No morticínio do World Trade Center, há três anos, a maior parte das vítimas ficou soterrada e o resto não foi mostrado pela mídia americana. Imagens apocalípticas, mas sem sangue ou mortos. Apavorante, assustador, mas distante. Faltou comoção. Isto talvez explique o relativismo moral que tomou conta dos analistas e opinionistas fora dos EUA que, em seguida ao choque, puseram-se logo a remexer o arsenal ideológico para buscar razões capazes de justificar o terrorismo.
Quando o terror palestino explode um ônibus, supermercado ou restaurante em Israel raramente aparecem cadáveres. Os corpos são completamente dilacerados e o que deles resta é prontamente recolhido para atender os preceitos religiosos. Raras as imagens tenebrosas, a não ser as poças de sangue, os ferros retorcidos e a emoção dos enterros. O horror das cifras e dos relatos é prontamente ultrapassado pelas represálias militares israelenses. O terror não chega a aterrorizar, protegido pela velocidade dos fatos.
No massacre de Madri, o volume de vítimas e a imediata exploração política permitiram a exibição do cenário dantesco. O terror revelou-se em toda a sua extensão.
Resta saber como é que os chamados ‘multiplicadores de opinião’, os donos da verdade, reagirão no alto dos respectivos olimpos diante do que aconteceu na Ossétia (ou Osséssia?) do Norte. Como se comportarão depois do terrível espetáculo daquela centena e meia de crianças que pareciam apenas feridas mas eram cadáveres reais produzidos pela metralha dos terroristas tchetchenos?
Qual será o resultado das tertúlias nas redações? Os assassinos de civis no Iraque continuarão a ser chamados de guerrilheiros e ‘resistentes’?
Diante da surpreendente constatação do diretor-geral da rede televisiva al-Arabya, Abdulrachman al Rashed, de que ‘todos os terroristas do mundo são muçulmanos’ (Folha de S.Paulo, 5/9, pág. A-16) continuará a farsa ‘politicamente correta’ de fingir que o radicalismo islâmico nada tem a ver com este banho de sangue que corre nos quatro cantos do mundo? [Leia na rubrica Entre Aspas, nesta edição, a íntegra da nota ‘Diretor de TV árabe liga terror a mundo islâmico’.]
Se as lideranças muçulmanas, inclusive religiosas, começam a dar-se conta de que ‘nossos filhos terroristas são fruto de nossa cultura corrompida’, devem nossos mediadores, comunicadores e jornalistas continuar a ignorar o islamo-terrorismo?
E se o massacre em Beslan converter-se em alavanca eleitoral para o presidente George W. Bush teremos que conviver com a continuação da complacência midiática com o banditismo político? Se Bush vai usar o terrorismo para continuar na Casa Branca, porque somos anti-Bush devemos dar apoio moral à selvageria?
Se a direita internacional, inclusive o presidente Vladimir Putin, aproveita-se da escalada terrorista para reforçar seu projeto de poder, isto não deveria alertar os jornalistas ‘de esquerda’ para o perigo de tolerar a barbárie?
Fora do mapa
A tensão internacional dos últimos anos está produzindo na mídia um perigoso pêndulo comportamental: ora entrega-se à indignação irracional – tipo Robert Fisk – e esquece os compromissos de isenção, ora refugia-se num falso racionalismo que passa ao largo das obrigações humanitárias.
O jornalismo dito ‘moderno’ – e especialmente a sua variedade brasileira – vem perdendo seu principal atributo, sua razão de ser: a capacidade de transmitir emoções nobres, abraçar causas e valores universais e, no caso de catástrofes como a de Beslan, de horrorizar-se. O inevitável volume de notícias deixou de ser gerido pelos sentimentos de solidariedade mas por um punhado de preceitos quase mecânicos. Ou termodinâmicos: as notícias precisam ser quentes e novas.
A busca do impacto fácil através do inesperado, a novidade pela novidade e despojada de significados está criando um círculo vicioso e viciado cuja primeira vítima é o próprio jornalista, a vítima seguinte é o leitor e a última, a sociedade, cada vez mais cruel na sua insensibilidade, cada vez mais perversa na impermeabilidade ao sofrimento.
A melhor prova disso foram os jornais da segunda-feira (6/9). Depois da intensa exposição da tragédia no fim de semana, os três jornalões nacionais pareciam de ressaca. Cansaram da dor. Apenas o Estado de S.Paulo deu algum destaque na primeira página ao noticiário do massacre – sua manchete e a da Folha foram rigorosamente burocráticas, adiáveis, geradas por matérias ‘de gaveta’. A do Globo, efetivamente importante, gerada pelas graves denúncias da edição de domingo (‘TRE impugna os candidatos com ficha criminal’), associada à festa futebolística da véspera, tirou do alto da primeira página as referências ao macabro evento.
A Ossétia (ou Ossetia ou Ossessia?) sumiu do mapa, condenada a reaparecer quando fizerem-se os rankings das maiores barbaridades do ano.
Doente, insano
A verdade é que grande parte da mídia mundial está atordoada, perdida, desnorteada. Mudaram as prioridades; as novas gerações encontram nas redações outros paradigmas, inclusive culturais. A noção do entretenimento está sendo confundida com a submissão à banalidade. O segundo (ou o terceiro?) casamento do jogador Ronaldo ganha uma transcendência que joga no lixo eventos que poderão mudar o rumo da história.
Primeiras a sucumbir foram as revistas que começaram a crescer em meados do século 18 exatamente para oferecer ao leitor uma ligação com o mundo em transformação. Os jornais passaram a oferecer todos os indícios de que sucumbem à ditadura do ‘mix’ – a inodora mistura dos faits divers com insignificância.
O resultado são as simplificações. Sobretudo políticas. Nos anos 20-30 do século passado a mídia flertou com o nazi-fascismo porque a crise econômica, a anarquia e o caos impunham fórmulas autoritárias e figuras carismáticas. Nos anos 1940-1950 a mídia deixou-se engabelar pelo stalinismo e por fraudes políticas como a ‘paz soviética’. A crença no socialismo subjugou as premissas democráticas.
Agora, nesta primeira década do século 21, por oportunismo, ignorância ou simples incapacidade de ir ao âmago das questões, a mídia deixa-se enredar pelas perversidades do terrorismo. Não avaliou o seu poder para enfrentá-lo. O terrorismo é insano, doente. A mídia tem os remédios para extingui-lo. Em vez disso, distrai-se com bobagens e não percebe que o terror só pode ser combatido por mentes lúcidas e almas generosas. Distanciada da humanidade, desobriga-se do humanismo.
Os leitores vão cobrar. Se não os de hoje, amanhã.