Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Talhados por Talese

Escreva em poucas horas um perfil de Gay Talese usando a técnica ‘talesiana’. Ou seja, um perfil que prescinda de entrevista (como seu clássico ‘Frank Sinatra está resfriado’), capte o ambiente e contemple a periferia dos acontecimentos. Este foi o desafio proposto ao tarimbado jornalista (e escritor) Arthur Dapieve e ao estudante de jornalismo Guilherme Amado. Dapieve, que dias atrás conduziu um encontro com a estrela americana no Instituto Moreira Salles, abstrai-se da entrevista e concentra-se no jantar que a seguiu, quando travou contato com um Talese entrevistador, que respira seu ofício com gozo, homem-pauta, ávido por conhecer detalhes da vida (extra)ordinária dos outros, do Brasil, dos jornais. Guilherme, aspirante a voos talesianos, vale-se da observação atenta dos passos do cânone durante a festa de Paraty para extrair-lhe um talho de essência. (Arnaldo Bloch)

Gay Talese levou cinco semanas para apurar e seis semanas para escrever um perfil de Frank Sinatra.

Eu tive cinco horas para apurar algo – algo que, aliás, eu ainda não sabia que estava apurando – e menos de 24 horas para escrever um perfil de Gay Talese. Como se sabe, e essa é parte da graça imorredoura do texto, Sinatra não lhe dirigiu a palavra. No palquinho do Instituto Moreira Salles, na noite da última quarta-feira, tive oportunidade de fazer seis ou sete perguntas a Talese. Duas minhas, as outras da plateia. No breve encontro antes do encontro e no jantar a seis que a ele se seguiu, Talese me fez umas 273 perguntas.

O que você faz para viver, além de escrever? Você escreve basicamente sobre o quê? Você assiste a futebol só pela TV ou também vai aos estádios? De qual cidade da Itália o seu bisavô veio para o Brasil? O que ele fazia? E o seu avô, vivia do quê? Onde trabalhou seu pai? Ele frequentou uma universidade? Você frequentou uma universidade? De quê? Você teve bolsa? Você tem filhos? Quantos anos ela tem? O que quer fazer? (…)

Talvez seja um modo de deixar bem claro quem é o verdadeiro repórter ali. Como se fosse necessário. Não se trata de nenhum privilégio meu. Todo mundo que passa mais de dois minutos perto de Gay Talese é entrevistado, sabe-se lá com qual propósito, se é que há algum. Em Vida de escritor, livro recém-lançado no Brasil, a certa altura ele se gaba de ter entrevistado ANTES um coleguinha que pretendia entrevistá-lo para o The Crimson White, o jornalzinho da Universidade do Alabama, no qual o próprio Talese trabalhara.

(…) Qual é a grande história na primeira página dos jornais brasileiros hoje em dia? O que tem de tão especial no seu Senado? Lula é mesmo tão popular quanto parece? E qual é a grande história que está rolando nas páginas de cultura? Qual o tratamento que os jornais dão à China? Quais as relações do Brasil com a China? O Iraque ainda dá primeira página? E o Afeganistão? E o Irã? Ele sai na primeira página dos jornais brasileiros? Estava prevista uma visita de Ahmadinejad ao Brasil? Por que ela não aconteceu? Por causa das eleições? Qual o tratamento dado a Israel? Cauteloso? (…)

Bordão cômico

É muito coerente. Gay Talese costuma citar a curiosidade como a primeira característica de um bom jornalista. Ele, claro, é o seu modelo mais bem acabado. É raro uma frase sua, mesmo durante uma conversa, não terminar num ponto de interrogação. E a maior parte das que não se encerram com um ponto de interrogação são apenas uma recapitulação do que lhe foi dito na resposta imediatamente anterior. Repórteres perguntam, não afirmam, a não ser com base em fatos, Gay Talese parece nos relembrar a todo instante.

(…) O Brasil tem problemas com seus vizinhos? Que tipo de problemas? O que vocês acham de Hugo Chávez? Mas você realmente acha que é possível confiar em alguém? Lula também tem veleidades de se tornar o líder da América Latina? Como são as relações do Brasil com Cuba? O que vocês acham de Fidel Castro? Vocês já estiveram em Cuba? Por que não? Aonde vocês gostam de ir quando saem de férias? Itália? França? Portugal? O idioma português lá é falado de modo bem diferente do que aqui, não? (…)

A segunda característica de um bom jornalista, de acordo com Gay Talese, é ter um texto tão bom quanto o melhor texto de literatura. Porém, não são apenas os seus textos postos no papel que são tão bons quanto a melhor literatura, não são apenas os seus perfis de Frank Sinatra, Joe DiMaggio, Joe Louis e outros ícones americanos que são tão bons quanto a melhor literatura. O sujeito também é mestre de papo. No Instituto Moreira Salles, por exemplo, o modo como ele reconta o seu périplo atrás de Sinatra é sedutor e engraçado.

O nome de Johnny Delgado, dublê-quase-sósia do cantor, é repetido como bordão cômico.

(…) Quem é a mulher mais poderosa do Brasil? Ela é a candidata preferida de Lula à sua sucessão? Qual o problema de saúde dela? Isso leva a uma discussão sobre o vice, certo? E quem é o negro mais poderoso do Brasil? Gilberto Gil? Pelé? Outro jogador milionário? Vocês não têm uma Oprah? Um negro não seria eleito presidente aqui? Nem depois de Obama? Quantos correspondentes brasileiros há em Washington? Quais jornais os mantêm lá? Que histórias eles procuram? Onde estão os outros correspondentes? Eles fazem rodízio em seus postos? Algum está na mesma cidade há mais de dez anos? (…)

Olhos verdes

A lendária elegância de Gay Talese tem uma clara explicação.

Ninguém é filho de alfaiate impunemente. Ele chega a se preocupar se o aparelho de tradução simultânea vai ou não vincar o bolso direito de seu paletó cinza. Menos claras são as razões por que ele não sabe nadar, tendo nascido em Ocean City. Algo a ver com temores herdados do pai. Menos claras são as razões por que o filho de dois calabreses não se interessou em aprender o idioma dos pais. Só em sua primeira visita à aldeia da família, Maida, Talese se lembrou, dos tempos em que via o pai feliz nos restaurantes italianos de Nova Jersey, que Talese não se falava ‘Talise’. Menos claras são as razões por que não toma vinho. No nosso jantar, ele começa por um ou duas gins-tônicas e arremata com uma garrafinha de cerveja.

(…) Onde é produzida esta cerveja brasileira? Isso fica na Região Norte? Como é o sistema de saúde aqui? Há um sistema público eficiente? Há alguns centros públicos de excelência, mas não muitos, é isso? Você tem plano privado de saúde? E você? E você? Quem são os seus uigures? Quem é a minoria que pode sair às ruas daqui para protestar? Há quanto tempo vocês estão casados? Onde vocês se conheceram, na redação do jornal?

A mulher dá a base do perfil do homem. E vice-versa. Na conversa, a editora Nan A. Talese faz um suave contraponto à saraivada de perguntas disparada pelo jornalista Gay Talese.

Se ele não está nada mal para 77 anos, ela é uma bela mulher de 75. Seu inglês é distinto do falado pelo marido, simples reflexo do fato de ela ter sido bem-nascida, numa família firmemente estabelecida nos Estados Unidos, não numa casa de imigrantes, em cima da loja de roupas dos Talese. Ela conta da vez em que teve um abscesso no dente em Cuba ou quando teve de ir ao programa de Oprah defender um autor acusado de fraude. Enquanto seu marido fala em público, ela supera aquelas outras 250 pessoas da plateia em matéria de embevecimento. Arregala os grandes olhos verdes, ri de passagens ou piadas que já deve ter escutado 1.773.082 vezes. Observando-a, então, sou eu quem me pergunto: minha mulher ainda rirá das minhas piadas quando tivermos 50 anos de casados?

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Entrevista com um chapéu

Guilherme Amado 

Depois de falar para a Flip, a figura em forma de Panamá, paletó bege claro, camisa branca e gravata creme teve que ser escoltada por 500 metros até o cortejo de ávidos por autógrafo, o que manteve a roupa intacta. Só assinaria os livros, sem ter que acrescentar, exemplar a exemplar, também os nomes dos leitores. A assessora de imprensa escolhia qual página receberia um rabisco de sua mão direita, escolhia os ângulos das fotos, apressava os leitores, administrava os que se acotovelavam para beijar a mão do homem. Os que dali saíam sacudiam, braços orgulhosos, os livros no ar, esbanjando a Paraty as nove letras em tortos garranchos: Gay Talese.

Adepto do mantra ‘ordinary people can be extraordinary’, Talese, de resto, tentou relaxar o ar globalizado, de quem leva no nome um pouco da Calábria e um tanto de Nova York, e se tornar um anônimo, capaz de ser confundido com os caiçaras, índios, quilombolas e flipeiros que se equilibravam nos pés-de-moleque. Não teve sucesso: o chapéu acusava e, mesmo sem se entocar como os Lobos e circular entre mortais, era sempre interrompido. Quando estava com ele, Nan, a mulher, lhe servia de filtro, abord(t)ando com um simpático ‘ Can I help you?’ os mais sedentos por aproximar-se do autor de A mulher do próximo.

Mas Talese não se fazia de rogado, homem que incorporou o trabalho como ninguém, talvez por ter crescido ouvindo o pai criticar os colegas por perderem as tardes jogando futebol na praça, enquanto o velho alfaiate aproveitava o tempo para aprender a arte da costura. Disfarçando o cansaço, afastava o paletó para apoiar o braço na cintura com mais liberdade. Mas não parava. A todos respondia (e, principalmente, perguntava) tudo, e dava conselhos a estudantes mareados com a queda do diploma. Só olhava torto para quem ligava o gravador, usurpador da atenção do repórter e da espontaneidade do entrevistador. Só lá pelas tantas pediu um ‘taxi cab’, apegado que é aos dizeres bem talhados, como suas roupas.

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Jornalista