Há um mês morria o jornalista Getúlio Bittencourt. Durante meses ele lutou contra um câncer que se instalara em seu pulmões e no cérebro.Tinha 57 anos.
‘Getulinho’ – como o chamavam na redação da Folha, devido à sua baixa estatura – foi um jornalista singular. Acima de tudo, era vocacionado. Inteligente, possuidor de uma cultura geral acima da média, era dotado de inata memória auditiva. Seu cérebro era um verdadeiro gravador. Era capaz de ‘gravar’ longos diálogos e reproduzi-los com perfeição.
Mineiro, recém-vindo de sua cidade natal, Governador Valadares, a excelência de seus textos logo chamou a atenção das chefias do jornal. Rapidamente foi transferido para a Redação da Folha.
Fala mansa, boa conversa, educado, logo soube conquistar preciosas fontes de informação, sobretudo na política, numa quadra difícil da vida nacional, nos anos 1970. De repórter, foi promovido a editor de política. Em seguida tornou-se repórter especial.
Vivi com ele e com o também saudoso Leleco, Haroldo Cerqueira Lima, um dos episódios jornalísticos mais importantes do período militar: a célebre entrevista do general João Baptista Figueiredo, que valeu a ambos o Prêmio Esso.
Naquele lugar
Corria o mês de abril de 1978. Eu, então editor-responsável da Folha, recebi um telefonema de Brasília confirmando para o dia 4 a entrevista que pedira ao general Figueiredo, então já ungido sucessor de Ernesto Geisel. Na falta de Ruy Lopes, de férias, decidi enviar Getulinho para, em parceria com Leleco, entrevistar o futuro presidente. Pedi a ambos que gravassem a entrevista para evitar qualquer mal-entendido, que, naqueles tempo bicudos, podia custar caro.
Terminada a entrevista, Getulinho e Leleco me disseram por telefone que Figueiredo ficara muito irritado. Por algum equívoco de sua assessoria, supunha que eu faria a entrevista. O general decidiu, então, transformar a entrevista numa conversa que poderia ser publicada. Proibiu tanto a gravação quanto as anotações. Exigiu que os gravadores (eu havia recomendado que levassem dois aparelhos) ficassem sobre o sofá.
Na volta à Redação, Getúlio usou sua prodigiosa memória. Ele e Leleco ‘reproduziram’ a conversa, que durara mais de hora e meia. Concluído esse trabalho, exausto, Getulinho atirou-se num sofá e dormiu.
À medida que o diálogo ia sendo reconstituído, perplexo, eu recebia em São Paulo trecho por trecho da reportagem. Em linguagem grosseira, Figueiredo se desnudava perante o país. Mesmo sabendo dos riscos, decidi publicar a entrevista.
Dois dias depois, recebo um telefonema irado do quase presidente Figueiredo. Ele se dizia traído por Getúlio e Leleco porque, segundo ele, a conversa havia sido gravada. Retruquei, lembrando que, a pedido dele, os gravadores, desligados, tinham ficado sobre o sofá. E que Getúlio tinha memória auditiva. ‘Memória auditiva nada. Ele estava com um gravador enfiado no c…’, disse Figueiredo, desligando o telefone.
Recomendação dos astros
A repercussão da entrevista foi enorme. Certamente contribuiu para que se conhecesse melhor aquele que seria nosso presidente. E seguramente ampliou o horizonte do tratamento que a imprensa dispensava aos governos militares.
Catapultado para a fama, da Folha, onde chegou em 1975, Getúlio foi para a revista Veja em 1979, trabalhando em São Paulo e em Brasília. Em 1983, contatado pela Gazeta Mercantil, foi editor de política e editor sênior. Em 1987, convidado pelo presidente José Sarney, Getúlio Bittencourt assumiu a Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Enfastiado com os hábitos da política palaciana, foi nomeado para a presidência da EBN, a Empresa Brasileira de Notícias.
Com Sarney, Getúlio tinha dupla função: a de secretário de Comunicação e a de astrólogo. Nunca entendi essa faceta do jornalista. Ele classificava astrologia como ciência.
Getúlio conta num de seus livros, À Luz do Céu Profundo, que provocou a mudança do horário da sessão do colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves. No hora prevista inicialmente, os astros apontavam a possibilidade de uma vitória de Paulo Maluf. Getúlio levou sua preocupação a Thales Ramalho, que, autorizado por Tancredo, conseguiu negociar a mudança do horário, conforme ‘recomendavam’ os astros.
Getúlio Bittencourt, de volta à Gazeta Mercantil, passou 11 anos como correspondente nos EUA. Em seguida, de 2001 até o ano passado, dirigiu a Redação do DCI – Diário do Comércio e Indústria. Seu último trabalho foi na edição brasileira da Harvard Business Review.
Aqui deixo um pequeno registro sobre Getúlio Bittencourt, o pequeno notável.
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Jornalista, âncora do Jornal da Noite, da Rede Bandeirantes; foi editor-responsável da Folha de S.Paulo (1974-1976 e 1977-1984).