O filósofo e historiador Tzvetan Todorov distingue o dogmatismo e o relativismo como duas tendências extremas e polarizadas entre si no exercício da crítica. Ele afirma, não sem mordacidade, que, se instado a escolher entre o debate com um crítico dogmático ou um relativista, escolheria este, já que, ao contrário do que acontece com os dogmáticos, haveria ao menos a possibilidade de estabelecer um diálogo.
Búlgaro radicalizado na França desde meados dos anos 1960, o hoje francês naturalizado Todorov, no belo discurso que proferiu ao receber o prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais, em 2008 (ao qual é possível assistir aqui, em espanhol), fez uma veemente defesa do direito dos estrangeiros que vivem na Europa à plena cidadania, aí incluídos o direito ao reconhecimento de sua condição de entes produtores de cultura e ao diálogo desta com a cultura do país em que vivem.
Estripulias ardilosas
A evocação de Todorov foi causada pela leitura do material produzido pelos principais jornais, revistas e blogs do país acerca do grave episódio internacional envolvendo a volta a Honduras do presidente constitucional do país, José Manuel Zelaya, o abrigo concedido a ele e sua família na embaixada brasileira em Tegucigalpa e os ataques de que esta vem sendo vítima.
Antes, porém, de examinarmos as estripulias de nossa ardilosa imprensa, convém reconectar algumas verdades essenciais aos fatos, já que elas se perderam em meio ao cipoal de desinformação, alusões fantasiosas e teorias conspiratórias a estes pespegados.
Como reconhece Mauro Santayana, em artigo-oásis no Jornal do Brasil (que respira com a ajuda de aparelhos), Zelaya não pretendia, no referendo que deveria ter ocorrido em julho, disputar um segundo mandato presidencial, mas sim a colocação de uma quarta urna para votar a convocação ou não de uma Assembléia Constituinte. Já estava definido que esta, se instalada, não teria efeito vinculante (ou seja, caso viesse a decidir pela alteração da duração ou do estatuto da reeleição presidencial, tal medida não beneficiaria Zelaya, mas seu sucessor).
Esse esclarecimento é necessário, pois, na euforia midiática que se seguiu ao golpe de Estado em Honduras, logo transformada em tibieza em condená-lo, o principal ‘argumento’ utilizado para justificar o golpe de Estado – como se estes justificáveis fossem – era que Zelaya tentaria um segundo mandato, patrocinado por Hugo Chávez – a nova panacéia editorial do continente, como aponta Leandro Fortes no artigo ‘Sem olhos em Tegucigalpa‘. Tal premissa levou alguns colunistas mais afoitos a gastar tinta para falar em uma nova modalidade de golpe em voga na América Latina: o golpe institucional, que se daria através da alteração das leis, mas mantendo os militares nos quarteis (até agora, Álvaro Uribe, da Colômbia, que esses tais colunistas adoram, é o único responsável pela ‘voga’).
Cobertura dogmática
Voltando a Honduras: ao contrário do que afirmam certos blogs que cultuam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo como entidades sagradas e infalíveis, é lícito, sim, questionar a necessidade do envolvimento do Brasil no caso, como o faz a imprensa – na verdade, esta é, idealmente, uma de suas funções precípuas: avaliar as decisões governamentais tendo como horizonte o que julga ser melhor para o país.
Portanto, é sustentável, na teoria – embora não necessariamente correta –, a posição segundo a qual em nome do restabelecimento da ordem democrática em um país insignificante do ponto de vista comercial ou estratégico, tanto a soberania quanto a instabilidade institucional brasileiras estariam sendo desnecessariamente postas à prova (não que sejam esses os motivos para a indignação de nossa imprensa…).
Por outro lado, causa estranhamento que a imprensa aja virtualmente como bloco, e que a posição acima descrita seja praticamente unânime. Pois haveria de passar pela cabeça de alguns articulistas que se o Brasil quer mesmo assumir sua posição de player no cenário internacional, é mais do que recomendável que atue com firmeza para restabelecer a ordem democrática num país sob sua área de influência geopolítica no qual ela foi claramente violada – e através de um tipo de golpe de Estado clássico, que julgava-se condenado aos anais empoeirados da história.
Como meus poucos mas inteligentes leitores já devem ter notado, com essas ponderações acima, uma no cravo, outra na ferradura, estou a fazer um exercício de relativismo, talvez com a pretensão, decerto excessiva, de contrapô-lo ao dogmatismo reinante em nossa ‘grande imprensa’.
Nacionalismo e imprensa
O cenário se complica, porém, ao constatar que, concedido o abrigo diplomático a Zelaya, a embaixada passa a sofrer represálias por parte do governo golpista (que nossa mídia chama de ‘governo de facto‘, o que sugere uma autoridade que ele não tem). Como se sabe, representações diplomáticas no exterior são consideradas extensões do território do país ali representado. Mesmo em golpes de Estado os mais brutais – como no Chile de Salvador Allende, em 1973 – tal princípio foi respeitado.
Não que a imprensa tenha a obrigação de defender o Brasil por nacionalismo ou patriotismo. Estas duas modalidades de paixão coletivas, tornadas execráveis em terras nacionais durante a longa hegemonia neoliberal e que agora ensaiam um retorno, podem, de fato, trazer consigo um danoso potencial de manipulação ideológica, do qual a história é farta de exemplos extremos. Como se sabe, os EUA são o único país do mundo cuja população – e a mídia – tem o direito de ser nacionalista e patriota, o que talvez se justifique pelo seu passado pacifista. Imperialista, como nos informa a revista Veja, em matéria de capa, é o Brasil.
Ironias à parte, admitamos que o nacionalismo e o patriotismo não obriguem a imprensa brasileira a tomar uma posição de defesa dos interesses nacionais – embora o fato de a Folha de S.Paulo se dizer ‘um jornal a serviço do Brasil’ nos permitir meditar sobre a instrumentalização que a imprensa faz de tais conceitos quando de seu interesse. Tal admissão colide, porém, com o que foi afirmado parágrafos acima – que uma das funções precípuas da imprensa seria, idealmente, ‘avaliar as decisões governamentais tendo como horizonte o que julga ser melhor para o país’ – e, portanto, contraditoriamente, com a própria justificativa na qual se baseia a condenação da imprensa à ação diplomática brasileira em Honduras, evidenciando suas reais motivações.
Agressões negligenciadas
Mas o cenário ficaria ainda pior com a reação truculenta dos golpistas ora no poder. Quando a imprensa negligencia duplamente a agressão a uma embaixada – ao oferecer uma cobertura insatisfatória das graves denúncias contra o governo hondurenho (que incluiria até lançamento de gás venenoso) e ao subestimar a gravidade da violação de leis internacionais – ela transpõe o limite que separa a em si aviltante adoção de uma linha dogmática na cobertura do caso e a conivência com ações inaceitáveis à luz do Direito e da Razão. Viola, portanto, os próprios pressupostos iluministas que sempre conclamou como orientadores básicos da própria atividade jornalística.
O desenrolar da cobertura a partir da consumação do ataque ao território brasileiro no exterior e de sua decorrente condenação pela OEA chega às raias da irresponsabilidade. Promove-se, desde então, uma tal inversão de valores que se procura fazer crer que o presidente democraticamente eleito e expulso à ponta de baioneta é quem é o provocador, de dentro da embaixada brasileira e sempre sob o comando do onipresente Chávez. As reações internacionais contra um governo que não foi reconhecido por nenhum país vêm sendo minimizadas a favor da repercussão de um jornalismo neocon que é, neste momento, na melhor das hipóteses, continental.
As manchetes oscilam entre o cinismo implícito e a manipulação evidente, tornando-se às vezes peças de humor involuntário – como a da Folha de S.Paulo de sexta-feira (25/9): ‘Golpistas acusam Lula de intromissão’. O que os editores do diário paulista esperavam que eles fizessem? Saudassem fraternalmente o mandatário do país que dá abrigo ao inimigo que depuseram do poder?
Assim agindo, a imprensa brasileira, em sua militante cobertura do caso hondurenho, torna-se, em última análise, cúmplice da truculência de um governo golpista contra a democracia hondurenha, a soberania do Brasil e as leis internacionais.
Fechada em seus dogmas, atrelada tão-somente à defesa de seus interesses, ela se iguala, desse modo, ao racista intransigente de que fala Todorov: é um ente em decadência, presa de seu próprio anacronismo e de sua intransigência, cavando a cova de seu próprio descrédito.
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Jornalista e cineasta, é doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog