Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Padre do demônio e a primeira tipografia

‘Padre, tu és o demônio!’, disse o bispo Cypriano ao padre José Joaquim Viegas de Menezes, que tomou um susto. Mas era um elogio. O bispo completou: ‘Não sabe que demônio não significa somente espírito mau, e que também quer dizer astuto, sagaz, inteligente!’

O bispo, o governador-geral e muitos outros eram admiradores do padre responsável pela primeira impressão oficial nas Minas (1807), pela primeira tipografia construída no país (1821) e a criação do primeiro jornal da província, O Compilador Mineiro, em 1823.

Padre Viegas era um homem brilhante. Apesar da saúde muito frágil, realizou grandes feitos como intelectual, artista plástico e, principalmente, como amante das artes gráficas. Viegas está quase esquecido e sabe-se muito pouco sobre ele. No entanto, um distrito de Mariana, nas Minas Gerais, tem seu nome, apesar da única relação do padre com a localidade é ter estudado lá na adolescência. O poeta e líder da Inconfidência Cláudio Manoel nasceu no distrito, mas preferiu-se homenagear o precursor da imprensa mineira.

O que se conhece do padre deve-se a uma carta enviada, em 1851, por alguém que apenas registrou suas iniciais, A.M., e que se dizia amigo de Viegas. A correspondência foi encaminhada ao redator do Correio Official de Minas, com data de 3 de janeiro de 1852, por José Rodrigo Duarte. No entanto, não se sabe o porquê, a correspondência só foi publicada em 1859. A pessoa que encaminhou a carta era muito influente, e mostrava-se preocupada com o registro da memória de Viegas. Acredito que tenha sido José Rodrigo Lima Duarte, redator de periódicos em Juiz de Fora, era médico e foi eleito deputado em sete legislaturas, e uma vez senador. Também foi ministro da Marinha, e no final da vida recebeu o título de visconde Lima Duarte. Uma cidade mineira, próxima a Juiz de Fora, foi batizada com seu nome.

Na carta é possível observar uma grande admiração ao padre, e a intenção de homenageá-lo. O autor da correspondência também deixa claro que não tem todas as informações necessárias para traçar a biografia de Viegas: ‘Me faltam dados para bem desempenhá-la’, diz. Ele começa descrevendo a impressão calcográfica (utilizando chapas fixas de cobre) feita pelo padre a pedido do governador em 1807. E descreve um diálogo entre Viegas e o governador, sobre o qual faz uma observação: ‘Por muitas vezes ouvimos o finado (padre Viegas) repetir esta conversação que tivera com o general’. O diálogo mostra uma relação de proximidade entre ambos, e termina com uma frase bem em que o capitão-general diz que o padre não devia se preocupar com a proibição a atividade de impressão. ‘Oh! Se é só isso, não se aflija, tomo sobre mim toda a responsabilidade: mãos a obra, meu Padre’.

Ao lado do poder

Depois a carta traz as informações conhecidas sobre o padre, desde seu nascimento, quando ele foi abandonado pela mãe na porta de uma casa em Vila Rica. Essas informações depois serão reproduzidas por Xavier da Veiga, na monografia A imprensa em Minas Gerais (1807-1897), publicada em 1898 na Revista do Arquivo Público Mineiro (ver artigo ‘O precursor dos estudos sobre jornalismo em Minas’).

A correspondência descreve Viegas como uma pessoa tranqüila, piedosa e humilde. Já na infância preferia os livros e o desenho (para o qual tinha grande habilidade) às brincadeiras com as outras crianças. Mas alguns detalhes da história do padre deixam claro que ele era muito sociável, inquieto intelectualmente e ousado. Respondeu a processos civis, que o biógrafo diz terem sido injustos: ‘Foram intentados por parte ou a instigações de indivíduos a quem jamais ofendera, antes obsequiara sempre’. Os motivos apontados: ‘Pretendidas usurpações de direitos paroquiais, já por infundadas pretensões de liberdade de escravos seus’. Isso mostra um lado negativo de Viegas, ser proprietário de escravos. Mas, claro, tem-se que pensar em Viegas como um homem de seu tempo.

Alguns aspectos da vida do padre mostram que ele, apesar de não ter uma militância política, era conservador. Sempre esteve ao lado do poder, amigo do governador-general, no período colonial, que dá depoimento elogioso a Viegas. Mas a maior prova de sua tendência conservadora é sua participação na revolta, em 1833, nas Minas, de caráter restaurador, ou seja, de apoio ao retorno de D. Pedro I.

No Arco do Cego

O biógrafo diz que Viegas não teve qualquer envolvimento. Mas, se contradiz ao contar que, ao se restaurar a legalidade, o padre fugiu de Vila Rica disfarçado, e depois foi condenado a seis dias de prisão. O padre recorreu. Segundo a correspondência ele teria dito: ‘Nem a seis horas, nem a seis segundos mesmo me sujeitarei, sem primeiro esgotar todos os recursos que estiverem a meu alcance para mostrar-me tal como sou, isto é, inocente’. Num segundo julgamento, foi absolvido. No entanto, o padre parecia bem mais preocupado com seu trabalho eclesial, artístico e intelectual, do que em participar da vida política. Em Portugal, onde morou provavelmente de 1797 a 1802, teve uma convivência fraterna com frei Veloso, que dirigia a Oficina do Arco do Cego, em Lisboa.

Frei Veloso é uma das principais personalidades da história da imprensa luso-brasileira, e era muito amigo do padre Viegas. Com o frei, Viegas aprendeu muito sobre a arte da impressão, e até fez a tradução, do francês para o português, do importante Tratado da gravura a água forte, e a buril, em maneira negra com o modo de construir as prensas modernas, e de imprimir em talho doce, que foi impresso no Arco do Cego.

Os brasileiros que iam estudar em Portugal, e formavam um grupo de intelectuais, tinham como ponto de encontro a Oficina do Arco do Cego. Por isso, certamente o padre Viegas teve oportunidade de conviver com pessoas como Hipólito da Costa, o criador do nosso primeiro jornal, o Correio Braziliense. Em Vila Rica, a casa de Viegas sempre vivia cheia. A correspondência diz que ele gostava muito de receber, principalmente os franceses. Um de seus hóspedes foi um artista plástico francês chamado Palière, que o autor da carta chama de ‘mestre da casa real’, e que se entusiasmou com as pinturas do padre.

À espera do pesquisador

O relato deixa claro que Viegas era muito querido. Quando foi absolvido, em 1833, houve festa em Vila Rica. E, em 1º de julho de 1841, quando ‘essa alma benfazeja voou tranqüila à mansão dos justos’, um grande número de pessoas se comoveu.

Mais informações sobre o padre Viegas podem ser encontradas em outros textos de minha autoria, como ‘O precursor dos estudos sobre jornalismo em Minas’ [ver remissão abaixo] e ‘O precursor da imprensa mineira’ [apresentado no 2º Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, encontrado em (www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/)].

Recentemente, fiz uma visita a Mariana, nas Minas Gerais, e encontrei alguns documentos manuscritos (e por isso de difícil leitura) sobre o padre Viegas, que certamente trariam mais dados sobre sua contribuição à imprensa e ao jornalismo brasileiro. Será trabalho para algum pesquisador persistente e interessado na história de nossa imprensa explorar esse material.

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Jornalista, mestre em Comunicação e professor