha do NYT fosse devidamente qualificada pela grande imprensa brasileira, a bola de neve já estaria diminuída na terça-feira. Agora, fatalmente encorpada, poderá estender-se ou até mesmo crescer até o fim de semana seguinte com a inevitável contribuição sensacionalista dos semanários que não recusarão prato tão sedutor.
O episódio é duplamente melancólico para a imprensa. Um grande jornal como o New York Times, recém-saído de uma crise de credibilidade, escorrega novamente. Mas os jornais que poderiam contradizê-lo imediatamente mostraram-se atarantados. Um parece bêbado, outros de ressaca.