Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

De volta ao merchandising

Quando escrevo para o OI às vezes me sinto como a repisar os mesmos temas. Mas, na verdade, creio ser nossa imprensa que não se corrige… IstoÉ de 8/9/2004 traz matéria sobre riscos de doenças cardiovasculares, um grande estudo divulgado na importante publicação científica The Lancet. Claro que a revista simplificou o assunto, o que não deve merecer maiores críticas, pois seria uma espécie de tradução do ‘mediquês’ para o público leigo.

Começa dizendo que da pequena Croácia à China os fatores de risco para doenças cardíacas são os mesmos, como hipertensão, obesidade, sedentarismo, colesterol alto etc. Alguém ainda não sabe disso? Segundo IstoÉ, o tal estudo apenas confirmou esse dado, ‘globalizando’ a informação.

Só que não é bem assim: existem fatores comuns em todos os lugares, sim, mas há individualidades importantíssimas, de ordem genética, mais conhecidas nas recentes pesquisas do genoma humano, com variações importantes na Islândia, no Japão e vários outros exemplos que eu poderia citar.

Saúde e comércio

Além desse erro, a publicação ‘pula’ fatores de risco mais raros ou talvez menos compreensíveis para a população geral dos leitores, mas que quase eliminam o valor do parágrafo inicial da ‘igualdade de risco para todos’: o fator V de Leiden, as apoliporoteínas, o gene da mutação da protrombina, a homocisteína, a antitrombina III, as proteínas C reativa e S, a agregação plaquetária e assim por diante.

As Olimpíadas acabaram e parece que acabei de falar grego, mas os termos técnicos acima não apenas são importantes,como dosados laboratorialmente na prática mesmo aqui no Brasil e passíveis de tratamento ou prevenção, além dos tradicionais.

E, lá no finzinho vem o que sempre me irrita: um singelo parágrafo falando que foi lançada no mercado brasileiro uma estatina associada a uma substância que reduz a absorção de colesterol pelo intestino… E é verdade: foi lançada na semana passada, e ninguém sabe ainda se isso será mesmo vantajoso, apenas que é muito cara! Ora, ora, de volta ao merchandising escondido…

Sem medo de processo

A Veja da semana retrasada trouxe matéria sobre uma médica do Rio de Janeiro que cuida de um sem número de atrizes, atores, modelos etc. Uma sacerdotisa do altar da beleza dos dias atuais. Tudo bem, o que essa médica faz e seus pacientes seguem é responsabilidade de cada parte. Acontece que a médica utiliza métodos para lá de heterodoxos, e num momento de lucidez a publicação semanal chega a citar um deles como que se fosse produto das Organizações Tabajara… Apenas para cumprir o ritual de ‘ouvir o outro lado’, há uma única frase da presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, claramente condenando a metodologia utilizada pela médica, mas que teve seu espaço limitado a pouquíssimos toques, ao contrário das várias ‘celebridades’ que cantam loas às maravilhas da doutora.

Ora, medicina é ciência, mesmo a estética. E, pelas declarações da facultativa carioca e de seus, digamos, pacientes, ela pratica empulhação, propaganda enganosa, faz uso público do nome de seus pacientes (recurso condenado pelo Código de Ética para angariar clientela de modo desleal). Não usa a ciência, brinca com o corpo e a saúde física e mental de pessoas que, pela profissão, necessitam sempre estar com o peso mais do que correto.

Caso eu ainda fosse membro do CRM e essa jovem médica atuasse em São Paulo, apesar da fama de seus clientes (e de, como ela mesma diz, seu consultório ser uma ‘extensão da Ilha de Caras’), abriria sem remorsos contra ela um processo disciplinar.

Espero que os colegas do CRM do Rio de Janeiro não se intimidem e façam o necessário. Esta, evidentemente, é uma questão médica e ético-disciplinar. Mas a Veja dar todo esse espaço a uma evidente charlatã, aproveitando-se da boa fé de artistas e demais profissionais, praticamente sem nada mostrar dos riscos ou da falta de benefícios e validação científica dos procedimentos utilizados, não é apenas um desserviço – chega às raias mesmo de uma infração.

Já me posicionei claramente no OI e em outros veículos contra o tal Conselho Federal de Jornalismo. Mas, caso já existisse, eu mesmo denunciaria a Veja ao CFJ por grave infração ética. Em tempo: caso a médica carioca tome ciência do presente texto, já aviso que não tenho receio de processo. Ao contrário: ela que comprove cientificamente o que faz, pois posso ser eu mesmo quem vá denunciá-la ao CRM do Rio, no mínimo.

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Médico, Mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo