Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

“Não há personagem sobre
o qual eu não escreveria”

A constatação é de um dos principais biográfos do país, o escritor e jornalista Fernando Morais. Autor de vasta obra iniciada em 1976, quando sob a ditadura militar publicou A Ilha, um dos maiores sucessos editoriais do país, Fernando também trouxe ao grande público a trajetória de personagens como Olga Benário e Assis Chateubriand, entre outros.


Seu último trabalho, O Mago, sobre a vida do escritor Paulo Coelho ocupa atualmente a lista dos mais vendidos. Agora ele escreve um novo livro, desta vez sobre a saga de cinco patriotas cubanos presos e condenados nos EUA.


Nesta entrevista, além de falar sobre seu trabalho como escritor e jornalista – Fernando explica como se dá a escolha de seus personagens e adianta que o método muda segundo o biografado –, conta também sobre sua incursão no mundo da política a partir de 1978, quando elegeu-se para o primeiro de dois mandatos de deputado estadual pelo PMDB.


Do semi-anonimato a quinto deputado estadual mais votado do país, Fernando passou por dois mandatos até que em 1986, candidato a Constituinte, foi derrotado – junto a outros parlamentares da esquerda – pelo atual governador paulista José Serra. ‘Ele impediu que pelo menos dez candidatos de esquerda de São Paulo fossem para a Constituinte.’


Secretário de Cultura durante o governo Quércia em São Paulo e da Educação, na gestão Fleury, Fernando também conta como em 2002, candidato ao governo de São Paulo, pelo PMDB, largou tudo depois que foi avisado que ele (o candidato a governador) e o outro candidato ao Senado pelo partido seriam cortados no horário de propaganda na TV para que só o ex-governador Orestes Quércia aparecesse.


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O que é necessário para ser um biógrafo? Você se considera mais um escritor ou um jornalista?


Fernando Morais – O meu trabalho de biógrafo não tem absolutamente nenhuma diferença do que eu fazia quando era jornalista no cotidiano. Nenhuma. Quais as vantagens em relação ao trabalho no jornal ou aos tempos da Veja? Primeiro, eu sou o pauteiro, escolho o meu tema; segundo, sou o editor, portanto sai o que quero e não o que o dono quer; terceiro, tenho absoluta liberdade de espaço – posso ir de 100 a 800 páginas – e de tempo, posso entregar um livro para o editor em quatro meses ou em quatro anos. No caso da biografia do Paulo Coelho, por exemplo, foram quatro anos e mais de 400 horas de gravação; 110 entrevistas, além da que fiz com ele.


O meu trabalho é um trabalho jornalístico. Considero a qualidade dos meus livros superior ao trabalho que fazia na imprensa porque tenho tempo, reescrevo dez a vinte vezes cada parágrafo. Cada vez que releio um texto na tela do computador, eu melhoro. Agora, todos os meus livros poderiam ser publicados num jornal ou numa revista.


‘O Brasil é ótimo, falta gente para contar isso’


E os personagens, Fernando. Como se dá esse processo de escolha e de pesquisa?


F.M. – Num país com uma histórica riquíssima como a do Brasil, não falta personagem. O Darcy Ribeiro (antropólogo, ex-senador do PDT-RJ) tem uma frase ótima que todos os escritores deveriam colocar na tela dos seus computadores: ‘O Brasil é ótimo, o que falta é gente para contar isso’. Gosto muito do período que vai da Proclamação da República, passa pela Revolução de 30 e chega até a deposição de Getúlio Vargas em 1945. Você tem personagens fascinantes como Pinheiro Machado, e como o general Setembrino de Carvalho, conhecido como Mata Cachorro, escolhido para reprimir todos os movimentos sociais do Brasil. Gosto de Canudos à Coluna Prestes, passando pela Guerra do Contestado (Santa Catarina). Personagens e fatos não faltam.


Se não fosse esse livro que estou escrevendo [a respeito dos cinco patriotas cubanos] faria um sobre a República de Princesa. Veja só, uma cidade no sertão da Paraíba, na fronteira com o Rio Grande do Norte, decretou sua independência em fevereiro de 1930. Fez Constituição, hino e dinheiro próprios. A República de Princesa durou oito meses porque veio a Revolução de 30 e passou por cima da cabeça deles. Imagine se não fosse a Revolução de 30! Eram dois mil jagunços armados liderados pelo Zé Pereira – que deu até a música de carnaval: ‘Viva o Zé Pereira, viva o Zé Pereira que a ninguém faz mal…’. Depois ele foi homenageado pelo Luiz Gonzaga num xote. Na realidade, eu estava pesquisando esse tema quando surgiu a oportunidade de escrever sobre os cubanos.


Portanto, a escolha de um personagem não é um negócio tão difícil no Brasil. Nos Estados Unidos talvez seja. Você entra numa livraria, na parte de biografias, só da Jacqueline Onassis tem 23 biografias diferentes. Imagine do marido, do Kennedy, que foi presidente, deve ter umas 200. Num país como os EUA deve ser difícil a escolha dos personagens, mas num país como o nosso, eles estão todos por aí.


E quanto a apuração das fontes, as entrevistas, o seu trabalho de pesquisa?


F.M. – A apuração varia muito, principalmente se o biografado está vivo ou não. O Paulo foi a primeira experiência de escrever sobre uma pessoa viva, o que não é bom desse ponto de vista. O livro está vendendo no mundo inteiro, primeiro lugar na Hungria, na República Tcheca, nos EUA. Passei nas livrarias do aeroporto de Miami e O Mago estava lá. Mas é muito difícil você fazer a biografia de um sujeito vivo exatamente pelo fato de que ele está vivo. Como dizia o Prestes aos 90 anos, quando eu tentava biografá-lo: ‘Ainda posso errar muito nessa vida’.


O método, primeiro, é pegar as testemunhas mais velhas, porque cada dia que passa morre um. Para escrever Olga, eu fui para a Alemanha Oriental pegar o pessoal comunista que tinha sido companheiro dela e todos tinham mais de 90 anos. Então, você entrevista os personagens mais velhos, e vai atrás de fontes documentais onde tiver – museus, arquivos, cartórios etc. Aí, com todo esse material em mãos, começa a escrever. E vale a máxima: Washington Luis dizia que governar é abrir estrada; já Machado de Assis dizia que escrever é cortar palavra. Eu estou mais para o Machado de Assis.


O curioso é que dessa vez, com o livro sobre os cubanos, depois de 30 anos como autor, estou fazendo uma nova experiência: pesquisando e escrevendo ao mesmo tempo. Passei três semanas em Havana, e três em Miami, nesta, no meio da extrema direita. Voltei e já estou escrevendo. Tenho mais duas viagens para fazer, uma para Miami, outra para Havana e vou visitar duas prisões de segurança máxima nos EUA (onde estão presos os cubanos).


Muda a personagem, muda a metodologia


Você tem contato com todos os cubanos presos?


F.M. – Já conversei com três (dos cinco) deles por telefone e estou entrevistando um pela internet. Tenho falado muito com eles. O Gerardo Hernández, inclusive, condenado a duas prisões perpétuas, na primeira vez que conversei por telefone, falei: ‘E aí doutor? Estou te esperando com um mojito no Malecon (Havana)’. E ele respondeu: ‘Me espera no Rio de Janeiro com uma caipirinha’. O cara com duas perpétuas…


Então estou agora, pela primeira vez, tendo essa experiência de escrever e pesquisar ao mesmo tempo. Isso significa que terei que mexer mais ainda nas coisas já escritas, porque sempre entra informação nova, fulana diz ‘aquela tarde, não foi aquele dia, mas três meses depois’. Isso desmonta tudo o que você fez. Na realidade, não tenho uma metodologia de trabalho, nem poderia dar uma aula aqui de como fazer, mesmo porque o processo muda de personagem para personagem. Vou fazer uma biografia sua, por exemplo… É completamente diferente de fazer a biografia do Paulo Coelho ou do marechal Montenegro [Casimiro Montenegro Filho]. Muda a personagem, muda a metodologia.


Qual a diferença no trabalho entre retratar um país, como você faz em seu livro A Ilha (Cuba), ou uma pessoa…


F.M. – O livro A Ilha [publicado em 1976] mudou a minha vida. Não era para ser um livro, mas uma série de reportagens publicadas na (extinta) revista Visão. O dono (Henry Maksoud) não concordou e em seguida mandou o diretor que era o Roberto Muylaert me demitir. Um cara com enorme capacidade. Eu saí, levei a reportagem comigo e, aí, matam o Vlado [Vladimir Herzog], com quem eu trabalhava na Visão. Eu havia trabalhado com ele na TV Cultura, em 1970, ele era chefe de reportagem à tarde e eu de manhã. Quando fui para a Visão, ele era o editor de cultura e fui ser repórter primeiro de política, depois de cultura.


O Vlado quando voltou para a TV Cultura (quando foi assassinado no DOI-CODI) indicou-me para o lugar dele, para ser editor de cultura da Visão. Com sua morte, percebi que não poderia publicar minha reportagem (sobre a Ilha), mas aí havia outro problema. Os órgãos de segurança sabiam que eu tinha ido à Cuba, mas não sabiam o que eu tinha feito por lá. Imaginavam que minha viagem era para ter contato com vocês (que estavam exilados em Havana) – para levar e trazer coisas. Então, em minha própria defesa, precisei publicar o livro, mesmo sob a ditadura. E o Vlado tinha sido morto. Enchemos três kombis, levamos o livro ao sindicato e os 3 mil exemplares venderam na noite do lançamento. A Ilha ficou 150 semanas em primeiro lugar na lista dos mais vendidos e, principalmente, me mostrou um caminho novo. Eu poderia continuar sendo jornalista, mas sem ter que dar satisfação para patrão, nem gramando em redação. E também ganhando melhor.


‘Em 78, fui o quinto mais votado’


F.M. – Foi quando comecei a pensar em Olga. O meu nome que antes era pouco conhecido, mais só entre os jornalistas, passou a ser conhecido pela sociedade, sobretudo pelo pessoal da esquerda. Isso levou o MDB a me chamar para sair candidato do partido a deputado estadual em 1978.


Eu, que não era ninguém, fui o quinto mais votado, atrás do [Eduardo] Suplicy, do [Antônio] Rezk, de uma mulher que cantava música sertaneja, a deputada Nodeci Nogueira e do deputado Manoel Sala. Quatro anos depois, fui reeleito numa votação maior ainda; e depois em 1986, candidato a deputado federal, fui derrotado pelo [José] Serra. Aliás, eu sou da turma que o Serra passou o caminhão em cima. Ele foi nas cidades onde tinha deputado eleito por voto de esquerda e arrebentou conosco: comigo, com João Hermann Neto, Audálio Dantas, Darcy Passos Flávio Bierrenbach – o Flávio que denunciou isso na televisão. O Serra impediu que pelo menos dez candidatos de esquerda de São Paulo fossem para a Constituinte e dessem a sua contribuição. Eu (em 1986) não tive nem 20 mil votos, quando na eleição anterior cheguei quase nos 60 mil.


E você escreveu Olga durante esse período?


F.M. – Sim, foi aí que terminei Olga e comecei a trabalhar no Chatô, o rei do Brasil. Então, o Quércia me chamou para ser Secretário de Cultura e depois Secretário de Educação de São Paulo.


Como foi sua experiência na gestão dessas duas pastas?


F.M. – Na Secretaria de Cultura foi ótimo, deu para fazer muita coisa. O Quércia, com quem não tenho mais relações, é um governante que não tem meio termo. Para ele é sim ou não, o que é muito bom. Geralmente você pede recursos e o cara responde ‘não tem dinheiro nem pra bala da Polícia Militar’. Com ele não tinha disso. Por exemplo, em 1989 o presidente [Fernando] Collor tinha arrebentado com o cinema nacional, acabou com a Embrafilme, com tudo. São Paulo foi o único Estado capaz de levantar o cinema de nacional financiando dez longas. Na época, ele me deu R$ 20 milhões para lançar dez filmes e dar esse respiro no cinema nacional.


No Memorial da América Latina (construído por Fernando no governo Quércia) fiz quase vinte oficinas culturais para ensinar música, teatro, cinema para a criançada de baixa renda. E quem ensinava eram os maiores artistas brasileiros. Eu levava Gianfrancesco Guarnieri para dar aula de interpretação para os moleques de periferia de Ribeirão Preto; Mário Prata para dar aula de roteiro. Era uma forma, ao mesmo tempo, de dar trabalho para os artistas. Você pagava a eles, mas era de graça para as crianças.


Nesse período, eu consegui trazer até o Tom Jobim de Nova York para criar a Universidade Livre de Música. Hoje, chama-se Instituto Tom Jobim. O Tom passou um ano aqui ensinando para nós como se montava um conservatório musical gigantesco. Outro dia, ouvi um moleque tocando oboé na Sinfônica de Israel. Ele era morador de favela aqui e começou numa dessas oficinas culturais. Então, na área de cultura, minha avaliação é que foi muito bom.


E na secretaria de Educação?


F.M. – Na educação foi um desastre. No meio do caminho eu descobri que o governador [Luiz Antônio] Fleury Filho não queria fazer nenhuma revolução nesse setor, e eu não estava ali para ser chamado de excelência e andar em carro oficial. Pedi demissão e desisti.


2002: o apoio de Quércia a Lula


Você voltou a se candidatar pelo PMDB em 2002, a governador.


F.M. – Caí em tentação novamente em 2002. O Quércia me chamou para ser candidato a governador de São Paulo. Respondi que só saia se o partido apoiasse o Lula, naquele ano, candidato à presidência. Na época, o deputado Michel Temer (presidente nacional do PMDB) era da outra direção do partido, e estava comprometido com o (candidato à presidência) Serra, tanto que indicaram a deputada Rita Camata (PMDB-ES) como vice de sua candidatura.


Consegui com o Quércia, o PMDB de São Paulo, apoiar o Lula. Tanto que no dia do lançamento do meu comitê de governador estão lá você e o Lula quebrando a garrafa de champanhe no palanque.


Durante essa campanha para governador, a minha expectativa era o tempo de televisão. Eu tinha 5 minutos na hora do almoço e do jantar, uma eternidade. Como minha vida é transparente e não tenho dificuldade em falar em público, a televisão era o caminho. Eu estava com 3% a 4%, lá embaixo. Quem eram os meus adversários? Geraldo Alckmin (PSDB) e o José Genoíno (PT). Pensei: ‘Aí, eu pego os dois’. Participei de um único debate, dei uma cacetada no Alckmin – isso me valeu um processo por injúria, calúnia e difamação, que ele perdeu em todas as instâncias – e ali meu nome começou a amadurecer por causa do bate-boca que tivemos.


Então, quando faltavam cinco dias para o programa eleitoral começar (e finalmente o meu tempo de televisão), o Quércia mandou me avisar através do marqueteiro dele, o Toni Cotrim, que o horário seria dele. Ele era candidato a senador, tinha vaga para dois senadores, mas já usava o tempo do outro candidato, um laranja do ABC, deputado estadual, que topou se candidatar para dar o tempo do Quércia. Eu falei: ‘De maneira nenhuma, isso nem passa pela minha cabeça’. Primeiro, pela ilegalidade, segundo pela imoralidade comigo. Como vou dizer para a minha filha e para a minha mulher que sou candidato se não apareço? ‘Não, mas isso e aquilo…’ Então, respondi: ‘Não, estou fora’.


No dia seguinte, puseram um pastor evangélico no meu lugar para dar o tempo ao Quércia – e mesmo assim, ele perdeu a eleição, apesar de ter na TV o tempo de dois senadores e de um governador.


Eu retirei a candidatura num dia e no seguinte estava na campanha do Lula, no Rio de Janeiro, quando sugeri uma frase que acabou virando mote na campanha. A Regina Duarte tinha ido à TV (na propaganda tucana) falar que estava com medo. Nas vésperas de ir ao Rio, descobri um poema do Gilberto Freyre escrito em 1929 – nem sabia que ele escrevia poemas – muito bonito chamado ‘Um novo Brasil’ que me parece uma premonição da Revolução de 30. Esse texto caiu como uma luva na candidatura do Lula e foi uma resposta indireta à Regina Duarte. Ao invés de discursar, eu disse no encontro do Rio que daria a palavra ao Gilberto Freyre e li o poema. Terminei dizendo o seguinte: ’60 anos atrás o Gilberto Freyre já estava ensinando para nós que a esperança era maior do que o medo’.


Fui para a campanha do PT e fiquei por lá. Nunca mais me meti pessoalmente em política. De lá pra cá, fiz todas as campanhas do PT. Em São Paulo, a campanha do Genoino; depois a da Marta (Suplicy) para a prefeitura; vou à campanha da Dilma ano que vem, mas, pessoalmente, eu não quero mais.


ABC: ‘É melhor você ficar porque parece que a barra vai pesar’.


E como foi sua experiência de oito anos como deputado estadual, você cumpriu mandato em duas legislaturas.


F.M. – O primeiro mandato foi de luta contra a ditadura. Do meu tempo como deputado, devo ter passado 80% nas portas do DOPS, nas greves do ABC. Inclusive, eu estava com o Lula e o (ex-deputado) Geraldinho Siqueira, na noite em que o Exército invadiu o Sindicato dos Metalúrgicos. Naquele dia, o Fernando Henrique Cardoso tinha estado lá, nós conversamos e saímos para comer um frango em São Bernardo. Na hora de ir embora, o Fernando falou: ‘Eu vou para São Paulo’. Nós respondemos: ‘É melhor você ficar porque parece que a barra vai pesar’.


Na época, o Fernando era suplente de senador (de Franco Montoro), portanto, uma personalidade e tal. Ele fez uma análise da conjuntura ali, provando por A+B que não corríamos riscos de o sindicato ser invadido, e foi embora para São Paulo. Isso quem conta é o Lula naquele livro O Sapo e o Príncipe [do Paulo Markun]. Então, o Fernando Henrique veio embora para São Paulo e nós ficamos. Quando deu 23h, meia noite por aí, nós ouvíamos o barulho dos helicópteros. Olhamos pela janela, estava tudo cercado (pela repressão) em volta do sindicato.


Então, esse primeiro mandato foi muito rico, muito vivo. Eu levava comida no DOPS para eles, quando foram presos – Djalma Bom, Lula, José Cicote. Levávamos fruta, eu e Luis Eduardo Greenhalgh que não era deputado ainda. Na verdade, eu tinha uma relação respeitosa com o (delegado Romeu) Tuma, embora ele tivesse me prendido – eu e minha mulher – quando voltamos de Cuba pela primeira vez. Nós fomos presos na escada do avião, mas não bateram na gente, nem fomos colocados na cela. Ficamos numa cela ao lado da sala do Tuma no prédio do DOPS. Então, eu conseguia levar comida para o pessoal desde que não fosse de dia para não chamar atenção da imprensa e desde que não fosse com carro oficial (de deputado).


Já no segundo mandato, com o Montoro governador, o deputado virou uma espécie de despachante de luxo. O prefeito tem 4 mil votos, precisa ter uma audiência com o secretário de Educação, você não vai acompanhar? Agora, como eu tinha voto em todas as cidades, sem exceção, era deputado estadual, havia uma lista de prefeitos… Então, leva o prefeito e vai no secretário tal, depois em outro. Não que isso diminua alguém, mas não era o meu projeto de vida, nem com cem mil votos. Então, foi uma experiência muito frustrante o meu segundo mandato.


Fernando, dos teus biografados, é possível comparar e escolher qual foi o mais fascinante?


F.M. – Impossível. Como comparar Olga com Chateaubriand? Como comparar o Paulo Coelho com o marechal Montenegro? Quer história mais dramática do que a do Paulo? Drogas, vício, homossexualismo, missa negra, suicídio, tudo. Hospício! Moleque, o pai o internou – ele tinha 14, 15 anos – três vezes no hospício para ser tratado com eletrochoque na cabeça. Agora, você pega uma Olga, uma mulher que deu a vida por uma idéia! Ela não estava atrás de bem material, nada. Deu a vida por um ideal. Então, é muito difícil estabelecer esse tipo de comparação.


E há algum personagem interessante, mas sobre o qual você jamais escreveria? Você precisa se identificar com os biografados que escolhe?


F.M. – Não, diferentemente de outros biógrafos. O Ruy Castro, por exemplo, disse que só escreve sobre pessoas pelas quais ele tem algum tipo de simpatia, alguma afinidade. Eu já pensei, inclusive, em escrever sobre o delegado (Sérgio Paranhos) Fleury. Vou escrever sobre o Antonio Carlos Magalhães. Passei nove anos gravando com ele. Devo ter quase mil horas gravadas e ele me deu uma cópia do seu arquivo pessoal. Seguramente, Zé, tem o seu nome lá, porque ele gravava todos os telefonemas. Ligava para o presidente da República com o gravador ligado e não informava o interlocutor que estava gravando. Particularmente, eu não tenho afinidade com o ACM, estamos em pólos opostos política e filosoficamente. Então, honestamente não há personagem sobre o qual eu não escreveria.


E sobre o restaurante Piantella, de Brasília?


F.M. – Há algum tempo, estou pensando em fazer a história do Piantella porque é possível fazer esse trabalho de biografia num livro que não seja biográfico, mas sobre um episódio. Escrevi Corações Sujos [2000] que não é uma biografia. Cem quilos de Ouro [2003] e a própria A Ilha [1976] também não são. Se dependesse de mim, já teria feito o Piantella, mas o Marco Aurélio (dono do restaurante) me enrolou um pouco. Na verdade, através da história do Piantella você conta um pouco da história do país, sobretudo, a do fim da ditadura militar. Ali era o lugar onde se conspirava. Eu pretendo fazer o livro sobre o Piantella, tenho até o modelo. O (jornalista) Ricardo Boechat fez um livro muito bonito sobre o Copacabana Palace, é um livro com fotos que ao mesmo tempo você lê, tem história sobre as pessoas que se hospedaram lá, o que aconteceu, brigas e paixões. O Piantella dava um livro, guardadas as diferenças, como este.


Cinco cubanos e a luta contra o terrorismo de Miami


Conte um pouco para os leitores do blog, sobre seu livro atual, a respeito dos cubanos.


F.M. – O livro está indo bem. É uma história incrível porque são 15 caras que Cuba infiltra em organizações de extrema direita na Flórida, para combater o terrorismo partido dali contra a ilha. Eles se apresentam nos EUA como desertores, traidores da revolução cubana e cada um foi de uma maneira.


René González, por exemplo, roubou um avião em Cuba e pousou dentro da base aérea naval mais bem armada dos EUA. E, pior, com o tanque seco. Foi um negócio heróico. Ele teve que voar baixo para os radares de Cuba não o pegarem e ainda em zigue-zague porque a gasolina acabou. No momento em que viu as luzinhas de Key West, nos EUA, o tanque já estava seco, seco, seco. Ele entrou no rádio 14 da Marinha, da base aeronaval e disse: ‘Sou desertor cubano, chamo-me René González e preciso pousar’. O cara respondeu, ‘na pista tal’. Ele desceu, foi recebido como herói e começou a trabalhar. Lá foi cooptado por uma organização de extrema direita [contra os cubanos] e logo depois, cooptado pelo FBI para passar informações desta organização de extrema direita para eles.


Então, ele começa a fazer o jogo de dupla infiltração. Como ele, foram mais 14 cubanos e um não sabia do outro, apenas um que controlava todos sabia dos demais. Cada um foi de uma forma, quase todos como traidores da revolução, e houve os que saíram dentro da cota dos 20 mil vistos concedidos por ano. Os cubanos chegaram nos EUA no começo dos anos 1990, quando acabou a URSS, e Cuba entrou no chamado período especial de dificuldades muitos grandes.


Nessa fase, o país salvou sua economia através do turismo. Vendo isso, os americanos começaram a fazer atentados em Cuba, exatamente na área turística. Colocaram bomba em avião, em hotel de luxo para espantar os turistas. Você vai para o Iêmen passar férias? Não vai, tem medo. O Egito durante muito tempo passou por isso. Então, os americanos queriam quebrar a indústria do turismo de Cuba com o terrorismo, e Cuba não tinha como combater esses caras, porque eles moravam nos EUA, na Flórida e a polícia e o governo ou os apoiava ou fechava os olhos. Por isso, mandaram 15 caras para lá.


O primeiro foi em 1990 e até 1998, foram oito anos de trabalho [infiltrados em organizações de extrema direita]. Eles mandavam informações para Cuba. Por exemplo, ‘fulano de tal vai entrar dia tal vindo de El Salvador com uma televisão portátil debaixo do braço dizendo que está levando de presente para uma tia’. Os cubanos abriam a televisão e achavam 4 kg de explosivo lá dentro, de centex, de explosivo líquido e plástico.


Até que numa madrugada de setembro de 1998, o FBI e a Swat invadiram 15 casas na mesma hora, numa operação na Flórida. Cinco fugiram antes de eles chegarem, um na véspera da cana… ficaram dez. Desses, 5 fizeram acordo de delação premiada com o governo americano. Neste período já tinham informações e dedaram os outros cinco em troca de serem libertados com identidade falsa e com bolsa do governo. Até hoje, eles estão nos Estados Unidos em lugares diferentes, com nomes diferentes. Os cinco presos [Gerardo Hernández, Ramon Labañino, Antonio Guerrero, Fernando e René González] foram condenados a penas de 20 anos e a duas perpétuas. Essa é a história.


Então, o FBI estava vigiando a atividade deles antes?


F.M. – Eles estavam vigiando os caras havia dois anos. Já tinha escutas dentro das casas. Um morava num apartamento e o FBI alugou outro apartamento exatamente na frente para fotografar e ver a hora em que saía. Eles iam lá, abriam, tiravam o disco rígido do computador, copiavam e o recolocavam. Pegaram mais de 20 mil mensagens enviadas pelos cubanos, e o julgamento foi um negócio absurdo. Não há nenhuma prova, no meio dessa documentação toda, de que eles tenham espionado os EUA [o objetivo era obter informações das organizações de extrema direita que faziam terrorismo em Cuba]. Nunca pegaram nenhum documento norte-americano, nunca tiveram acesso a nenhuma informação sigilosa ou secreta, e quem diz isso foram três almirantes e um general americano ligados à Agência Nacional de Segurança. Depoimento do júri, homologado pelos advogados com testemunha de defesa dos cinco, e tudo.


Um camarada, inclusive, tinha o emprego de encanador numa base aérea americana, e o general que comandava essa base disse que ele nunca chegou por perto dos prédios que tinham informações que pudessem ser consideradas de segurança nacional. Outro cara tinha sido comandante de uma coluna de tanques em Angola e entrou nos EUA para ser professor de salsa.


Educação: o nó está no ensino de primeiro e segundo graus


Fernando, mudando de assunto, como você avalia a educação e a cultura nesses quase sete anos de governo Lula?


F.M. – Cultura deu um salto significativo. Educação, a minha esperança é que o Lula realmente use o dinheiro do pré-sal para fazer uma revolução nessa área. Não só como autor de livros, mas sobretudo tendo sido secretário do Estado com maior número de estudantes no Brasil – em São Paulo são seis milhões de estudantes e hoje deve ser um pouco menos, é a população da Dinamarca, e na época, o orçamento da Educação no Estado era de US$ 4bi – aprendi um pouco e descobri onde está o nó.


Em primeiro lugar, não é ensino superior, mas o de primeiro e segundo graus. E, principalmente, só conserta na hora em que você tiver educação em tempo integral. O projeto do (ex-governador do Rio, Leonel) Brizola era verdade – e não era do Brizola, mas do Aloísio Teixeira (educador dos anos 1950). Não tem nenhum segredo. Se você pegar todos os países que deram certo no mundo… O caso do Japão, destruído no final da Segunda Guerra e agora, segunda maior potência do mundo… Eles não têm nada de especial em relação a nós, mas num dado período gastaram 70% do orçamento em educação. Não tinham dinheiro para gasolina de viatura policial, mas tinham para educação de melhor qualidade.


A minha esperança é essa. O Lula vai pro céu se fizer isso. Pode cometer todos os pecados, mas se de fato fizer o que está prometendo, de usar os recursos do pré-sal para fazer uma revolução na educação, daqui a 500 anos quando os nossos tataranetos olharem para o Brasil e tiverem que citar um estadista, dirão que é o Lula. Mais do que o Getúlio Vargas, porque Vargas tem uma mancha na história dele: (a ditadura e) a própria Olga é um exemplo disso.


E Getúlio foi três: o revolucionário de 1930, que deu ao Brasil a condição de nação – antes o país era uma república de coronéis e barões do café; o Getúlio ditador que reprimiu tanto a esquerda – Olga é um exemplo disso – quanto a direita, como fez com os integralistas, arrancaram por exemplo unha do tenente Fournier; e o terceiro Getúlio, o nacionalista, o antiimperialista, o da Petrobras.


Foi o da Petrobras que o DEM da época (1950-1954), a UDN, tentou derrubar e que termina com o gesto heróico de dar um tiro no coração. Então, com absoluta certeza, se o Lula encerrar o seu mandato consertando a educação brasileira, vai precisar muito milênio para termos um outro estadista como ele.


Hoje, todo mundo pode ser o seu próprio Roberto Marinho.


Para fechar, como você vê o jornalismo hoje no país e a mídia como um todo?


F.M. – Um horror, uma verdadeira tragédia. Toda generalização é injusta – se você me pedir para apontar um ou outro que não esteja nesse meio, eu consigo. Agora, no geral, a imprensa e os veículos se transformaram em partidos políticos de direita, sem assumir isso. Porque se assumisse não tinha problema. Você cria uma referência. Essa é uma revista de esquerda, esse é o blog do Paulo Henrique Amorim que não gosta do Fernando Henrique Cardoso. Pronto, você já avisa ao leitor o que ele está lendo.


Se você pega uma revista como a Veja, por exemplo, ela tem todo o direito de fazer o que bem entender. Numa sociedade como a nossa, quem tem dinheiro para montar uma revista pode fazer o que quiser, inclusive não tem que ter nenhuma preocupação com a ética. Agora, esclareça o leitor que aquilo ali é um partido político, que você está defendendo interesses. Isso realmente não acontece.


Veja que isso não é de hoje. Se você pegar o Estado de S.Paulo de quando o Juscelino (Kubitschek) deixou a presidência da República, vai ver que o jornal dizia que o presidente era a quinta maior fortuna do mundo. Juscelino morreu e dona Sara teve que vender casa para pagar despesas familiares. ‘A quinta maior fortuna do mundo’, segundo o Estadão. Isso piorou de lá para cá, mas para a nossa sorte, acabou.


Eu sempre acreditei que até a democratização dos meios de comunicação seria uma luta política. Acabei descobrindo que se tornou uma conquista tecnológica. Hoje, todo mundo pode ser o seu próprio Roberto Marinho. Se você botar um notebook aqui na frente e ligar uma câmera de vídeo – custa baratinho – e falar o dia inteiro, se disser o que as pessoas querem ouvir, terá audiência, ganhará anúncio e terá recursos para sustentar e ampliar a sua estrutura.


Felizmente, essas publicações (tradicionais) estão com os dias contados.

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Advogado, ex-deputado e ex-ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República