A maioria das pessoas tem a curiosa tendência de encontrar soluções no passado e problemas no presente. Com o jornalismo, não é diferente. Não é raro referir-se à imprensa pioneira com saudosismo, aclamando-a como impávida e colossal, em contraste irremediável com a contemporânea.
Todavia, exames minuciosos na história confirmam que não é bem assim. É fato que a imprensa precursora contribuiu e muito para momentos decisivos do país, em especial para a Independência, que se comemora esta semana. Mas também fez feio em várias ocasiões; derrapou em algumas curvas.
Quem duvida disso já se decepciona ao vasculhar a história do primeiro periódico impresso em solo brasileiro, em 10 de setembro de 1808. A Gazeta do Rio de Janeiro, assim se chamava o folheto, assemelhava-se a uma espécie de Caras da corte portuguesa. Nela, lia-se sobre a saúde dos príncipes europeus e o cardápio dos jantares promovidos pela realeza lisboeta. ‘A julgar-se do Brasil pelo seu único periódico, devia ser considerado um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado um só queixume’, ironiza José Armitage, em História do Brasil (citado por Nelson Werneck Sodré, em História da Imprensa no Brasil).
A futilidade e a omissão não eram culpa de seu redator, o frade português Tibúrcio José da Rocha. Tanto que o religioso se demitiu quatro anos depois do periódico ser lançado. Acontece que o jornal pretendia ser uma cópia da Gazeta de Lisboa e amainar a ebulição democrática que atingia o Brasil por meio do Correio Braziliense de Hipólito da Costa. Natural; era a imprensa oficial.
Por caminhos torpes também enveredou O Espelho, em 1821. Era escrito por Manuel Ferreira de Araújo, até então um dos redatores da Gazeta. O jornalista também se limitava a transliterar trechos de jornais europeus. Mas seu principal objetivo era contrapor-se aos revolucionários Revérbero Constitucional Fluminense e A Malagueta.
Nomes sugestivos
Poucas e boas aprontou O Espelho. Mas o mais vergonhoso em toda sua história é ter se prestado ao cargo de porta-voz do artigo ‘O calmante da e no Malagueta’. Tratava-se de carta ácida, chula e agressiva, saída provavelmente do punho de dom Pedro I e remetida a Luís Augusto May, redator de A Malagueta. Vale ressaltar que o texto escrito pelo monarca não possuía qualquer característica que lembre, de longe, a ética. Xingamentos do gênero de ‘cachorríssimo’, ‘esturdíssimo’ e ‘p. que pariu’ permeiam o artigo, além de como acusações físicas, sexuais e morais.
Aos que questionam a autoria, a historiadora Isabel Lustosa, no livro Insultos Impressos, não deixa dúvidas: ‘Só o príncipe [dom Pedro] se balançaria a tanto. É bem o seu estilo, presente em suas cartas e artigos.’ Curiosa é a data da publicação, 10 de janeiro de 1823, poucos meses depois de proclamado o ‘independência ou morte’.
E para quem julga que só a direita se prestou a esse tipo de insulto, recomenda-se breve análise da imprensa regencial e imperial. Nenhum folheto da época ganhou notabilidade imortal, mas quase todos se caracterizaram pela virulência e arrogância das letras.
Sugiro que a análise comece pelos nomes sugestivos dos pasquins. Fiquemos em O Pirilampo Popular, O Meia-Cara, O Diabo Coxo, O Burro Magro e O Martelo, todos do Rio de Janeiro, só para citar alguns.
Insultos melhores
Era característica básica dos pasquins o ataque verbal. Publicava-se, geralmente, apenas um artigo, combativo e injurioso. Quase nunca se sabia da autoria do jornal. Temendo represália, os panfletários liberais usavam pseudônimos e apelidos. Quanto aos acusados, cabia o mesmo tipo de tratamento. Segundo Werneck Sodré, na obra já mencionada, ‘as personalidades políticas não eram citadas pelo nome, mas por apelidos chistosos, ridículos, desprimorosos, alguns verdadeiramente torpes’.
O objetivo principal dessas folhas, de curta vida e sem periodicidade, era a luta política. De fato, a imprensa conseguiu garantir o clamor da independência e influir em eventos históricos, como o culminar do Sete de Abril e a rebelião praieira. No entanto, os fins não justificam a forma como tais conquistais se efetivaram.
Werneck Sodré teima em enxergar a imprensa panfletária sob uma ótica progressista em vez do tradicional caos a que são remetidos. Visão no mínimo irônica. Até parece que os insultos de esquerda são melhores que os outros.
Sem decadência
A constatação desses fatos negativos do período de nossa independência não é razão para visualizar a imprensa pioneira só pela ótica pessimista. Os mesmos eventos aqui listados podem exemplificar atuações positivas do jornalismo. Nestes, a folha impressa não se limitou positivamente aos fatos e deflagrou benéficas ações futuras.
Contudo, é evidente que o atual jornalismo brasileiro vive dias melhores. O metamorfosear da imprensa em empresa jornalística não trouxe apenas deturpações, como sugerem os anticapitalistas. Ao se tornar comercial, o jornalismo passou a ver o leitor como um cliente, e, como tal, esmera-se em tratá-lo bem. Assim, soa um tanto surreal que um grande jornal de circulação nacional desfira palavrões assinados pelo presidente ou, ainda, restrinja sua pauta aos resfriados da realeza européia.
Portanto, o jornalismo brasileiro não está decadente, como querem alguns. Também não se constitui apenas de beneméritos, como apregoa a linha de pensamento voltada exclusivamente ao capital. Mas amadureceu, despontou. Adquiriu as ferramentas necessárias para tratar os fatos com equilíbrio, ética e compromisso com a verdade e, paulatinamente, está aprendendo a usá-las. A futura história brasileira provavelmente será contada por um jornalismo que já se levantou do berço esplêndido.
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Formando de Jornalismo no Unasp, na Grande Campinas