Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rui Araújo

‘As notícias sobre o julgamento de um militar da Guarda Nacional Republicana motivaram alguns protestos legítimos e pertinentes.

‘Às 17:43 de dia 4 de Junho de 2007, o Público on-line publicou a seguinte notícia:

‘Início da primeira audiência – Serial killer de Santa Comba Dão declara-se inocente em julgamento’ (04.06.2007 – 17h43 PUBLICO.PT).

Dispenso-me de invocar normas constitucionais e legais para demonstrar que no direito português vigora o princípio segundo o qual todos são considerados inocentes até que transite em julgado uma decisão judicial condenatória.

A notícia do Público viola claramente este princípio ao designar o arguido como ‘serial killer’, na medida em que esta expressão pressupõe estar demonstrada a culpabilidade da pessoa em causa.

Trata-se, portanto, de uma notícia difamatória, que poderá eventualmente consistir em ilícito criminal do jornalista que a escreveu e gerar a sua responsabilidade civil perante a pessoa difamada. Isto para já não falar da responsabilização do próprio jornal, que certamente seria efectivada em países onde a liberdade de imprensa, por ser mais seriamente vista como um direito fundamental, também é seriamente castigada quando é mal usada para violar os direitos fundamentais dos outros.

Mais tarde, praticamente em simultâneo com a publicação de um comentário do leitor A. Pires, de Lisboa, o título da notícia foi alterado, passando a ser o seguinte:

‘Acusado de assassino em série de Santa Comba Dão declara-se inocente em julgamento’.

A hora da notícia, contudo, continuou a ser a mesma (17:43), como se fosse esse o seu teor original. Mais: nenhuma menção se fez à alteração efectuada. O PÚBLICO não admitiu o erro. Pretendeu escudar-se na volatilidade da informação on-line para fazer parecer que nada se tinha passado. Talvez ainda pior: ao alterar o título e simultaneamente publicar o comentário que esteve na origem dessa alteração sem fazer mais comentários, o PÚBLICO podia até fazer parecer que o leitor/comentador que alertou para o erro tinha lido mal a notícia e estava a fazer uma acusação infundada ou mesmo eventualmente mal intencionada.

Simplesmente, o Público esqueceu-se de alterar o resto da notícia. Assim, o primeiro parágrafo desta continuou a chamar ‘serial killer’ ao acusado. À hora a que escrevo continua no site, aliás acessível a partir de um ‘link’ na página da notícia a que me refiro acima, uma outra cujo título continua a ser ‘Assassino em série de Santa Comba Dão: ex-cabo da GNR nega crimes e diz que foi coagido pela PJ a confessar’.

São agora 20:56 de dia 4 de Junho de 2007. Ignoro se o Público on-line continuará a alterar sub-repticiamente os textos das notícias. Quando este e-mail for lido pelo Senhor Provedor não sei mesmo se restará ainda algum vestígio desta espantosa sucessão de atropelos jornalísticos aos direitos fundamentais das pessoas e à inteligência dos leitores. Mas não poderia deixar de transmitir-lhe este desabafo de leitor que, desiludido com a sucessão de coisas deste estilo, passou da versão em papel do Público para a versão on-line e que se prepara para renunciar mesmo a essa’, escreve André Matos, um leitor de Lisboa.

‘‘Serial killer de Santa Comba Dão declara-se inocente em julgamento’ in Público, edição online, 4 Junho 2007.

‘Princípios e normas de conduta profissional:

5 – (…) A necessidade de qualificar acontecimentos, organizações ou pessoas não deve ser confundida com juízos de valor’, in Livro de Estilo (Público) Edição de Fevereiro de 1998.

Isto dispensa comentários’, escreve João Marques, um leitor da Região Administrativa Especial de Macau.

Eis o comentário (apresentado no Público on-line) do leitor A. Pires, de Lisboa: ‘Será jurídica e deontologicamente correcto chamar a alguém ‘serial killer’ antes de essa pessoa ser condenada por sentença transitada em julgado? Não acredito que o autor desta notícia não saiba o que é a presunção de inocência. A incompetência jornalística tem limites e no Público estão a ser ultrapassados diariamente. A menos que seja um esforço intencional para se converter num jornal populista de extrema-direita.’

As dúvidas e as críticas são acertadas.

Solicitei, portanto, um esclarecimento a António Granado, editor do Público on-line.

‘O Público corrige os seus erros e não insiste neles quando percebe que errou. Essa é a atitude correcta que devia ser sempre seguida por qualquer órgão de comunicação social. Acontece que, ao contrário dos jornais, os meios electrónicos podem fazer essa correcção de imediato. Foi exactamente o que fizemos neste caso, depois da chamada de atenção do leitor. É o que faz a rádio e a televisão todos os dias. Sem necessidade de assinalar a correcção de um noticiário para o outro, corrigindo apenas. No caso do PÚBLICO.PT, não precisamos de escrever outra notícia, até porque, se o fizermos, estamos a deixar na base de dados do jornal uma notícia certa e uma errada o que, dentro de anos, e mesmo actualmente, é extremamente perigoso, pois ficamos sem perceber o que está certo e o que está errado.

Quanto ao comentário do leitor, ele foi erradamente publicado. Aliás, a prática correcta está descrita nos Critérios para Publicação de Comentários, disponíveis em http://www.publico.clix.pt/homepage/site/contactos/criterios/Comentariosartigos.asp : ‘Por regra devem ser publicados os comentários que criticam a nossa abordagem noticiosa. São excepção os casos em que essa crítica se refere a um aspecto que pode e deve ser corrigido (ex.: um erro ortográfico ou em matéria de facto.) Não teria sentido manter o erro na notícia após a sua detecção e não teria sentido publicar o comentário uma vez a correcção realizada.’

Como é evidente do que acabo de dizer, foi um erro chamar ‘serial killer’ ou ‘assassino em série’ ao alegado homicida de Santa Comba e foi um erro não efectuar todas as alterações sugeridas pelo leitor’, respondeu António Granado.

As explicações estão dadas: O Público errou e reconheceu o erro, mas é importante recordar algumas regras do Livro de Estilo.

1- ‘O direito ao bom-nome e a presunção de inocência até condenação em tribunal são escrupulosamente garantidos nas páginas do Público’ (Livro de Estilo, página 26).

2- ‘O Público recusa participar em campanhas de descrédito e contra-informação, lesivas dos direitos da defesa ou que tenham como objectivo perturbar a investigação e influenciar quem acusa ou quem julga.’ (ibidem, página 26)

3- ‘As pessoas sob acusação criminal não provada são sempre tratadas como ‘acusadas’ ou ‘suspeitas’ (nenhuma referência deve confundir ‘suspeita’ com ‘culpa’).’ (ibidem, página 89).

4- ‘A função do Público não é julgar.’ (ibidem, página 26).

Existem, por outro lado, ‘normas constitucionais e legais para demonstrar que no direito português vigora o princípio segundo o qual todos são considerados inocentes até que transite em julgado uma decisão judicial condenatória.’

Os jornalistas não são juízes e muito menos justiceiros. E os factos são sagrados…’