Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia se cala sobre o acordo
do governo com a Santa Sé

O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (25/11) pela TV Brasil e pela TV Cultura discutiu a cobertura dos meios de comunicação sobre o acordo firmado no dia 13 de novembro entre o governo brasileiro e a Santa Sé, assinado durante a recente visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Vaticano. A mídia ofereceu pouco espaço ao acordo, que pode ferir o princípio do Estado laico. O tratado, que confere formato jurídico às relações entre o Executivo Brasileiro e a Igreja Católica, tem pontos polêmicos.


O acordo prevê, por exemplo, o ensino religioso nas escolas públicas, com presença facultativa, e a possibilidade da anulação do casamento civil no caso o matrimônio religioso ser desfeito. Participaram do debate ao vivo, no estúdio do Rio de Janeiro, o reverendo Guilhermino Silva da Cunha, pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e a pesquisadora e professora da USP Roseli Fischmann. Em Brasília, participou o representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Hugo Sarubbi Cysneiros.


No editorial que inicia o programa, o jornalista Alberto Dines classificou a atuação da mídia como ‘embargo noticioso ou autocensura’. O acordo foi mantido sob sigilo porque infringe o espírito e a letra da Constituição Federal. Além de os jornais não terem dado destaque à assinatura do acordo, a mídia eletrônica evangélica não protestou. Na avaliação de Dines, os grupos evangélicos têm sido privilegiados pelo governo de outras formas. ‘Significa que no lugar de seguir a Constituição e estabelecer completa separação entre estado e religião, o Brasil inventou uma forma original de administrar o conflito religioso, oferecendo vantagens às confissões religiosas mais poderosas’, avaliou.


‘E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um estado democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras confissões religiosas afro-brasileiras, como o candomblé, não deveriam entrar no bolo de privilégios? Estamos na contramão do mundo desenvolvido e nossa imprensa, esquecida dos três séculos de censura absoluta antes de ser autorizada a funcionar, teve um surto de saudosismo e voltou a experimentar as delícias da autocensura’, criticou o jornalista.


Na reportagem exibida antes do debate ao vivo a repórter especial da Folha de S.Paulo, Elvira Lobato, estudiosa das questões que envolvem as concessões de radiodifusão no Brasil, explicou que o Código Brasileiro de Telecomunicações é da década de 1960. A norma não permite que denominações religiosas detenham concessões canais de rádio e TV mas, na prática, grande parte das igrejas conseguem burlar a lei. Algumas não são concessionárias, mas arrendam o espaço em emissoras privadas o que ‘para efeito de mercado dá no mesmo’ porque levam a mensagem ao fiel. Já o fenômeno do altar eletrônico, que vêm crescendo continuamente, passou a ser uma importante fonte de renda para as emissoras privadas.


Igreja Católica, um tabu para a imprensa


No debate ao vivo, Roseli Fischmann comentou que a imprensa tem demonstrado dificuldade de tratar do acordo. A professora relembrou que em maio de 2005, durante a visita do Papa Bento XVI, mesmo com o posicionamento crítico em relação ao tema, publicando forte editorial em prol do estado laico e contra o sigilo que vinha cercando a negociação, a Folha de S.Paulo abriu espaço para a Igreja Católica manifestar-se a cada nova polêmica, como também os defensores do estado laico, o que favoreceu o debate no jornal e na sociedade. Roseli comentou que embora fossem poucos os veículosa que tivessem se envolvido nesses momentos, imprensa trouxe importantes vitórias para a cidadania ao mobilizar a sociedade na discussão da implantação do feriado nacional por conta da canonização de frei Galvão, que foi rejeitado pela Câmara dos Deputados depois de aprovado no Senado, exatamente por esse debate público; e sobre um projeto ligado ao ensino religioso nas escolas paulistas, vetado pelo governador José Serra, depois de aprovado na Assembléia Legislativa de Sâo Paulo.


Dines pediu ao representante da CNBB esclarecer se a Constituição brasileira é secularista. Hugo Sarubbi Cysneiros comentou que a Carta Magna invoca Deus em seu preâmbulo, mas é laica. O Estado não é ateu nem professa uma religião específica. O advogado ressaltou que o projeto de acordo entre a Santa Sé, como pessoa jurídica de Direito Internacional Público, e o Estado brasileiro não privilegiou a Igreja Católica, mas respaldou o estatuto jurídico desta religião.


O Estado brasileiro vê no laicismo positivo ‘um caminho’ e reconhece na religião e na crença ‘algo que faz parte do ser humano’ e que pode ser exercitado pelos cidadãos como um Direito. Dines ponderou que a citação a Deus no preâmbulo da Constituição não chegou a ser uma profissão de fé religiosa, foi apenas uma intervenção pessoal do então presidente José Sarney. Não comprometia o caráter secular que previa a separação entre o Estado e as crenças religiosas.


O acordo é constitucional?


O reverendo Guilhermino Silva da Cunha acredita que a separação entre Igreja e Estado é ‘absolutamente saudável’ e preserva a liberdade religiosa. De acordo com o religioso, esta separação foi preconizada pelo próprio Jesus Cristo na Bíblia, ao dizer, por exemplo, ‘meu reino não é deste mundo’ entre outras passagens. O pastor afirmou que os dois Estados que celebraram o acordo envolvendo apenas uma expressão religiosa atacam frontalmente a Constituição no Artigo 19 porque este proíbe alianças entre o governo e cultos religiosos ou igrejas. ‘A celebração do acordo fere nosso diploma legal maior. Não apenas agride as expressões religiosas, como também fere a Constituição’, criticou. O reverendo tem esperanças de que o Congresso Nacional não referende o acordo.


‘Mesmo que existisse um único cidadão de outra religião ou ateu ele teria todo o Direito de exercer sua escolha’, disse Roseli Fischmann. O Estado laico tem o dever de preservar o Direito de todos independente do número de pessoas que optem por determinada crença. A professora frisou que o Brasil apresenta um grande pluralismo religioso e que, por isto, é inaceitável um acordo internacional com uma única religião. Neste caso, as demais estão sendo preteridas. ‘O Estado precisa proteger para que todos se sintam respeitados’, avaliou.


Dines comentou que a Santa Sé queria ‘abafar’ o acordo sem a ‘oxigenação de uma sociedade democrática’. O representante da CNBB não concorda que a sociedade tenha sido ludibriada nem que a Igreja seja manipuladora. ‘O sigilo não foi a bandeira, não foi o meio nem o fim do tratado’. O advogado considera que falar em sigilo de um tratado internacional em um país com as características do Brasil é um contra-senso porque a sociedade pode examinar o teor do acordo quando este é submetido ao Poder Legislativo. Cysneiros destacou que a Constituição Federal fala de Deus em outros artigos, não só no preâmbulo.


O silêncio da mídia como sintoma


O advogado da CNBB disse que o tratado não foi firmado com a Igreja Católica e sim com a Santa Sé, que é um Estado soberano. Se, por questões históricas, as outras religiões não têm personalidade de Direito Internacional Privado, não há como estas celebrarem tratados internacionais. Para Cysneros não há privilégio da Igreja Católica em detrimento de outras religiões e o acordo não é inconstitucional.


O tratado é claro e dá estatutos à Igreja Católica no Brasil partindo de dois princípios: o respeito à Ordem Constitucional e ao Estado brasileiro e a isonomia entre todas as entidades de igual natureza. Dines argumentou que a Santa Sé é um Estado soberano, mas que é teocrático e funciona com regras específicas. O silêncio da mídia é conivente na opinião do reverendo Guilhermino Silva da Cunha, pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. ‘Quando acontece o silêncio significa que há algum entendimento ou alguma coisa diferente e estranha’, avaliou.


Um telespectador perguntou a Roseli Fishmann sobre o ensino religioso nas escolas. A professora explicou que muitas vezes confunde-se o papel das instituições. Principalmente em tempos de violência, quando se considera que o ensino de religião pode combater a criminalidade. A questão da religião é vinculada à consciência de cada indivíduo. Já a escola deve preparar as crianças para respeitar os indivíduos como cidadãos livres e iguais sem precisar recorrer a qualquer figura sobrenatural.


A questão das concessões de rádio e TV


Para o reverendo Guilhermino Silva da Cunha, a presença das demais igrejas na mídia não é diferente da presença da Igreja Católica. O pastor não é contra a entrada das igrejas na mídia televisiva, mas reprova o excesso. Como o telespectador tem o poder de mudar de canal, o grande número de programas religiosos não chega a ser ‘uma invasão’. O pastor ressaltou que todas as igrejas pagam altos valores tanto para alugar tempo nos canais privados quanto para manter uma concessão. Na visão do reverendo, a existência de um canal de televisão que ganhe força e vire uma rede em todo o país cria um contra-ponto ao monopólio da comunicação, que é ‘um desastre’.


Dines pediu a opinião de Roseli Fischmann sobre o ‘gerenciamento de privilégios’ no Brasil. A professora ressaltou a laicidade como o fundamento da democracia no país: ‘Não existe democracia se as pessoas não estiverem todas igualadas’. As minorias religiosas são uma das faces visíveis do pluralismo, que é essencial para a democracia. O Estado não pode ser nem ausente nem omisso para as minorias ‘não se encolherem e deixarem o campo público’. Se um determinado grupo é privilegiado, as minorias tendem a se retrair.


Perfil dos convidados


Hugo Sarubbi Cysneiros é advogado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É professor das disciplinas de Sistemas de Direito Comparados e de Direito Internacional Público do UniCeub/DF.


Roseli Fischmann é pesquisadora e professora, coordena a área de Filosofia e Educação da Pós-Graduação em Educação da USP e o Grupo de Pesquisa Discriminação, Preconceito, Estigma da universidade. Integrou a Comissão Especial sobre Ensino Religioso do Estado de São Paulo.


Rev. Guilhermino Silva da Cunha é pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. Doutor em Ministério pelo Reformed Theological Seminary (Estados Unidos) e Doutor Honoris Causa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil.


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Barriga coletiva ou autocensura?


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 487, no ar em 25/11/2008


O que é um ‘furo’ no jargão jornalístico? É uma informação exclusiva. ‘Barriga’ é o contrário: quando um jornal ou jornalista deixa de dar ou deturpa uma notícia. Não existe um termo específico para uma situação insólita, a barriga coletiva, quando o conjunto de veículos esconde uma informação.


Esse embargo noticioso ou autocensura aconteceu há pouco, em 12 e 13 de novembro, quando o presidente Lula foi a Roma assinar um acordo com o Vaticano. Como esta concordata infringe o espírito e a letra da carta magna, governo e mídia acharam perfeitamente natural manter este acordo sob sigilo.


E como se explica a ausência de protestos da mídia eletrônica evangélica? Simplesmente porque a mídia eletrônica evangélica tem sido privilegiada pelo governo de outras formas. Significa que no lugar de seguir a constituição e estabelecer completa separação entre estado e religião, o Brasil inventou uma forma original de administrar o conflito religioso, oferecendo vantagens às confissões religiosas mais poderosas.


E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um estado democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras confissões religiosas afro-brasileiras, como o Candomblé, não deveriam entrar no bolo de privilégios?


Estamos na contramão do mundo desenvolvido e nossa imprensa, esquecida dos três séculos de censura absoluta antes de ser autorizada a funcionar, teve um surto de saudosismo e voltou a experimentar as delícias da autocensura.


 


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