Jean-François Fogel começou a trabalhar como jornalista em 1972, em Paris, na agência France Presse e no diário contracultural Actuel. Depois passou para o Liberation, onde foi um dos redatores-chefes. Em seguida tentou fazer uma revista semanal, fracassou – ‘como sempre, nos fracassos se aprende muito, e eu aprendi muito’ – e iniciou a carreira dupla de jornalista free lancer (Liberation, Le Magazine Litteraire, Le Point) e consultor.
Em 1994 foi chamado pelo Le Monde para criar uma nova fórmula para o jornal. Cumpriu a tarefa (em 8 anos a circulação do vespertino cresceu 19%, antes que voltasse a decair) e se manteve como assessor do diretor do Monde, Jean-Marie Colombani, até 2002. Tentou usufruir um período sabático, mas, como havia coordenado a concepção do website do Le Monde, logo precisou retomar o trabalho. ‘Por enquanto, na internet não há períodos sabáticos: se você não seguir o tema e não continuar fazendo, não poderá aprender’, diz Fogel. O bonde anda rápido e não se pode correr o risco de perder o fio da história.
A entrevista que se segue foi feita em Monterrey, capital de Nuevo Leon (México), na quarta-feira (1/9), momentos antes da abertura do seminário no qual, durante todo o dia, indicados e ganhadores do Prêmio Nuevo Periodismo Iberoamericano relataram as circunstâncias em que foram produzidas suas matérias. Fogel fez parte do júri que avaliou os trabalhos.
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Os jornais entenderam o que significa a revolução da internet? Os dez anos transcorridos desde o aparecimento da web foram suficientes para o conhecimento e as adaptações?
Jean-François Fogel – Há três maneiras de entender isso. Há a lição dura, que é a lição financeira, ou seja, se se acelerará ou não a lenta queda de circulação dos jornais, que é uma tendência em várias partes do mundo. [Em sua conferência ‘Internet: ajuda ou perigo para a qualidade jornalística’, ditada na segunda sessão da mesa-redonda ‘A busca da qualidade jornalística e a transformação do jornalismo profissional’, em 30/8/2004, em Monterrey, Fogel afirmou que o website do New York Times fatura em um ano o que a edição em papel fatura em uma semana.] A lição dura, portanto, é descobrir logo que o negócio está mudando e que se acelerará a fuga de certos leitores – não pela concorrência direta da internet com os jornais, mas porque a audiência tem que repartir o seu tempo entre vários meios, e nesse processo o papel que corresponde à imprensa escrita diminui. E há a lição mais suave, que é a dos jornalistas que pouco a pouco se dão conta de que não têm mais a função de anunciar a notícia. A primazia de anunciar a notícia, que correspondia à informação contínua do rádio e da televisão, agora é da internet. Por fim, há uma terceira maneira de entender esse quadro: ao falar do futuro do jornal avaliando as vendas de computadores e o desenvolvimento do Wi-Fi [tecnologia sem fio que permite o acesso em banda larga via rádio], e olhando o fato de que temos grandes dificuldades para atrair jovens leitores, constata-se que temos um futuro mais difícil e que será preciso mudar algumas estratégias.
Se falamos da ‘população jornalística’, é somente nos quatro ou cinco últimos anos que os jornalistas da imprensa escrita começaram a pensar qual a posição da profissão em sua evolução histórica. Já não estamos mais na emergência, que correspondeu ao século 19; já não estamos na fase de expansão máxima, que correspondeu ao período subseqüente à Segunda Guerra Mundial; pode ser que estejamos em decadência, que começou em certos países; ou na fase de mutação de um setor que tem de entender que precisa cambiar de tecnologia para manter-se vivo.
As empresas de jornalismo não têm incorrido no risco de fazer uma transposição mecânica da tecnologia digital para os velhos modelos?
J-F.F. – Não temos sido mais inteligentes do que as outras gerações. Marshall McLuhan dizia que a cada vez que aparece um novo meio se tenta, primeiro, utilizar-se o novo recurso para manter as velhas práticas e fazer o mesmo que se fazia antes – foi o caso do rádio e da televisão. Com a internet também foi isso que ocorreu. A verdade é que, no princípio, pensamos que a internet era meramente um suporte distinto para um conteúdo que poderia continuar igual. Inclusive havia especialistas em informática que diziam que, ‘bem, por uma parte devemos saber o que vai fazer o jornal impresso, e por outra parte o que fará o website – e assim teremos resolvido a questão’. Agora as pessoas entendem que a internet não é um suporte, mas um meio. É o sexto meio na história dos meios de comunicação de massa. É um meio que tem os seus ciclos, isto é, seu próprio manejo de tempo, que tem sua maneira de comunicar-se com a audiência, que tem sua dimensão específica com a interatividade e a multimídia – e o aprendizado sobre ele já começou. Tal como sabemos que o jornalista de rádio não é o mesmo animal da imprensa escrita, vemos dentro do zoológico jornalístico aparecer um novo animal: o jornalista de internet.
Os jornalistas tradicionais, e os que trabalham hoje com internet, convivem bem com o fato de que as referências de tempo e de espaço agora estão rompidas? E que não mais há ciclos, mas fluxos?
J-F.F. – Há fluxos com grandes acelerações e desacelerações. É isso que se tem de aprender. Pouco a pouco se aprende que o que cabe dentro de um dia tranqüilo, quando se produz uma notícia forte para a audiência de um determinado sítio, pode caber dentro de 10 minutos – isto é, nesse tempo de 10 minutos há o processo da notícia, da reação à notícia e a produção de comentários, e então já estaremos numa fase que normalmente corresponde a um ciclo de 24 horas. No Le Monde, o jornalista que tem mais experiência de internet chegou ao jornal em 1994 com a idéia de trabalhar em algo digital – o sítio do Le Monde é de dezembro de 1995 –, e eu estou pensando num jornalista que tem uma experiência de 10 anos. Dez anos é um período que já lhe terá dado a possibilidade de cometer muitos erros. No entanto, ao final de 10 anos – o que não é muito – você já terá aprendido bastante. E eu creio que esses jovens aprendem. Aprendem uma relação distinta com a audiência pela interatividade, um manejo de tempo distinto, e agora, pouco a pouco, aprendem a idéia de que a escritura é apenas uma parte dos recursos que tem o jornalista para comunicar-se com sua audiência. Por exemplo: nos Jogos Olímpicos, o Le Monde – que é o sítio do idioma francês, que defende a linguagem – a cada dia fazia a síntese do que se passara em Atenas e o fazia com um comentário e fotografias. Isto foi mais visto pelos usuários do sítio do que a síntese escrita, de alguém que conta o que se passou por meio de frases e de parágrafos. Esta é uma prova de que internet vem com um outro idioma jornalístico.
Quer dizer que a leitura tal como a entendemos está comprometida?
J-F.F. – Não digo isso. O que digo é que na internet há dois conceitos, o da captação e o da leitura. Agora que temos estudos sobre os perfis de usuários de internet, o que constatamos é que não podemos considerar que são iguais a pessoa que vem várias vezes ao dia, por 45 segundos, para olhar duas páginas de um sítio que já conhece totalmente, e a pessoa que também já o conhece, mas que vai dedicar 14 minutos de leitura e circular por mais de 20 páginas. São dois perfis de usuários do sítio do Le Monde. Ou seja, a primeira pessoa vem para captar algo, mas não podemos opinar que essa pessoa mergulhe no processo da leitura. A segunda pessoa, sim, vem olhar o que há, escolhe, e, por fim, dedica-se a fazer a leitura de certas coisas. Uma parte das dificuldades em construir um novo sítio, desde o ponto de vista da ergonomia e do grafismo, é que será preciso acomodar ambos os tipos de comportamento no mesmo sítio e nas mesmas páginas. Talvez, afinal, tenhamos um terceiro tipo de leitor, o que eu chamo de ‘leitor supersônico’, que meramente vê alguns pontos de ruptura e os títulos. A este tipo de visitante do sítio do Le Monde nós vamos tratar por meio de e-mails de breaking news, com notas de 14 palavras, e vamos nos comunicar com essa pessoa até três horas depois, quando lhe daremos mais 12 palavras sobre o fato ocorrido, e pronto. Ou seja, talvez tenhamos aí uma velocidade mais acelerada por cima da captação, que é tão-somente receber a pequena transmissão de informação de uma pessoa que abre a porta e diz: ‘Sabia que aconteceu tal coisa etc etc?’. Diz isso e, em seguida, fecha a porta. Tudo isso é um processo que vamos construindo.
No caso de Le Monde, que tem na tradição de culto da linguagem uma reconhecida importância histórica, como convivem esses dois paradigmas?
J-F.F. – A verdade é que convivem pouco. Vivem numa mesma cidade, Paris, mas é difícil pedir a uma redação, que assumiu uma grande tradição histórica (como é o caso do diário em papel) também assumir uma tarefa de pioneiro de um novo meio, com o website. No caso do Le Monde há uma política que foi definida desde 2000 por Jean-Marie Colombani, diretor e responsável máximo pelo Grupo Le Monde, que assumiu a decisão de fazer todo o experimento que pudesse ser feito no sítio e manter o diário em sua tradição, ambos vivendo em dois espaços distintos da cidade. Como em muitos casos, há uma ‘embaixada’, isto é, dentro da redação do jornal em papel há um representante da versão web, que ajuda a redação do website a saber o que vai ‘importar’ do jornal e que pode atender às queixas legítimas da edição em papel. Mas no website há uma autonomia total no que tem a ver com a concepção da informação de um dia ou de um momento dado e da hierarquia das informações, que não é a mesma da edição em papel.
Há pouco eu lia um artigo na American Journalism Review de alguém que fazia a comparação entre a edição em papel do New York Times e o website do jornal – e também o fazia para o Washington Post e vários outros diários. E o que se notava claramente ao final de sua análise comparativa é que já podemos dizer que há duas agendas distintas – e isso também se dá no Le Monde. Temos que dar ao sítio a oportunidade de participar plenamente na invenção do novo meio e temos que dar aos internautas tudo o que quer um usuário de internet. Isto quer dizer reatividade (as notícias do dia de maneira seguida), interatividade (ter a capacidade de comunicar-se em multimídia e não meramente por meio de textos) e uma agenda distinta, porque se trata de uma população mais jovem que não politiza diretamente os temas, que não recorre tanto a conceitos como a imprensa escrita e que, de maneira global, tem uma agenda na qual os valores morais – ou os que têm a ver com a ecologia e com a experiência – são mais importante que os valores políticos, que têm a ver com o poder e com o saber.
Qual a política de acesso ao sítio adotada pelo Le Monde?
J-F.F. – Usamos um modelo especial, que já começa a ser muito copiado. Se alguém vai ao sítio do Le Monde (www.lemonde.fr) encontra todo o conteúdo do diário em papel, sem limitação alguma. Isso explica que o sítio tenha um grande número de visitantes, que supera o meio milhão a cada dia, por uma razão óbvia: há muitas coisas no sítio do Le Monde e a oferta vale a pena na medida em que a redação de web acrescenta muitas coisas à edição em papel. Por exemplo, um mínimo de dois porfólios de fotografias por dia, criações interativas, artigos produzidos sob a justificativa de que não foram feitos pela redação em papel e interessam à internet — ou seja, há o conteúdo do diário e, na web, um conteúdo muito mais amplo. Pois bem: a política do Le Monde é fazer com que esses visitantes saiam muito satisfeitos de sua visita – e como são muitos numerosos, há muita publicidade no sítio. Na medida em que esses internautas estão satisfeitos, nós lhes dizemos: ‘Vocês têm a oportunidade de ampliar sua visita passando às zonas de assinantes’. As zonas de assinantes, ao preço de 5 euros por mês, dão acesso a conteúdos e a serviços específicos, e acesso aos arquivos tanto do website como do jornal. Não posso dizer se as pessoas fazem suas assinaturas por uma razão ou por outra, mas podemos ver o que elas podem ter: por exemplo, e-mails que são newsletters de informação, várias vezes ao dia. O Le Monde em papel é vespertino, mas o assinante do website tem uma edição matinal, às 8 horas, de três páginas, feita para internet. Além disso, você pode guardar seus arquivos nos servidores do Le Monde, que os irá manter e preservar; poderá ter acesso a boletins meteorológicos de maneira específica sobre certas cidades; poderá ter ajuda online para conseguir certos tipos de informação. Ademais, temos um serviço de alerta. Comunicamo-nos com você, por e-mail ou pelo celular, se ocorre algo importante em certos setores que o assinante escolher. E, por fim, o acesso aos arquivos. A cada mês, você pode copiar gratuitamente 25 artigos do arquivo do sítio.
A quantas anda a base de assinantes?
J-F.F. – Estamos atingindo a marca do 50 mil assinantes. É um segundo negócio que, aliado à venda de conteúdos para portais, faz com que o sítio seja lucrativo e auto-sustentável. O sítio ajuda tremendamente o diário porque consegue assinantes para o jornal em papel – por meio de promoções cruzadas, claro. De todo modo, há que se manter humilde porque falamos de um meio muito novo. No momento temos uma certa clareza do caminho que vamos percorrendo. Sabemos por onde vamos quando pensamos o que deve ser o website desde o ponto de vista jornalístico, e o que tem que ser do ponto de vista de modelo econômico.
Qual o tamanho da operação internet do Le Monde?
J-F.F. – São 50 pessoas que a cada dia se dedicam mais ao conteúdo. Isto porque o Le Monde tem open source, controla toda a sua tecnologia e todo o dinheiro que vamos utilizar em 2005 será nosso. Primeiro, é preciso entender que se trata de uma empresa de tecnologia. Se não se envolve a parte tecnológica em todas as decisões, a empresa fracassa. No momento, eu não posso sair às ruas e ir à lojas comprar todos os softwares que preciso. Tenho que inventá-los todos, desde o início – isto é, temos que criá-los, eles têm que funcionar, têm que se feitos em casa. O bom é que não se paga mais fee algum para utilizá-los. Então é isso: tecnologia própria, 50 pessoas no website, meio milhão de visitas diárias, uma média de 14 minutos por visita – o que é excelente em duração –, autonomia na maneira de conformar a oferta jornalística e uma capacidade crescente de entregar um conteúdo próprio que não seja uma importação do diário em papel.
O que será feito dos jornais em papel? Qual o seu futuro?
J-F.F. – Eu não falo em nome do Le Monde nesse aspecto. Sou um assessor que pensa fortemente nessa pergunta como muitas outras pessoas. É certo que nos encontramos num momento de redefinição. A idéia da desaparição do papel me parece uma tolice. Saber se o papel se vai manter como suporte, se vamos ter folhas de plástico recarregáveis ou não… Podemos imaginar tudo em nível de tecnologia, mas a pergunta é se vamos manter a idéia de que a escritura pode ter uma versão impressa que se entrega por meio de folhas ao leitor. Minha opinião é que sim. Mas a redefinição tem que ser muito, muito brutal. Ou seja, se olharmos as funções que assumia o jornal no momento em que aparece nas democracias, na segunda parte do século 19, e como vai florescer depois, há algumas funções que não correspondem mais ao jornal hoje em dia. A função de lugar do debate público se mantém, mas deve ser compartilhada com outros meios – pelo menos com a internet, que tem a interatividade. Sobre a função dar a notícia, haverá que se reconhecer que será preciso renunciar a essa primazia – ou, se for mantida, não o será mais como uma função de primeiro plano.
A função de ajudar as pessoas a entender o mundo pode se manter, e creio que vai se manter, sobretudo porque, por enquanto, não há concorrência para o jornal quanto à linguagem gráfica e à maneira de apresentar em uma página um problema complexo. O jornal, quando se revela e se organiza graficamente para apresentar os distintos elementos de uma notícia, é algo muito superior ao rádio, à televisão e à internet. O meu prognóstico é que os jornais terão de passar por um momento de redefinição, de exame muito profundo do que fazem. Podemos pensar, por exemplo, que as pessoas que têm interesse em conhecer as cotações das Bolsas de Valores, porque têm ações na Bolsa, são pessoas que têm um telefone celular e acesso à internet tanto em casa como no escritório. Vale a pena para o jornal em papel continuar entregando as cotações da Bolsa a pessoas que têm recursos para inteirar-se de maneira contínua, e às vezes antecipada, dessas informações? É muito provável que dentro de pouco tempo a resposta deverá ser ‘não’. Temos que pensar um pouco nesse processo de redefinição, mas não há que se desesperar.
O que dizer sobre o espaço de opinião dos jornais?
J-F.F. – Quem supera o jornal no momento de entregar o espaço de opinião onde uma comunidade debate seus problemas? Os jornais têm mantido uma credibilidade em relação a isso. A opinião na rádio, na televisão ou na internet não se compara com uma página dupla ed-op como a do New York Times e de outros jornais do mundo. Isso nós sabemos. Talvez os jornais em papel devessem reconsiderar esse ponto, que é uma vantagem tremenda, e decidir fazer mais e utilizar melhor esse recurso. Sou um otimista em relação ao jornal em papel. Temos que ser otimistas e temos que ser preocupados também, porque a situação é difícil e precisamos trabalhar muitíssimo. Não se pode guardar tudo o que nos deu a magnífica tradição da imprensa escrita desde o século 19, pois o século 21 nos oferece um futuro que pressupõe algumas decisões críticas. Mas, seguramente, há alguma luz no fim do túnel.